|
Sobre os incêndios
de Roraima - 1998
A seca e o fogo não chegaram sem motivo.
Omamari, o espírito do sol,
pousou seu pés sobre a floresta. Foi por isso que começou esse calor.
Seus pés desceram sobre a terra, pisaram as águas, as praias dos rios,
as colinas e as montanhas. Assim que os pés de Omamari se aproximaram
do topo da floresta, tudo começou a secar. Os fazendeiros, os colonos
e os outros brancos que moram ao redor da nossa terra não sabem nada sobre
o espírito do sol. Eles acenderam fogos por toda parte. Foi
assim que a floresta começou a queimar, porque a terra, as árvores e as
folhas já estavam todas secas.
Nós, habitantes da Serra do Vento (aldeia Demini), já conhecemos
estas coisas. Mas nem todos os Yanomami sabem. Em muitas casas, também
acenderam fogo nas suas roças. Mas o chão da floresta estava coberto de
folhas secas que começaram a queimar. O fogo passou para as ervas secas,
para os troncos de árvores mortas. As brasas voaram por toda parte com o vento. Quando vi isso, fiquei muito
preocupado. Pensei que os brancos, mas também os Yanomami,
foram muito esquecidos.
A fumaça aumentou pouco a pouco e, de repente, ela estava cobrindo
toda a floresta. Primeiro, ela subiu ao céu e, depois, baixou sobre nós.
Então, lembrei-me dos antigos e fiquei pensando que, nos tempos primevos,
toda a floresta já havia queimado assim. Pensei que poderia recomeçar.
Assim, pus-me a cheirar o pó da casca da árvore yãkõanahi para
fazer dançar meus espíritos xapiripë. Queria que eles descessem
para afastar esta fumaça para longe de nós. Os anciãos da aldeia não me
disseram para fazer isso; comecei sozinho, para tentar.
Meus espíritos tentaram soprar seu vento para afastar a fumaça. Mas não conseguiram. Ela já tinha aumentado
demais e estava cobrindo toda a floresta. Os fogos estavam em toda parte
ao redor de nós: na floresta, nos campos e até em torno da cidade dos
brancos. Então, meu sogro e outros pajés da nossa aldeia se juntaram a
mim para trabalhar. O fogo e a fumaça aumentavam sem parar. Faltavam,
ainda, os xamãs das outras aldeias Yanomami também atacar esta fumaça,
como a gente.
Onde moramos, perto da Serra do Vento, o
fogo também começou na roça. Mas logo ele começou a subir na montanha.
Então, mandamos todos nossos espíritos para flechar este fogo e jogar
água sobre ele. Assim, ele começou a parar de andar. Se não fosse isso, a floresta
teria queimado inteira. Na roça, fomos nós que apagamos o fogo, batendo
nele.
Nós também ficamos muito preocupados por causa da fumaça. Sabemos
que, na montanha, os në waripë, seres maléficos da floresta, cultivam
suas plantas de feitiçaria. Eles secam estas plantas e as sopram sobre
os humanos com suas zarabatanas. É assim que eles nos mandam doenças.
Quando o fogo começou a subir na Serra do Vento, nós pensamos que essas
plantas iriam queimar e que sua fumaça iria deslanchar uma epidemia que
poderia matar todos nós. As nuvens de fumaça sobre nós ficaram tão baixas
e lamacentas que quase afogamos. Não dava mais para enxergar a floresta,
os olhos ardiam, o peito ficava seco, a gente tossia sem parar. Não dava
mais para respirar.
Por isso, com meu sogro e os outros pajés da aldeia, trabalhamos
muito durante esse tempo. Chamamos a chuva. E nossos espíritos jogaram
água sobre as chamas. Eles sopraram seu vento para afastar a fumaça, para
jogá-la para longe de nós. Assim, aos pouco, ela acabou sumindo da floresta.
Mas acho que ela fica escondida no mundo embaixo da terra e, mais tarde,
ela poderá voltar.
Foi assim que a floresta já queimou no começo dos tempos. Sabemos
isso porque ouvimos as palavras dos antigos. Por isso achamos que a floresta
iria queimar-se toda novamente. Já sabíamos. Aconteceu há muito tempo,
lá pelo alto Rio Parima, nas serras. Era o tempo de Omama, que
criou os Yanomami. Foi ele que apagou as chamas batendo no fogo. Por isso
não chegou até as terras baixas. As savanas que existem nas terras altas
da nossa floresta, que chamamos purusi, são os rastros e o caminho
desse fogo antigo. São como as terras nuas ao redor da cidade, que os
Brancos chamam de lavrado. Não existem sem razão. A floresta já queimou assim, e as árvores nunca cresceram de novo.
Foi assim que os pés do sol já desceram sobre a floresta nos tempos
primevos. Quando eles ficam
no alto do céu, o calor da seca não é muito forte. Mas, quando eles pisam sobre a floresta, as árvores secam e tudo
se queima. Os peixes e os jacarés morrem. A caça e os humanos sofrem de
sede. Foi o que aconteceu, de novo.
Depoimento
recolhido, traduzido do Yanomami e editado por Bruce Albert, antropólogo
do IRD (São Paulo-Paris).
Fonte: Povos
Indígenas no Brasil 1996-2000. São Paulo: ISA, p.356. Desenhos: Davi Kopenawa
(Coleção B. Albert).
|
|