Descobrindo os Brancos |
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Há muito tempo, meus avós, que habitavam Mõramahi araopë,
uma casa situada muito longe, nas nascentes do rio Toototobi, iam às vezes
visitar nas terras baixas outros Yanomami estabelecidos ao longo do rio
Aracá [1]. Foi lá que encontraram os primeiros brancos.
Esses estrangeiros coletavam fibra de palmeira piaçaba ao longo do rio.
Durante essas visitas nossos mais velhos obtiveram seus primeiros facões.
Eles me contaram isso muitas vezes quando eu era criança. Naquele tempo,
eles só encontravam brancos ao viajar muito longe de sua aldeia e não
iam vê-los sem motivo, simplesmente para visitá-los. Haviam visto suas
ferramentas metálicas e as cobiçavam, pois possuíam apenas pedaços de
metal que Omama deixara [2]. Era durante essas
longas viagens que, de vez em quando, eles conseguiam obter um facão ou
mesmo um machado. Trabalhavam então em suas plantações emprestando-o uns
aos outros. Quando um tinha aberto sua plantação, passava-o a um outro
e assim por diante. Eles emprestavam também essas poucas ferramentas metálicas
de uma aldeia a outra. Não era para procurar fósforos que iam ver os brancos
tão longe, não: tinham seus paus de cacaueiro para fazer fogo. Evidentemente,
eles achavam as panelas de alumínio muito bonitas, mas tampouco era por
isso que faziam aquelas viagens: também tinham vasilhas de terracota para
cozinhar sua caça. Era realmente por seus facões e seus machados que iam
visitar aqueles estrangeiros. Mas foi bem mais tarde, quando habitávamos Marakana, mais
para o lado da foz do rio Toototobi, que os brancos visitaram nossa casa
pela primeira vez. Na época, nossos mais velhos estavam ainda todos vivos
e éramos muito numerosos, eu me lembro. Eu era um menino, mas começava
a tomar consciência das coisas. Foi lá que comecei a crescer e descobrir
os brancos. Eu nunca os vira, não sabia nada deles. Nem mesmo pensava
que eles existissem. Quando os avistei, chorei de medo. Os adultos já os haviam encontrado
algumas vezes, mas eu, nunca! Pensei que eram espíritos canibais e que
iam nos devorar. Eu os achava muito feios, esbranquiçados e peludos. Eles
eram tão diferentes que me aterrorizavam. Além disso, não compreendia
nenhuma de suas palavras emaranhadas. Parecia que eles tinham uma língua
de fantasmas. Eram pessoas da "Comissão"
[3]. Os mais velhos diziam que eles roubavam as crianças, que já as
haviam capturado e levado com eles quando tinham subido o rio Mapulaú,
no passado [4]. Era por isso também que eu tinha muito medo: estava certo de que
também iam me levar. Meus avós já haviam contado muitas vezes essa história,
eu os ouvira dizer: "Sim, esses brancos são ladrões de crianças!",
e tinha muito medo. Por que eles levaram aquelas crianças? Eu me pergunto
isso ainda hoje. Quando aqueles estrangeiros entravam em nossa habitação, minha mãe
me escondia debaixo de um grande cesto de cipó, no fundo de nossa casa.
Ela me dizia então: "Não tenha medo! Não diga uma palavra!",
e eu ficava assim, tremendo sob meu cesto, sem dizer nada. Eu me lembro,
no entanto devia ser realmente muito pequeno, senão não teria cabido debaixo
daquele cesto! Minha mãe me escondia pois também temia que os brancos
me levassem com eles, como tinham roubado aquelas crianças, da primeira
vez. Era também para me acalmar, pois eu estava aterrorizado e só parava
de chorar quando estava escondido. Todos os bens dos brancos me assustavam
também: tinha medo de seus motores, de suas lâmpadas elétricas, de seus
sapatos, de seus óculos e de seus relógios. Tinha medo da fumaça de seus
cigarros, do cheiro de sua gasolina. Tudo me assustava, porque nunca vira
nada de semelhante e ainda era pequeno! Mas, quando seus aviões nos sobrevoavam,
eu não era o único a ficar assustado, os adultos também tinham medo; alguns
chegavam mesmo a romper em soluços, e todo mundo fugia para a mata vizinha!
Nós somos habitantes da floresta, não conhecíamos os aviões e estávamos
aterrorizados. Pensávamos que eram seres sobrenaturais voadores que iam
cair sobre nós e queimar todos. Todos tínhamos muito medo de morrer! Eu me lembro que também tinha medo das vozes que saíam dos rádios
e da explosão dos fuzis que matavam a caça. Perguntava-me o que todas
aquelas coisas que me pareciam sobrenaturais poderiam ser! Perguntava-me
também por que aquelas pessoas tinham vindo até nossa casa. Mais tarde, realmente comecei a crescer e pensar direito, mas continuei
a me perguntar: "O que os brancos vêm fazer aqui? Por que abrem caminhos
em nossa floresta?". Os mais velhos me respondiam: "Ele vêm
sem dúvida visitar nossa terra para habitar aqui conosco mais tarde!".
Mas eles não compreendiam nada da língua dos brancos; foi por isso que
os deixaram penetrar em sua terra dessa maneira amistosa. Se tivessem
compreendido suas palavras, acho que os teriam expulsado. Aqueles brancos
os enganaram com seus presentes. Deram-lhes machados, facões, facas, tecidos.
Disseram-lhes, para adormecer sua desconfiança: "Nós, os brancos,
nunca os deixaremos desprovidos, lhes daremos muito
de nossas mercadorias e vocês se tornarão nossos amigos!". Mas, pouco
depois, nossos parentes morreram quase todos em uma epidemia, depois em
uma outra. Mais tarde, muitos outros Yanomami novamente morreram quando
a estrada entrou na floresta [5] e bem mais ainda quando
os garimpeiros chegaram ali com sua malária. Mas, dessa vez, eu tinha
me tornado adulto e pensava direito; sabia realmente o que os brancos
queriam ao penetrar em nossa terra. DESCOBRIR O DESCOBRIMENTO Os brancos são engenhosos, têm muitas máquinas e mercadorias, mas
não têm nenhuma sabedoria. Não pensam mais no que eram seus ancestrais
quando foram criados. Nos primeiros tempos, eles eram como nós, mas esqueceram
todas as suas antigas palavras. Mais tarde, atravessaram as águas e vieram
em nossa direção. Depois, repetem que descobriram esta terra. Só compreendi
isso quando comecei a compreender sua língua. Mas nós, os habitantes da
floresta, habitamos aqui há longuíssimo tempo, desde que Omama
nos criou. No começo das coisas, aqui só havia habitantes da floresta,
seres humanos [6]. Os brancos clamam hoje: "Nós
descobrimos a terra do Brasil!". Isso não passa de uma mentira. Ela
existe desde sempre e Omama nos criou com ela. Nossos ancestrais
a conheciam desde sempre. Ela não foi descoberta pelos brancos! Muitos
outros povos, como os Makuxi, os Wapixana, os Waiwai, os Waimiri-Atroari,
os Xavante, os Kayapó e os Guarani ali viviam também! Mas, apesar disso,
os brancos continuam a mentir para si mesmos pensando que descobriram
esta terra! Como se ela estivesse vazia! Como se os seres humanos não
a habitassem desde os primeiros tempos! Os brancos foram criados em nossa floresta (urihi a) por Omama
mas ele os expulsou porque temia sua falta de sabedoria e porque eram
perigosos para nós [7]. Ele lhes deu uma terra, muito
longe daqui, pois queria nos proteger de suas epidemias e de suas armas.
Foi por isso que os afastou. Mas esses ancestrais dos brancos falaram
a seus filhos dessa floresta e suas palavras se propagaram por muito tempo.
Eles se lembraram: "É verdade! Havia lá, ao longe, uma outra terra
muito bela!", e voltaram para nós. Na margem desta terra do Brasil
aonde eles chegaram viviam outros índios. Esses brancos eram pouco numerosos
e começaram a mentir: "Nós, os brancos, somos bons e generosos! Damos
presentes e alimentos! Vamos viver a seu lado nesta terra com vocês! Seremos
seus amigos!". Era com essas mesmas mentiras que tentavam nos enganar
desde que também chegaram a nós. Depois dessas primeiras palavras de mentira
eles foram embora e falaram entre si. Depois voltaram muito numerosos. No começo,
sem casa nesta terra, ainda mostravam amizade pelos índios. Tinham visto
a beleza desta floresta e queriam se estabelecer aqui. Mas desde que se
instalaram realmente, desde que construíram suas habitações e abriram
suas plantações, desde que começaram a criar gado e a cavar a terra para
procurar ouro, esqueceram sua amizade. Começaram a matar as
gentes da floresta que viviam perto deles. Nos primeiros tempos, os seres humanos eram muito numerosos nesta
terra. É o que diziam nossos mais velhos. Não havia doenças perigosas,
sarampo, gripes, malária. Estávamos sozinhos, não havia garimpeiros para
queimar o ouro, fábricas para produzir ferro e gasolina, carros e aviões.
A floresta e os que a habitavam não estavam o tempo
todo doentes. Foi apenas quando os brancos se tornaram muito numerosos
que sua fumaça-epidemia xawara começou a aumentar e se propagar
por toda parte. Essa coisa má se tornou muito poderosa e foi assim que
as gentes da floresta começaram a morrer [8]. Quando
viviam sem os brancos nossos ancestrais não tinham fábricas, caçavam e
trabalhavam em suas plantações para fazer crescer seu alimento. Também
não sujavam todos os rios como esses brancos que agora procuram ouro em
nossas terras. "Nós descobrimos estas terras! Possuímos os livros e, por isso,
somos importantes!", dizem os brancos. Mas são apenas palavras de
mentira. Eles não fizeram mais que tomar as terras das gentes da floresta
para se pôr a devastá-las. Todas as terras foram criadas em uma única
vez, as dos brancos e as nossas, ao mesmo tempo que o céu. Tudo isso existe
desde os primeiros tempos, quando Omama nos fez existir. É por
isso que não creio nessas palavras de descobrir a terra do Brasil. Ela
não estava vazia! Creio que os brancos querem sempre se apoderar de nossa
terra, é por isso que repetem essas palavras. São também as dos garimpeiros
a propósito de nossa floresta: "Os Yanomami não habitavam aqui, eles
vêm de outro lugar! Esta terra estava vazia, queremos trabalhar nela!".
Mas eu, sou filho dos antigos Yanomami, habito a floresta onde viviam
os meus desde que nasci e eu não digo a todos os brancos que a descobri!
Ela sempre esteve ali, antes de mim. Eu não digo: "Eu descobri esta
terra porque meus olhos caíram sobre ela, portanto a possuo!". Ela
existe desde sempre, antes de mim. Eu não digo: "Eu descobri o céu!".
Também não clamo: "Eu descobri os peixes, eu descobri a caça!".
Eles sempre estiveram lá, desde os primeiros tempos. Digo simplesmente
que também os como, isso é tudo. O POVO DAS MERCADORIAS Quando viajei para longe, vi a terra dos brancos lá onde havia muito
tempo viviam seus ancestrais. Visitei a terra que eles chamam Eropa. Era
sua floresta, mas eles a desnudaram pouco a pouco cortando suas árvores
para construir suas casas. Eles fizeram muitos filhos, não pararam de
aumentar, e não havia mais floresta. Então, eles pararam de caçar, não
havia mais caça também. Depois, seus filhos puseram-se a fabricar mercadorias
e seu espírito começou a obscurecer-se por causa de todos esses bens sobre
os quais fixaram seu pensamento. Eles construíram casas de pedra, para
que não se deteriorassem. Continuaram a destruir a floresta, dizendo-se:
"Nós vamos nos tornar o povo das mercadorias! Vamos fabricar muitas
delas e dinheiro também! Assim, quando formos realmente muito numerosos,
jamais seremos miseráveis!". Foi com esse pensamento que eles acabaram
com sua floresta e sujaram seus rios. Agora, só bebem água "embrulhada",
que precisam comprar. A água de verdade, a que corre nos rios, já não
é boa para beber. Nos primeiros tempos, os brancos viviam como nós na floresta e seus
ancestrais eram pouco numerosos. Omama transmitiu também a eles
suas palavras, mas não o escutaram. Pensaram que eram mentiras e puseram-se
a procurar minerais e petróleo por toda parte, todas essas coisas perigosas
que Omama quisera ocultar sob a terra e a água porque seu calor
é perigoso. Mas os brancos as encontraram e pensaram fazer com elas ferramentas,
máquinas, carros e aviões. Eles se tornaram eufóricos e se disseram: "Nós
somos os únicos a ser tão engenhosos, só nós sabemos realmente fabricar
as mercadorias e as máquinas!". Foi nesse momento que eles perderam
realmente toda sabedoria. Primeiro estragaram suas próprias terras antes
de ir trabalhar nas dos outros para aumentar suas mercadorias sem parar.
Nunca mais eles se disseram: "Se destruirmos a terra, será que seremos
capazes de recriar uma outra?". Quando conheci a terra dos brancos isso me deixou
inquieto. Algumas cidades são belas, mas seu barulho não pára nunca. Eles
correm por elas com carros, nas ruas e mesmo com trens debaixo da terra.
Há muito barulho e gente por toda parte. O espírito se torna obscuro e
emaranhado, não se pode pensar direito. É por isso que o pensamento dos
brancos está cheio de vertigem e eles não compreendem nossas palavras.
Eles não fazem mais que dizer: "Estamos muito contentes de rodar
e de voar! Continuemos! Procuremos petróleo, ouro, ferro! Os Yanomami
são mentirosos!". O pensamento desses brancos está obstruído, é por
isso que eles maltratam a terra, desbravando-a por toda parte, e cavam
até debaixo de suas casas. Eles não pensam que ela vai acabar por desmoronar.
Eles não temem cair no mundo subterrâneo. Porém, é assim. Se os "brancos-espíritos-tatus-gigantes"
[mineradoras] entram por toda parte sob a terra para retirar os minérios,
eles vão se perder e cair no mundo escuro e podre dos ancestrais canibais
[9]. Nós, nós queremos que a floresta permaneça como é, sempre. Queremos
viver nela com boa saúde e que continuem a viver nela os espíritos xapiripë,
a caça e os peixes. Cultivamos apenas as plantas que nos alimenta, não
queremos fábricas, nem buracos na terra, nem rios sujos. Queremos que
a floresta permaneça silenciosa, que o céu continue claro, que a escuridão
da noite caia realmente e que se possam ver as estrelas. As terras dos
brancos estão contaminadas, estão cobertas de uma fumaça-epidemia xawara
que se estendeu muito alto no peito do céu. Essa fumaça se dirige para
nós mas ainda não chega lá, pois o espírito celeste Hutukarari a repele
ainda sem descanso. Acima de nossa floresta o céu ainda é claro, pois
não faz tanto tempo que os brancos se aproximaram de nós. Mas bem mais
tarde, quando eu estiver morto, talvez essa fumaça aumente a ponto de
estender a escuridão sobre a terra e de apagar o sol. Os brancos nunca
pensam nessas coisas que os xamãs conhecem, é por isso que eles não têm
medo. Seu pensamento está cheio de esquecimento. Eles continuam a fixá-lo
sem descanso em suas mercadorias, como se fossem suas namoradas. Depoimento recolhido, traduzido do Yanomami e editado por Bruce Albert, antropólogo do IRD (São Paulo-Paris). Tradução do francês de Maria Lucia Machado. Fonte : A outra margem do Ocidente,
A. Novaes (org.). São Paulo : MINC-FUNARTE, Companhia das Letras,
1999. p.15-21. Desenhos
de Davi Kopenawa (Coleção B. Albert). [1] O rio Aracá é, como o rio Toototobi,
um afluente do rio Demini, ele próprio tributário da margem esquerda do
rio Negro.... [2] Os antigos Yanomami possuíam fragmentos
de facões e de machados muito gastos, que obtinham por um complexo circuito
de trocas interétnicas, mas cuja origem atribuíam a Omama, seu
herói cultural..... [3] Uma equipe da Comissão dos Limites (CBDL)
subiu o rio Toototobi em 1958-9.... [4] Alusão a uma primeira visita da CBDL
ao rio Toototobi, em 1941..... [5] A BR-210 (Perimetral Norte), aberta em
1973-4 e abandonada em 1976, depois de cortar duzentos quilômetros a sudeste
do território yanomami.... [6] A autodesignação dos Yanomami - yanomae
thëpë - significa antes de tudo "seres humanos', e se aplica
também aos outros índios, opondo-se aos animais, aos seres sobrenaturais
e, em certa medida, aos não-índios (napëpë).... [7] Os brancos foram criados por Omama
a partir do sangue de um grupo de ancestrais Yanomami devorados por lontras
e jacarés numa grande enchente provocada pela quebra de um resguardo menstrual.... [8] A expressão xawara wakëxi ("epidemia
fumaça") designa aqui a um só tempo as epidemias e a poluição, às
quais é atribuída a mesma origem: a fusão do ouro, dos metais, e dos carburantes
extraídos da terra para produzir as mercadorias dos brancos e abastecer
seus veículos.... [9] O universo yanomami
compõe-se de quatro níveis superpostos suspensos em um "grande vazio".
O mundo subterrâneo foi formado pela queda do nível terrestre na aurora
dos tempos. É habitado pelos ancestrais Yanomami da primeira humanidade,
que se tornaram monstros canibais (os aõpataripë).... |
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