“Os Yanomami precisam de saúde para sobreviver e a atenção à saúde que a Funasa vem prestando a nós, não funciona (...)”  

Davi Kopenawa, Presidente da Hutukara Associação Yanomami
ao Ministro da Saúde, José Temporão
São Gabriel da Cachoeira, 21 de setembro de 2007

A caótica situação do convênio da FUNASA com a Fundação Universidade de Brasília-FUB colocou, ao final de três anos, o Distrito Sanitário Yanomami em uma de suas maiores crises desde o fim dos anos 90. O convênio da FUB, apesar de contar com um orçamento anual três vezes maior do que dispunha a conveniada que substituiu em julho de 2004 (incluindo os gastos na execução direta da FUNASA nas mesmas regiões atendidas),  levou a uma degradação generalizada da assistência hoje evidenciada pelos péssimos indicadores de saúde do Distrito Sanitário Yanomami.

Assim, a incidência da malária na Terra Yanomami desde 2006 retornou aos níveis epidêmicos da década de 90 e a doença voltou a ser causa de morte. Elevou-se a mortalidade infantil e a cobertura vacinal em crianças menores de 1 ano, em torno de 20 %, é uma das mais baixas do Brasil e do mundo. Com esse percentual de imunização, podemos temer, por exemplo, uma nova epidemia de coqueluche que poderá causar a morte de muitas crianças. Até mesmo a cobertura do tratamento em massa da oncocercose, doença restrita no Brasil à área Yanomami, apresenta hoje índices preocupantes. Antes do convênio da FUB, o tratamento na região tinha alcançado o mais alto nível entre os países das Américas. Verificamos hoje que aldeias de mais difícil acesso têm obtido taxas de tratamento insuficientes para que o país possa cumprir o seu compromisso internacional de erradicação da doença.

Além da evidente ineficiência deste convênio em termos de saúde pública, graves irregularidades foram detectadas na sua gestão pelo Ministério Público Federal e o pelo Tribunal de Contas da União-TCU em seu acórdão TC-019.700/2005-4:

•  pagamento a pessoas não contratadas para prestar serviços no Distrito Sanitário Yanomami;

•  deficiências na elaboração das prestações de contas;

•  despesas sem correlação com as metas, etapas ou fases programadas;

•  pagamento de pessoas sem especificação da função desempenhada;

•  ausência de procedimentos licitatórios

O TCU considerou também que o convênio serviu basicamente como veículo para a terceirização de atribuições de responsabilidade da FUNASA. Além disso, a FUB nem mesmo desempenhou esta função de terceirização, já que só operou uma “terceirização da terceirização”, através de uma entidade satélite, a Fundação Universitária de Brasília-FUBRA, para a contratação de profissionais de saúde para o Distrito Sanitário Yanomami. Vale destacar que essa situação é agravada pelo fato de a FUB e a FUBRA estarem sediadas longe do local de prestação dos serviços e nãoterem capacidade operacional para o desempenho dos objetos previstos. Apenas depois de 3 anos de convênio e somente em razão do julgamento do TCU, os dirigentes da FUB e da FUBRA decidiram montar um escritório na cidade de Boa Vista e, em seguida, transferiram a responsabilidade do convênio para uma terceira entidade, a FUNSAÚDE , afim de tentar se livrar dos impedimentos impostos pelo TCU.

Em seu julgamento, o TCU condenou a possibilidade de renovação do convênio FUNASA-FUB e determinou a aplicação de multa ao ex-presidente da FUNASA, Sr. Valdi Camacho, e ao ex-reitor da Universidade de Brasília, Sr. Lauro Morhy. Sobre as irregularidades, o TCU exige ainda que elas sejam devidamente auditadas para que haja o ressarcimento dos cofres públicos.

O julgamento do TCU teve ampla repercussão na imprensa nacional. Bastará citar aqui o eloqüente editorial do O Estado de S. Paulo de 26/6/2007:

O caso mais grave de mau uso de dinheiro público, julgado recentemente pelo TCU, refere-se a um convênio firmado em 2004 pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e pela Fundação Universidade de Brasília (FUB) para a prestação de assistência médica a uma tribo ianomâmi. O processo administrativo foi instruído por uma auditoria pedida pela Procuradoria-Geral da República. Segundo o TCU, o valor original do convênio era de R$ 10,9 milhões, mas, depois de receber 12 aditivos, passou a valer R$ 25,9 milhões. Além disso, não houve licitação pública para a contratação do órgão responsável pela assistência médica aos ianomâmis e parte dos recursos repassados pela Funasa à FUB acabou sendo utilizada para o pagamento de funcionários terceirizados. Entre as irregularidades detectadas pelos auditores do TCU estão autorizações de despesas sem correlação com as metas previstas pelo convênio, pagamento de pessoas sem especificação das funções que desempenharam e até despesas com serviços de taxi aéreo. Por fim, como o Estado mostrou em reportagem, os benefícios propiciados aos ianomâmis foram classificados como duvidosos, uma vez que o número de casos de malária aumentou significativamente durante a vigência do convênio .

Após a publicação do acórdão do TCU, e quando não parecia possível piorar a situação, representantes locais da FUB deflagraram entre os representantes indígenas do Conselho do Distrito Sanitário Yanomami, agentes de saúde indígenas e lideranças locais uma verdadeira campanha de cooptação através da distribuição de bens e privilégios, ou ameaças de paralisação da assistência, a fim de forçar a renovação do seu convênio com a FUNASA. Esta campanha tentou pressionar até o Presidente da Hutukara Associação Yanomami, Davi Kopenawa, que denunciou estas manobras à Procuradoria Geral de Roraima “ como forma de usar sua imagem em prol de uma campanha para a renovação do contrato de prestação de saúde indígena pela FUB ” (Certidão PGR-RR, 29/8/2007).

Por outro lado, causa também perplexidade o recente empenho do coordenador regional da FUNASA em garantir a continuidade do contrato da FUNASA com a FUB enquanto, no ano passado, expressava opinião contrária em artigos da Folha de Boa Vista (21/02/2006):

Ramiro Teixeira [Coordenador da FUNASA em Boa Vista , RR] explicou que a substituição da FUB deve acontecer devido a vários problemas que ocorreram na prestação do serviço de saúde e mau gerenciamento do convênio. Lembrou que durante quase dois anos de convênio ocorreram interrupções na prestação do atendimento, um dos principais fatores para que fosse solicitada à presidência da Funasa a rescisão do contrato com a conveniada. (...) ‘ Enfrentamos muitos problemas e sérios com a UnB, através da FUB, porque a gerência fica em Brasília. Além do aumento do custo de administração do convênio, tivemos uma eficácia muito baixa nos trabalhos', lembrou.” ( “Funasa estuda proposta de convênio com UFRR” ).

A pendência na prestação de contas já vem ocorrendo há algum tempo, e o coordenador [da Funasa-RR] explicou que foi feito um acordo com o Ministério Público Federal e a FUB não cumpriu ‘ Nós já pagamos valores sobrestados, dentro de um acordo com o Ministério Público Federal. Mas os problemas vêm se repetindo e nos desgastamos, além de prejudicar o nome da Funasa. No momento e em outros momentos também disponibilizamos os recursos. Agora não podemos pagar pela desorganização da Universidade de Brasília que é a responsável pela FUB ', ponderou. (...) ‘ A UnB na sua gerência do convênio ficava muito a desejar, uma série de problemas foi surgindo e a gente sempre tentando resolver. Agora estamos estudando com os técnicos da Funasa e a presidência a rescisão do contrato com a FUB...” ( “Trabalhadores em saúde da FUB realizam manifestação” ).

Desde a condenação do TCU, o convênio irregular e inoperante da FUB já foi prorrogado por duas vezes pela FUNASA, sob o falacioso pretexto do órgão de não haver alternativa para manter a assistência no Distrito Sanitário Yanomami. Enquanto isso, como em todos os anos, os profissionais de saúde deste convênio ameaçam paralisar a assistência na área Yanomami por atrasos crônicos no pagamento de seu salário ( Folha de Boa Vista , 28/09/07: “ Profissionais de saúde da área yanomami se reúnem para decidir sobre atraso salarial ” ).

Diante desta intensificação das ameaças à situação sanitária dos Yanomami e do cínico desperdício de dinheiro público em seu nome promovidos pelo convênio da FUB é absolutamente injustificável e inaceitável que a decisão do TCU não tenha sido cumprida desde junho passado.

Apelamos solenemente para que a FUNASA cancele definitivamente este convênio e convide oficialmente entidades reconhecidas por sua experiência em saúde indígena, já atuantes no Distrito Sanitário Yanomami ou não, a ampliar ou iniciar um trabalho de assistência para as populações até então supostamente atendidas pela FUB e suas entidades satélites.



Urihi-Saúde Yanomami

Outubro de 2007