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Universidade Federal do Pará devolverá amostras de sangue Yanomami

Controvérsia da coleta de sangue entre os Yanomami cria novos parâmetros éticos em pesquisa científica

Universidade Federal do Pará devolverá amostras de sangue Yanomami

A Universidade Federal do Pará (UFPA) devolverá aos Yanomami as amostras de sangue mantidas em seus laboratórios e nos da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). As amostras foram coletadas em 1990 entre os Yanomami das regiões do Alto e Baixo Mucajaí e Paapiu sem o consentimento informado dos pacientes, que ignoravam as suas aplicações imediatas e as futuras. A devolução das amostras se dará após ação do Ministério Público Federal que, a pedido de lideranças yanomami em 2002 (ver Boletins Pró-Yanomami 11, 23, 25 26, 32, 41 e 59), vem realizando intenso trabalho junto a instituições nacionais e estrangeiras que, desde a década de 1960, fizeram pesquisas sem os devidos esclarecimentos às comunidades em terra indígena. A UFPA informou que está providenciando o envio do material para a Procuradoria da República de Roraima e o Ministério Público Federal (MPF) prevê que até março ele já esteja nas mãos dos Yanomami.

O sangue em posse da UFPA foi recolhido entre 14 e 25 de agosto de 1990, nas comunidades do Alto e Baixo Mucajaí, e 16 a 29 de agosto do mesmo ano, nas comunidades do Paapiu durante curso de atendimento médico realizado por equipes da Universidade, em acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai). Segundo documento enviado ao Ministério Público Federal pela Universidade, as intenções iniciais dos estudiosos diziam respeito à investigação laboratorial e epidemiológica de infecções e pesquisa de malária. Após a realização dessas pesquisas, as amostras foram utilizadas para obtenção de DNA, com o intuito de levantar afinidades entre populações indígenas e sua história biológica.

A devolução do material coletado pela UFPA e pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto consistiu num dividendo inesperado aos esforços do Ministério Público e dos Yanomami, já que não haviam informações sobre essa coleta, realizada durante uma missão de saúde cujos objetivos oficiais não previam tal procedimento. A descoberta se deu durante o processo de solicitação de amostras em posse de instituições norte-americanas e brasileiras, recolhidas durante as décadas de 60 e 70. Em julho de 2005, Maurício Fabretti, Procurador Geral em Boa Vista, Roraima, enviou ofícios a treze reitores e diretores de dez instituições nos Estados Unidos: a Universidade Estadual da Pensilvânia, a Universidade Binghamton, a Universidade Emory, Instituto Nacional do Câncer, a Universidade da Califórnia, a Universidade Estadual de Ohio, Universidade Estadual da Louisiana, Universidade de Pittsburgh, Universidade John Hopkins e a Universidade de Michigan. Até o momento, apenas quatro dessas instituições responderam. A Universidade Estadual da Pensilvânia, a Universidade do Estado de Nova York em Binghamton e o Instituto Nacional do Câncer confirmaram possuir material pertencente aos Yanomami e já se dispuseram a negociar sua devolução. A Universidade da Califórnia, no entanto, afirmou não estocar amostras (ver próxima matéria).

Entenda a polêmica – Durante as décadas de 1960 e 1970 pesquisadores norte-americanos e brasileiros sob direção do geneticista James Neel, professor de genética da Universidade de Michigan, coletaram amostras de sangue entre comunidades yanomami no Brasil e na Venezuela sem que elucidassem seus objetivos aos doadores e obtivessem seu consentimento informado. O sangue é mantido até hoje em instituições norte-americanas e brasileiras, após ter sido reprocessado na década de 1990, permitindo a extração de material genético para novas pesquisas, sem o consentimento dos Yanomami que desconheciam a permanência em terras longínquas de vestígios biológicos de parentes já falecidos, que deveriam passar por cerimônias funerárias apropriadas.

A equipe chefiada por Neel recolheu sangue principalmente entre os Yanomami das comunidades do Toototobi (AM), onde morava na época Davi Kopenawa, então com 11 anos de idade. “Lá (nos Estados Unidos) está o sangue de minha avó, a mãe de meu pai, por isso eu me entristeço. Lá está também o sangue de meu avô, até o sangue de meu pai, o que nos deixa entristecidos”, declarou Dário, filho de Davi Kopenawa, professor e tesoureiro da Hutukara Associação Yanomami. “Nós não podemos mais chorar pelos que morreram. Queremos devolver seu sangue à terra, aos locais onde eles se originaram e nasceram, e não deixá-lo trancado em locais gelados. Nós, os mais jovens, não teremos o pensamento tranqüilo enquanto o sangue não retornar”.

Segundo Dário, os anciãos Yanomami de Toototobi relatam que a coleta de sangue se realizou após apenas um discurso vago dos pesquisadores sobre suas intenções, fazendo referências a melhorias nas condições de saúde, e a distribuição de mercadorias de troca: “Os mais velhos não entendiam os que eles (pesquisadores) faziam lá, eles não compreendiam suas intenções, por isso mostraram seu sangue. Eles foram enganados pela fala dos brancos, que diziam: ‘sim, ao tomarmos seu sangue vocês viverão com muita saúde, não voltarão a morrer doentes, não voltarão a sofrer com epidemias, viverão saudáveis por muito tempo, vocês e suas crianças’, foi o que disseram para enganar os mais velhos”.

Em 2002 líderes yanomami solicitaram ao Ministério Público Federal (MPF) providências quanto às informações de que haveria milhares de amostras de sangue de seu povo em laboratórios norte-americanos. Com base em informações fornecidas pela Comissão Pró-Yanomami, a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF questionou as universidades do Estado da Pensilvânia e de Michigan sobre a possibilidade da existência de sangue, com confirmação positiva apenas da primeira instituição. No ano seguinte a 6ª Câmara requisitou a colaboração do Ministério das Relações Exteriores e da Advocacia Geral da União, mas não obteve resposta até o presente (ver Boletim 41).

Em abril de 2005, o Procedimento Administrativo foi encaminhado ao MPF em Roraima, que reconstituiu o histórico das expedições de coleta de material biológico entre os Yanomami nas décadas de 1960 e 1970, a partir de depoimentos dos geneticistas que as coordenaram, Dr. Francisco Mauro Salzano, da UFRGS e Dr. Manuel Ayres, da UFPA. Levantamento feito junto aos arquivos da Funai indica que essas expedições de coleta foram realizadas com autorização do governo brasileiro. Além da expedição realizada em 1967 comandada diretamente pelo Professor James Neel, ocorreram outras, entre julho e agosto 1972 e em 1974.

Um caso exemplar - Mesmo contando com autorização de órgãos do governo brasileiro, os pesquisadores não seguiram as normas sobre consentimento informado estabelecidas pelos códigos bioéticos internacionais da época: o Código de Nuremberg, de 1947, e a Declaração de Helsinki, de 1964. “Os Yanomami não sabiam qual seria o uso das amostras, alguns pensaram que se tratava de algum procedimento médico, assim como não sabiam que o sangue poderia ficar congelado em um laboratório até hoje, fato que os ofende profundamente. (...) Recentemente, as amostras foram utilizadas para extração de material genético, novamente sem o consentimento dos Yanomami”, declarou Jankiel de Campos, Analista Pericial em Antropologia do Ministério Público Federal em Roraima.

O trabalho do Ministério Público está atualmente na fase de inquérito civil que precede e, em muitos casos, substitui ações judiciais quando os interesses dos povos indígenas são atendidos espontaneamente. Segundo Jankiel de Campos, tais solicitações, feitas não em nome de alguns indivíduos, mas em nome do povo yanomami, representam passo inédito na discussão sobre apropriação de material genético e o estabelecimento de regras mais claras de conduta ética em pesquisas científicas: “Apesar de haver outros povos em situação similar, não temos conhecimento de algum que conseguiu reaver seu material genético. Por isso, o caso dos Yanomami está prestes a se tornar um exemplo que terá repercussão internacional. Mesmo que não que não seja mais possível punir os responsáveis por essas arbitrariedades, vamos garantir que isso não se repita e incentivar outras comunidades a tomar iniciativas no sentido de serem reparadas. Hoje, o consentimento prévio informado é algo estabelecido na comunidade científica internacional e mesmo que situações como essas se repitam haverá uma reação imediata e não com 30 anos de atraso como ocorreu com os Yanomami”. > subir


Controvérsia da coleta de sangue entre os Yanomami cria novos parâmetros éticos em pesquisa científica

Os debates gerados a partir da descoberta da existência de amostras de sangue dos Yanomami, coletadas sem consentimento informado e o pedido formal de sua devolução emitido pelos representantes deste povo, podem definir novos parâmetros de responsabilidade e ética sociais das pesquisas conduzidas entre os povos indígenas. Este é a opinião de Robert Borofsky, Professor de antropologia da Universidade Hawaii Pacific, diretor do Centro por uma Antropologia Pública e organizador da coletânea Yanomami: The fierce controversy and what we can learn from it (Yanomami: a controvérsia feroz e o que podemos aprender dela) (University of California Press, 2005).

O Professor Borofsky participa de uma campanha pela devolução do sangue mantido em universidades norte-americanas às comunidades yanomami. “Os problemas da controvérsia yanomami vão muito mais fundo do que as ações de alguns poucos indivíduos. Eles dizem respeito ao fato de que muitos acadêmicos prezam demais sua autonomia individual e não querem ser limitados ou se sentirem responsáveis pelas pessoas que pagam seus salários ou lhes proporcionam informações com as quais constroem suas carreiras. Eles querem usar, como diz uma expressão americana, ‘fumaça e espelhos’ para manter um discurso público atrativo, mas, no final das contas, não querem sentir-se responsáveis por suas palavras ou ações”.

Jankiel de Campos, Analista Pericial em Antropologia do Ministério Público Federal em Roraima, que vem atuando diretamente no caso, compartilha da opinião e critica a forma como o debate foi conduzido de maneira retrógrada por alguns cientistas: “O caso dos Yanomami também colaborou para o avanço do debate sobre a ética na biomedicina, que progrediu muito nessa última década. Infelizmente, alguns cientistas, por absoluta arrogância, são incapazes de reavaliar os impactos de suas pesquisas sobre aquelas pessoas que foram essenciais para que elas pudessem ocorrer, preferindo a saída covarde de rotular de ‘obscurantista’ todos que ousam criticar seus procedimentos. Porém, tudo indica que eles estão se tornando uma minoria cada vez mais insignificante”.

Para Dário Yanomami, professor e membro da Hutukara Associação Yanomami, tanto a resistência em reconhecer o erro quanto a própria forma como as amostras foram obtidas são frutos de uma mesma mentalidade, que classifica os povos indígenas como intelectualmente incapazes: “O que os Brancos realmente pensam, o que realmente têm em seu interior, para nos chamarem de tolos? Nós os respeitamos, não os caluniamos, não dizemos que são tolos sem razão (....) Nós queremos promover discussões com os eles, mas eles não nos ouvem, falam que somos Índios e não prestam atenção ao que dizemos. Quando os Brancos são pequenos ainda, seus pais e mães ensinam essa palavra estranha, ‘Índio’, e eles crescem com ela na cabeça e a espalham de forma errada, seus pensamentos sobre nós se tornam tortos. ‘Ah, Índio é como cachorro, como animais, podemos tirar seu sangue, eles não entendem’, é o que os Brancos pensam”.

Reticência acadêmica - Segundo o Professor Borofsky, tal incapacidade de discutir esta problemática de maneira construtiva por parte de alguns cientistas resulta também da tendência de enclausuramento de instituições estadunidenses, que insistem em abafar as discussões: “Neste momento, não há muitas repercussões nos Estados Unidos porque várias instituições possuem amostra de sangue indígena, não querem devolvê-las e, assim, tentam se manter quietas sobre o problema. (...) Teremos que esperar para ver quais serão as repercussões de nossos esforços”. Entre as raras discussões públicas do assunto está o recente artigo publicado na revista The Chronicle of Higher Education, que aborda temas sobre o ensino superior nos Estados Unidos. (Ver: Yanomami na Imprensa - 03/03/2006 - "Blood Feud - A controversy over South American DNA samples held in North American laboratories ripples through anthropology)

Sem a atuação de algumas pessoas que insistem em extrair reflexões desse episódio e relembrar sua profundidade ética, tais tópicos seriam esquecidos em prol de uma retórica mais leve, como explica Borofsky: “A maioria da antropologia americana está fazendo o melhor possível para esquecer sobre os problemas éticos centrado sobre a controvérsia Yanomami e, sobre este ponto, está muito ocupada com seus próprios interesses específicos para se preocupar em devolver o sangue. A antropologia americana foi, usando um provérbio, ‘pega com as calças arriadas’ durante a controvérsia yanomami e está agora tentando agir agora como se nada tivesse ocorrido”.

Ação estudantil - Se por um lado os pesquisadores das universidades resistem em devolver as amostras de sangue, seus alunos se organizam e se manifestam publicamente em favor da demanda dos Yanomami. Assim, cerca de 200 estudantes das Universidades de Illinois, Michigan, Hawaii Pacific e Pierce College, que participaram da fase inicial da campanha do website do Yanomami Community Action (www.publicanthropology.org), enviaram ao Professor Kenneth Weiss, da Universidade Estadual da Pensilvânia, um pedido de devolução do sangue yanomami. Mais recentemente, cerca de 800 estudantes das Universidades de Notre Dame, Wisconsin, Georgia, Montana, Hawaii Pacific e Pierce College enviaram também cartas ao Presidente da Universidade da Pensilvânia. Ainda está prevista para o mês de abril a participação de centenas de estudantes das Universidades da Califórnia, Vermont e, novamente, Hawaii Pacific. Caso seu apoio aos Yanomami para a devolução das amostras de sangue seja ignorado, os estudantes escreverão aos membros da Assembléia Geral da Universidade do estado de Pensilvânia durante o processo de discussão de repasse de verbas do estado à universidade, alertando os legisladores estaduais sobre o problema.

Desfecho – Para o Professor Borofsky não há razão nenhuma na resistência das instituições, já que esta claro que todos os aspectos do procedimento de obtenção de consentimento informado foram ignorados no andamento das pesquisas. A situação seria diferente apenas se os Yanomami tivessem sido devidamente informados de que: 1) não teriam benefícios médicos nenhum destas pesquisas (o que, ao contrário, lhes foi prometido); 2) o sangue coletado seria armazenado em refrigeradores décadas após suas mortes; 3) os cientistas que coletaram e analisaram seu sangue cresceriam em suas carreiras e acumulariam pequenas fortunas a partir dos resultados desta pesquisa. Como nenhuma dessas condições foi, de fato, preenchida, o Professor Borofsky sentencia: “As amostras de sangue deveriam ser devolvidas e, se os pesquisadores americanos quiserem novas amostras, eles deveriam negociar um novo acordo de consentimento informado, com as condições e resultados amplamente divulgados”. > subir


Boletim Pró-Yanomami Nº 76 - Fechamento: 07/03/2006
Coordenação Editorial: Alcida Rita Ramos, Bruce Albert, Jô Cardoso de Oliveira
Redação: Luis Fernando Pereira


 

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