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Ritual
e reconstrução
Por Eduardo Brandão e Álvaro Machado
Claudia Andujar/Divulgação
O
livro “A vulnerabilidade do ser” reúne 150 trabalhos da fotógrafa
Claudia Andujar
Leia abaixo um dos textos que fazem parte do livro “A vulnerabilidade
do ser” (Cosac & Naif/Pinacoteca do Estado), que reúne 150
imagens da fotógrafa Claudia Andujar e ensaios de Laymert Garcia dos
Santos, Pietro Maria Bardi e Paulo Herkenhoff, entre outros, a respeito da obra
da artista.
Organizado por Alvaro Machado e Eduardo Brandão, o livro será
lançado em 19 de fevereiro de 2005, na Pinacoteca do Estado, às
15h. Na ocasião, será realizado um debate com a participarão
de Claudia Andujar, da crítica de arte Lisette Lagnado, editora de Trópico,
do antropólogo Rogério Duarte e do curador de fotografia Diógenes
Moura. De 29 de janeiro a 20 de março a Pinacoteca estará apresentando
uma exposição de trabalhos da fotógrafa.
***
Conhecer a trajetória e os métodos de trabalho de Claudia Andujar
no decorrer de longas conversas com a artista permitiu-nos situar sua obra no
panorama da fotogra?a contemporânea. Nessas entrevistas, a artista revelou
soluções de que lançou mão em suas séries
com os yanomami -recursos a tal ponto conceituais que de?nitivamente distanciam
sua obra dos territórios da documentação e do naturalismo.
Além de métodos pessoais de preparação para a tomada
de imagens durante três estadas em uma aldeia yanomami em Roraima (entre
1974 e 1977), Claudia criou e explorou, nas duas últimas décadas,
e já em ateliê, sistemas de interferência sobre a imagem
que lhe permitiram agregar informações ao próprio acervo
constituído.
Em grande parte inédito, esse conjunto de trabalhos indica que, em vez
de sedimentar um estilo “seguro” ou identi?cável, a artista
preferiu mergulhar em intensa pesquisa formal, antecipando, de modo visionário,
conceitos e estéticas notados em fotogra?a apenas a partir dos anos 80,
no contexto da chamada pós-modernidade.
No repertório constituído a partir de 1974 junto aos yanomami
1, Claudia obtém resultados que situam sua fotogra?a muito além
do retrato clássico que praticara nos anos 60 -e, para tanto, a artista
não incorre em arti?cialismos de acabamento. Sua perseverança
em “recriar as imagens do invisível” 2 -ou seja, a manifestação
xamânica e a mitologia yanomami- e os tratamentos que conferiu a essas
séries identi?cam-na, em clave precursora, à tendência chamada,
nos anos 80 e 90, “foto construída” (“photo fabriqué”
ou “construction of reality”).
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* *
A relação de con?ança mútua que estabeleceu com
esses índios e o testemunho de seus rituais xamânicos determinam,
numa primeira instância, uma nova abordagem da experiência fotográ?ca,
com a permeação do olhar da fotógrafa às atitudes
assumidas diante de sua câmera -radicalmente opostas ao chavão
romântico da inocência indígena.
Numa segunda instância, a partir de 1977 e já em estúdio,
a experiência com os yanomami conduz a artista a um processo de decantação
e apuramento formal e conceitual, resultado indireto de sua expulsão
dos territórios indígenas por autoridades federais.
A partir de relatos dos yanomami acerca de “encontros com os espíritos”
proporcionados pelo pó alucinógeno yãkõana, Claudia
passa a conceber sua interpretação imagética dos rituais
de transcendência xamânica -ponto aglutinador da cultura yanomami,
experiência que dissolve as fronteiras entre os humanos, os deuses e a
natureza para integrá-los em uma continuidade.
Davi Kopenawa Yanomami assim descreve as imagens ritualísticas construídas
ao longo de toda a sua iniciação xamânica e que a?nal se
concentram na experiência da aspiração do yãkõana:
“Quando os olhos estão morrendo, começa-se a ver luzes cintilantes
que tremem nas alturas, vindas de todas as direções do céu”
3.
O yanomami assiste então à chegada de espíritos iluminados
com cores brilhantes que, armados de “espadas”, cortam ao meio sua
coluna vertebral, sua cabeça e sua língua. Ele desmaia, e agora
os espíritos podem “virar do avesso” seu corpo. A partir
desse ponto, o xamã está apto a se comunicar, por meio de visões,
com os espíritos dos criadores de seu povo e de seus antepassados, bem
como dos animais, plantas e árvores da ?oresta.
Essa epopéia espiritual e visual suscitou o desa?o de transpor sua essência
para a fotogra?a, o que levou a artista a vedar a sala de seu apartamento na
metrópole paulistana, de modo a transformá-la num ambiente com
luminosidade próxima à da maloca indígena. Nesse “laboratório
performático”, Claudia estudou as condições que possibilitariam,
já na aldeia yanomami, obter imagens que ultrapassariam o estatuto de
mero documento do transe xamânico.
Na combinação de recursos técnicos tradicionais com estratégias
pessoais, uma de suas principais idéias foi a substituição
de equipamentos de ?ash pela distribuição de lampiões de
querosene no interior da oca. Com isso, a imagem exibe uma espécie de
“deslocamento” dos elementos à volta do índio, sugerindo
a migração de sua consciência: focados em primeiro plano,
os indivíduos parecem ?utuar sobre um fundo de luzes pulsantes, em trabalhos
que con?guram uma verdadeira “proeza do olhar” na mimese de seu
tema. Visão e percepção encontram-se de tal modo sintonizadas
com seu objeto que os resultados, obtidos unicamente pelo processo tradicional
de revelação em laboratório, constituem por si só
um exemplo acabado de construção pictórica.
De forma semelhante, para registrar caçadas yanomami na selva amazônica
-cuja luz ?ltrada pelo emaranhado das copas das árvores resulta “chapada”,
ou monótona- Claudia espalha vaselina líquida nas margens das
lentes, de maneira a conferir movimento ao elemento vegetal, no qual aliás
o índio percebe vida anímica.
Enquanto no circuito artístico internacional a fotogra?a era praticada
apenas como registro de perfomance, ou pouco mais que isso, Claudia propunha
autênticas elaborações plásticas sobre esse suporte.
Vários artistas projetados nas décadas seguintes valeram-se de
procedimentos semelhantes aos praticados nos anos 70 pela fotógrafa brasileira
-Cindy Sherman realizou “back projections” no interior de seu apartamento
nos anos 80, Jeff Wall montou os cenários de seus “cybachrome”
nos anos 90 e assim por diante.
À época em que esses artistas eram divulgados, Claudia elaborava,
ainda sobre o tema da cultura yanomami, uma série de novos tratamentos
que por sua vez antecipavam, embora com processos mecânicos tradicionais,
técnicas de intervenção e mixagem digitais em imagens fotográ?cas.
Nesse gênero de criação inclui-se a instalação
“Genocídio yanomami, morte no Brasil”, montada em 1988 no
Museu de Arte de São Paulo. A obra projetava, sobre espelhos e painéis
côncavos, imagens tomadas nos anos 70 e refotografadas anos mais tarde,
com iluminação especial.
As projeções engendravam -na descrição de Claudia-
uma “?oresta de imagens”, que incidia também sobre o corpo
do visitante. Tal estratégia de reapropriação e reinterpretação
de imagens alinha, sem dúvida, a produção da fotógrafa
ao gesto de artistas da geração dos anos 90 que se reapropriam
tanto de suas próprias obras fotográ?cas quanto de arquivos externos,
notadamente Rosangela Rennó.
Outra década transcorre até a montagem de nova instalação,
“Na sombra das luzes”, que, em sala especial da 24ª Bienal
Internacional de São Paulo (1998), dispõe outra vez em espaço
circular ampliações gigantescas, numa escala muito diferente da
escola clássica moderna presente no núcleo inicial da obra da
artista. Em 2002, atendendo ao convite do curador Hervé Chandes para
integrar mostra na Fundação Cartier, em Paris, Claudia idealiza
ainda uma outra concepção para seu “arquivo yanomami”:
na série intitulada “Sonhos”, transparências são
superpostas de modo a gerar uma terceira imagem e um novo conceito. “Sonhos”
questiona de?nitivamente o mito da “naturalidade” indígena,
ao mesmo tempo que revela uma alteridade de força descomunal, completamente
alheia à experiência cartesiana ocidental.
*
* *
Viradas de século parecem especialmente propícias para fazer germinar
sementes de re?exão sobre a evolução da espécie
humana e do ambiente. O laboratório de imagens, ou “teatro da experiência”,
instituído por Claudia Andujar em pleno sertão brasileiro e o
tratamento plástico adotado pela artista a partir dos anos 70 estabelecem
surpreendente relação com o movimento internacional pictorialista
de fotogra?a na passagem entre os séculos XIX e XX, cujo modelo foi classi?cado
como decadentista e retrógrado pelas vanguardas modernistas européias
dos anos 20.
Em imagens colorizadas numa única tonalidade -tratamento também
adotado em parte da produção recente de Andujar-, os pictorialistas
reacendiam, em meio às contradições da industrialização
onipresentes no mundo ocidental, ideais humanistas da Antigüidade clássica.
Em diversas partes do mundo, fotógrafos revisitavam então ícones
da pintura e da escultura para celebrar culturas e mitologias, do panteísmo
indígena ao ideal helenista, do sacrifício cristão primitivo
ao arcadismo. Notáveis, na América do Norte e na Europa, são
as obras de P.H. Emerson (1856-1936), Alfred Stieglitz (1864-1946), Holland
Day (1864-1933) e do barão Van Gloeden (1856-1931).
Artistas italianos ?xados na América do Sul constituem singulares exemplos
do espírito desse movimento. O arquiteto, pintor e fotógrafo Augusto
César Ferrari (1871-1970) -pai do artista iconoclasta Leon Ferrari-,
radicado em Buenos Aires, concebeu fotopinturas nas quais personagens bíblicos
perambulam entre cenários e objetos modernos, uma das principais características
da estética pictorialista. O pintor, etnógrafo e fotógrafo
Guido Boggiani (1861-1901) ?xou-se em uma aldeia indígena no Paraguai,
obtendo, a partir de então, admiráveis negativos em vidro sobre
os Kadiwéu (com suas elaboradas pinturas corporais), os Chamacoco e outros
povos que ocupavam do Chaco paraguaio ao sul mato-grossense. Foi morto durante
um conflito entre etnias vizinhas.
À maneira de Boggiani, Claudia Andujar realizou sem meios-termos o movimento
em direção à diversidade, integrando-se por extensos períodos
à vida indígena e atingindo, desse modo, densidade na re?exão
sobre o apagamento de identidades sob o rolo compressor capitalista em estágio
de entesouramento de informação genética.
Em sua interpretação e reconstrução das idealidades
yanomami, Claudia passou a espelhar não só o processo de acuamento
desse povo, mas também os êxodos e aniquilamentos de centenas de
etnias e culturas no mundo inteiro, notadamente após as duas grandes
guerras (eventos que aliás esfacelaram o núcleo familiar da artista,
no antigo Estado húngaro).
Suas imagens, que ecoam uma formação marcada por subseqüentes
exílios e uma absorção cultural cosmopolita, acumulam níveis
de informação passíveis de leitura universal. Em sua aliança
com o humanismo mais clássico e numa postura ética de reverência
pela natureza alcançam dimensão ainda mais ampla que a saga de
sobrevivência dos yanomami.
O
livro
"A Vulnerabilidade do Ser", de Claudia Andujar. Ed. Cosac
& Naif/Pinacoteca do Estado de São Paulo. 322 págs. R$ 65.
As
exposições
"Claudia Andujar". Na Pinacoteca do Estado (praça da Luz, 2,
tel. 3229-9844, São Paulo). Das 10h às 17h30. Até 20/3.
"Claudia Andujar e Chiara Banfi". Na Galeria Vermelho (r. Minas Gerais,
350, tel. 3257-2033, São Paulo). Das 10h às 19h. Até 5/3.
Eduardo
Brandão e Alvaro Machado
Eduardo
Brandão é sócio-proprietário da Galeria Vermelho
e professor de fotografia na Faap.
Alvaro
Machado é jornalista, autor de "A Sabedoria dos Animais" (ed.
Ground) e organizador de "Aleksander Sokúrov" (ed. Cosac &
Naify) e de "Mestres-Artesãos" (ed. Sesc-SP). Coordena o site-catálogo
da editora Cosac & Naify.
1 - Publicadas em
"Yanomami" (São Paulo: DBA, 1998).
2
- Conforme declaração da fotógrafa, janeiro de 2005.
3
- Andujar, C., op. cit., p. 66, depoimento recolhido pelo pesquisador Bruce
Albert, do Institut de Recherche pour le Développement (IRD), Paris.