A verdade sobre a saúde dos índios Yanomami

Ficamos surpresos que a FSP, um dos mais competentes e isentos veículos de comunicação do país, tenha publicado no dia 12/11/2006 uma matéria, intitulada “ONGs "ineptas" recebem 54% dos repasses ao setor, diz TCU” na qual, especificamente sobre a organização Urihi-Saúde Yanomami, é possível concluir que se trataria de entidade inepta, criada com o único objetivo de receber dinheiro público através de convênio com a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) e com sede na casa de seus dirigentes. Ou seja, uma entidade fantasma.

Só podemos acreditar que, por um descuido involuntário, o jornal não teve acesso a informações mínimas sobre a Urihi para a elaboração da matéria, que, a propósito, poderiam facilmente ser obtidas com um esforço jornalístico que fosse além de uma ligação para um telefone desativado da nossa organização.

Para desmentir cabalmente o conteúdo da reportagem bastaria citar a própria FSP. Em uma busca nos arquivos do jornal localizamos nada menos que sete matérias que citam a Urihi e fazem referências extremamente elogiosas ao seu trabalho. Uma delas, publicada no dia 07/10/2002 com o título “Ação de ONGs baixa mortalidade de índios” é dedicada exclusivamente à análise das atividades e dos expressivos e inéditos resultados da Urihi na atenção à saúde da população yanomami: “A tragédia das centenas de mortes de índios ianomâmis no Brasil, iniciada na década de 60 e considerada como um escândalo internacional, dá sinais de estar no fim”... “A redução das doenças é muito substancial. Isso ocorre porque eles [da Urihi] conseguem manter dentro da área ianomâmi, mesmo com todas as dificuldades, uma equipe de quase 150 pessoas, ininterruptamente. A decisão política da Funasa é a de manter esses convênios, pois esse é o caminho,” “afirmou Ubiratan Pedrosa Moreira, diretor do Departamento de Saúde Indígena da Funasa”.

Mas uma pesquisa para além das páginas da FSP encontraria muito mais sobre a Urihi. A sua relevante atuação em questões relacionadas à saúde dos yanomami foram tema de uma série de quatro matérias na Revista Época, a primeira delas com o título: “Odisséia na Selva”. ( Revista Época 07/01/2002)

No próprio site da FUNASA podemos destacar o seguinte comentário sobre a Urihi feito pelo ex-diretor do Departamento de Saúde Indígena, Dr. Alexandre Padilha, “... o convênio da FUNASA com a Urihi conseguiu bons resultados na redução da mortalidade infantil e no controle da malária nas regiões em que atuou entre os Yanomami nos estados de Roraima e Amazonas.”
(http://www.funasa.gov.br/sitefunasa/not/not2004/not133.htm).

O Distrito Sanitário Yanomami e a Urihi

Durante toda a década de 90, a execução direta das ações de saúde pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) no Distrito Sanitário Yanomami (DSY) foi extremamente mal sucedida demonstrando-se incapaz de resolver a situação de calamidade epidemiológica dos Yanomami. O quadro sanitário lastimável, ampla e regularmente divulgado pela imprensa nacional e internacional, chegou a despertar uma preocupação mundial quanto à sobrevivência desta etnia. O Estado brasileiro, constrangido por esta péssima publicidade, respondia às denúncias constantes sobre o “genocídio Yanomami” com a liberação de volumosos recursos financeiros que foram desperdiçados pela FUNASA local (Roraima) num modelo de execução direta totalmente ineficiente e altamente prejudicado por irregularidades e desvios financeiros, comprovados em sucessivas auditorias da própria FUNASA.

Ao mesmo tempo, entre 1994 e 1998, uma pequena parcela da população Yanomami vinha recebendo a assistência à saúde diretamente de uma organização não governamental, a Comissão Pró-Yanomami (CCPY, fundada em 1978), através do repasse de recursos da FUNASA. Em contraste com as aldeias Yanomami que recebiam assistência direta da FUNASA, neste modelo pioneiro de parceria com uma ONG todos os objetivos estavam sendo alcançados com melhora expressiva nos indicadores de saúde, o que apontava para as potencialidades da parceria entre o terceiro setor e a administração sanitária governamental.

Diante do exemplo piloto positivo da parceria com a CCPY e da também grave situação de saúde dos demais povos indígenas de todo o Brasil, que apresentavam os piores indicadores de saúde em comparação com qualquer outro grupo populacional do país, em 1999 o governo brasileiro decide implantar os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (ao todo 34 DSEIs) estabelecendo parcerias para a execução das ações de saúde em áreas indígenas preferencialmente com organizações não-governamentais.

Assim, em meados de 1999, a FUNASA convida insistentemente a CCPY a expandir o seu programa de saúde para cerca de 50 % da população do DSY. Ante a eminente dizimação dos Yanomami, a CCPY aceita o convite e, através de seus membros diretamente envolvidos na experiência bem sucedida de seu programa de saúde, funda uma nova organização totalmente direcionada para atender às novas demandas ampliadas da assistência e da educação em saúde. Assim, a URIHI-Saúde Yanomami é fundada em setembro desse mesmo ano e, através de convênio com a FUNASA, inicia as suas atividades no campo em janeiro de 2000. Ao contrário do que foi publicado, a sede da Urihi e sua base operacional nunca foram na casa de seus dirigentes e sim em um imóvel alugado na cidade de Boa Vista.

Ao longo dos seus 4,5 anos de atividades, a URIHI alcançou extraordinários resultados. A incidência de malária, principal causa mortis na década anterior, foi reduzida em mais de 99% durante o período e, desde 2001 até junho de 2004, não ocorreu nenhum óbito por esta doença nas áreas assistidas pela ONG. Trinta e um jovens yanomami foram capacitados no diagnóstico laboratorial da malária em suas comunidades. A mortalidade infantil foi reduzida em 65 % e a tuberculose começou a ser diagnosticada precocemente e sempre que possível tratada na área indígena. A cobertura vacinal em crianças menores de um ano atingiu pela primeira vez as metas preconizadas pelo Ministério da Saúde e o tratamento da oncocercose, doença restrita no país à área yanomami e em relação à qual o Brasil tem um compromisso internacional pela sua erradicação, alcançou uma das mais altas coberturas das Américas. O estado nutricional das crianças menores de cinco anos era acompanhado mensalmente, identificando a necessidade de intervenção nos casos freqüentes de desnutrição. Estas medidas permitiram um crescimento demográfico de cerca de 4% ao ano.

Desta forma, após quase cinco anos de trabalho exemplar, reconhecido internacionalmente, a URIHI conseguiu reverter nas aldeias yanomami sob sua assistência (7.500 índios) a situação de risco de extermínio gerado pela altíssima incidência de doenças e pela ineficiência dos serviços de saúde prestados anteriormente pelo Estado brasileiro.

No entanto, a URIHI decidiu não renovar a partir de julho de 2004 o seu convênio com a FUNASA em função de discordância nas mudanças na política de saúde indígena determinadas pelas Portarias Ministeriais Nº 69 e 70. Essa decisão, amplamente divulgada no meio indigenista e na imprensa em geral, baseou-se no fato de que as referidas Portarias voltavam a centralizar nas coordenações regionais da FUNASA as operações para a assistência nos DSEIs, sem que o órgão tivesse se preparado técnica, administrativa e politicamente para assumir esta tarefa, limitando a ação das ONGs, basicamente, à contratação de recursos humanos, caracterizando uma irregular triangulação de pagamento de pessoal para o exercício de atividades diretamente executadas pelo poder público.

Por ocasião da decisão da URIHI em não mais renovar o convênio com a FUNASA, não apenas o órgão reconheceu o bom desempenho técnico e administrativo da URIHI à frente dos convênios como também lamentava a decisão da organização de não continuar com a parceria, como pode ser comprovado pelas palavras do ex-secretário executivo da FUNASA, Sr. Lenildo Morais, em entrevista à revista Época “Não tenho nenhuma ressalva a fazer sobre a atuação técnica e administrativa da Urihi. Eles trabalham muito bem e ficamos tristes que não houve acerto.” (Revista Época 31/05/2004).

Cabe relembrar também que, durante toda a década dos vários convênios da CCPY e da URIHI para a assistência à saúde dos Yanomami (período de 1994 a 2004), todas as prestações de contas dos recursos recebidos foram aprovadas pela FUNASA. Inclusive, uma cláusula dos convênios impedia que novas parcelas fossem liberadas pela FUNASA sem que as prestações de contas das parcelas anteriormente liberadas tivessem sido devidamente aprovadas pelo Setor Financeiro e pela Gerência de Convênios do órgão.

Com o fim do convênio da Urihi, os sócios da organização, aproveitando a vasta experiência sobre a saúde dos yanomami, têm se dedicado, voluntariamente, a produzir relatórios e análises da situação da assistência e da saúde no DSY. A sede atual da organização permanece na cidade de Boa Vista em um imóvel da CCPY.

Caos, aumento dos gastos e perseguição política

O retorno da execução direta das ações de saúde pela FUNASA no DSY foi desastroso. Em um contexto de loteamento de suas Coordenações Regionais, que no caso de Roraima contemplou grupos políticos historicamente anti-indígenas, o resultado foi uma degradação da assistência à saúde e um aumento das doenças e da mortalidade que foram denunciadas reiteradamente por lideranças e conselheiros indígenas do DSY desde 2004 e tiveram grande repercussão na imprensa local, nacional e internacional. A incidência da malária teve um catastrófico aumento de 470% em 2006, voltando aos níveis epidêmicos da década de 90, e mortes pela doença voltaram a ocorrer. Ao mesmo tempo, para aumentar a indignação, os gastos no DSY foram triplicados.

Toda essa situação vem sendo denunciada amplamente pela Urihi em muitos documentos e em reportagens nos principais veículos de comunicação do país. Ironicamente, o Senador por Roraima, Mozarildo Cavalcante, um empenhado defensor das causas anti-indígenas, “preocupado” com os indícios de irregularidades, pede ao TCU uma investigação especificamente sobre as contas do convênio da URIHI e também do Conselho Indígena de Roraima (CIR), organização indígena que teve um papel fundamental na estruturação do Distrito Sanitário do Leste de Roraima e ousou lutar contra políticos e grileiros do estado pelo direito constitucional de demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol.

Prestar contas ao TCU não seria nenhum problema não fosse o fato que a legislação vigente à época para a execução de convênios pelas ONGs era por demais omissa e subjetiva, permitindo hoje uma interpretação pelo TCU muito diferente, e conveniente aos interesses políticos atuais, da adotada pela FUNASA no governo anterior. Procedimentos administrativos que eram oficialmente recomendados são agora considerados como “irregularidades” por não seguirem estritamente as formalidades da lei 8666 (“lei das licitações” da administração pública), ainda que as ONGs não estivessem sujeitas à lei e não tenha havido, por parte da Urihi, desvio ou desperdício de dinheiro público. A FUNASA, por sua vez, a quem caberia agora dar as devidas explicações aos Yanomami e apoio às organizações conveniadas, se omite e aproveita a oportunidade para tentar desmoralizar e calar aqueles que criticam a sua má gestão e denunciam o seu loteamento político.



Urihi-Saúde Yanomami

Janeiro de 2007