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Brasília,

 
 

 
  Os rios conhecem nosso sangue  
 



Entrevista de

 sobre coleta de sangue em Toototobi em 1967

 

Bruce Albert: Foi publicado um livro de Patrick Tierney, que se chama Trevas no Eldorado [Ver a seção Notícias – Eventos]. Ele conta de uma pesquisa em 1968, na Venezuela, durante uma epidemia de sarampo e que fizeram lá uma coleta de sangue. Mas sei que eles começaram esta pesquisa no Brasil, em vários lugares. Um deles foi o Toototobi, onde você morava quando era jovem, em 1967. Não sei se você se lembra de como foi essa pesquisa. Tem alguma lembrança ?

Davi : Posso falar na minha língua ?

Bruce : Claro !

Davi: Sim, eu sei disso. Naquela época, eu era ainda novo. Ainda não era esperto. Ainda tinha medo dos brancos. Os brancos que viviam entre nós [os missionários da New Tribes Mission de Toototobi] não nos contaram nada. Os brancos talvez tenham conversado entre eles. Eram, então, Keith [Wardlaw] e Bruce [Hartman].

Bruce : Eram missionários ?

Davi : Eram os missionários. Neste tempo, os nossos anciães ainda não sabiam. Eles pensaram que os brancos pegavam sangue à tôa e, por isso, doaram seu sangue a eles. Nossos anciães não perguntaram. Eles não disseram: “porque os brancos tiram nosso sangue?”.  O missionário também não contou nada para os nossos anciães. Não falaram para a gente: « Sim. Este branco médico vai tirar seu sangue para examiná-lo. No sangue de vocês, outros (médicos) talvez vão buscar doenças (epidêmicas) ou ver se ele está saudável». Não falaram e assim quiseram nos manter na ignorância. Eles enganaram os anciães. Os brancos falaram assim: “eu vou dar um terçado… quando você vier doar sangue. Eu darei um terçado quando você doar seu sangue, darei anzóis!“ Por isso, as pessoas foram até eles para doar sangue. Até mesmo de mim, de nós todos, os jovens, tiraram  sangue. Tiraram sangue das mulheres, dos velhos, dos moços, dos meninos, tiraram de todos. Nossos nomes (foram chamados), segundo os nomes de nossos pais. Eles juntaram pais e filhos, eles guardaram junto o sangue de pais e filhos. Quando tinha o sangue do filho, eles o colocavam junto com o do seu pai, com o nome. Eu sei disso. Isto estava perdido no meu pensamento… eu pensava, erradamente, que eles tinham tirado nosso sangue à tôa. Eu pensava assim. Porém, muito tempo se passou, os antigos estão mortos, os mais velhos estão mortos, minha mãe está morta, minha avó e meu avô também. Depois destas mortes, é só agora que ouço novamente falar dessa história. Ouvindo isso, hoje, eu realmente penso: « o branco não nos falou nada ! ‘este sangue de vocês aqui, vamos guardar no frio e mesmo que se passe muito tempo, mesmo que vocês morram, este sangue vai permanecer ainda‘  - não nos falou isso ! » Não falou. Por isso, hoje fico aflito pensando: « que posso fazer? » Sim, nossos antigos não estão mais aqui, porém nós, os seus filhos, ainda estamos vivos. Tem ainda alguns dos mais velhos vivos, algumas mulheres. Eu também estou vivo. Nesse caso, queremos perguntar a estes brancos que ainda querem olhar nosso sangue: « o que tem em nosso sangue ? O que vocês querem fazer com o que procuram nele ? » Os brancos, quando olham nosso sangue, eles o colocam em seu próprio sangue. Fazem isso porque querem se curar, é por isso que fazem isso. Assim eu penso agora.

Bruce : O que está escrito no livro é que todas as amostras de sangue - são muitas -, estão guardadas lá numa universidade e aí eles estão usando de novo para fazer outra pesquisa. Eles fizeram a primeira pesquisa, a antiga, e agora estão usando para fazer nova pesquisa, mas não falaram para ninguém do que se trata. Queria saber o que vocês acham disso. Você acham que tem que falar alguma coisa para vocês, vocês querem conversar com eles. Que vocês acham disso, de que o sangue está guardado lá e que eles vão fazer pesquisa nova com este sangue.

Davi : Eu penso assim : sozinho ou só nós dois não vai dar certo. Tenho que perguntar aos nossos velhos primeiro. Eu vou contar para eles. Eu vou fazer com que se lembrem. Tem pessoas ainda vivas desta gente de que tiraram sangue. Tem gente viva ainda. Vou falar assim : « Sim. Lembram-se daqueles brancos que tiraram nosso sangue, este sangue ainda existe. Por isso, ele vão fazer pesquisa de novo com nosso sangue. Vocês, que vêm daquele tempo, o que vocês acham disso ? Eu vou transmitir o que vocês, os mais velhos, pensam e dizem sobre este assunto. Eu falarei : sim, assim falaram os anciães que doaram seu sangue.» Nós pensávamos que o sangue tinha acabado, que eles o tinham jogado fora. Por isso, perguntaremos : « porque guardaram o nosso sangue, como uma cabaça de cinzas funerárias ? ». Outras pessoas (entre as que doaram sangue) já morreram. Por isso, perguntaremos : « para que vocês querem usar nosso sangue, examiná-lo desse modo? Vocês tiram sangue dos outros para examiná-lo com máquinas. Que vocês, brancos, querem com isso? Hoje, nós, Yanomami de agora - já que o nosso sangue está longe, na universidade deles, no país deles – nós pensamos assim …  Eu penso assim : o sangue das pessoas que já morreram existe ainda, queremos que o valor dele nos seja retornado. Uma vez feito isto, os Yanomami deverão ficar atentos. Quando outros brancos quiserem fazer a mesma coisa, nós deveremos recusar nosso sangue. É assim que eu penso.

Bruce : Vocês querem que devolvam o sangue ? Ou querem que eles dêem alguma coisa em troca, para compensar ?

Davi : Que dêem alguma coisa…O sangue já está longe. Já o levaram para longe. Por tê-lo levado para longe, que mandem coisas de valor. Eles devem dar coisas de valor… devem mandar dinheiro para os brancos que nos curam…nós queremos coisas para nos curar.

Bruce : Como compensação ?

Davi : Como compensação ! Esse sangue era o sangue das pessoas de Toototobi, é nosso sangue. E nós ainda ficamos  doentes. Ainda tem malária, ainda tem gripe. Por isso, os que tiraram nosso sangue devem nos compensar. Que eles devolvam seu valor aos brancos que nos curam e, com o dinheiro, estes deverão nos ajudar. É assim que eu penso.

Bruce : Você acha isso, mas vai falar com os anciães primeiro ?

Davi : Eu acho, mas falarei primeiro com os mais velhos, primeiro contarei sobre isso  a eles. Os mas velhos realmente não têm conhecimento, eles não sabem nada disso. Eles pensam : « comeram nosso sangue ou o jogaram fora ». Agora, ele vão escutar esta história inteira. Severiano, José, Sansão, Antonio estão vivos ainda, vou contar a eles. Norberto, Fialho, Luis, Passarinho, Paulino também estão vivos, eu vou contar a eles. Eu vou dizer a eles : « o que vocês acham ? este sangue que tiraram de nós, há tanto tempo, ainda existe. Vocês querem coisas de valor, querem dinheiro por este sangue ? Se querem, vamos pedir que nos seja retornado o valor deste sangue ». Quando eu falar, vão se lembrar: « ah, é mesmo! foi isto mesmo que os brancos fizeram! »

Bruce :  Vocês poderiam fazer uma carta…

Davi : Vou recolher a palavra dos mais velhos (me dizendo) : « Sim. Faça isto. Conte aos brancos. Se quiserem dar coisas de valor, peça isto. Se quiserem dar dinheiro, peça dinheiro e, com este dinheiro, compre coisas de valor como compensação. Coisas para curar, assim ficaremos contentes. »  Quando falarem assim, escreveremos uma carta. Depois, quando ela chegar aos brancos naquela universidade onde está nosso sangue, eles vão se dar conta e pensar : « ah ! Agora os Yanomami ficaram espertos ! Eles querem o retorno do valor do seu sangue ! Vamos dar então ! » Eles vão dar… Se quiserem compensar nosso sangue, será realmente certo.

Bruce: Se quiserem fazer outra pesquisa com o mesmo sangue antigo, o que vocês pensam que se deve fazer ? Podem fazer sozinhos ou devem falar com vocês ? Qual seria a maneira ….

Davi : Mesmo que nosso sangue seja antigo, que ele seja de muito tempo atrás, se eles fizerem uma pesquisa nova, devem nos contar. Se contarem, a gente vai responder : « Sim. Quando vocês quiserem fazer…

Bruce : tem que compensar…

Davi : tem que retornar o valor. Se retornarem o valor, está certo. »  Vamos  falar somente assim. De fato, já pegaram este sangue. « Façam. [Mas] retornem o valor primeiro. Se fizerem sem compensar, ficaremos lesados e faremos dó. Os mas velhos ficarão lesados e farão dó. »

Bruce: eles farão dó…

Davi : Eles não pensam : « é isto que fazem com nosso sangue ». Eles não sabem. Eles não pensam : « é isto que os brancos fazem com nosso sangue. » Se se conta a história para eles e se retorna o valor, então ficarão satisfeitos: “sim. Está bem. Eles fazem isto. De qualquer maneira, já pegaram nosso sangue há muito tempo, quando não tínhamos conhecimento». Quando fizerem outra pesquisa no sangue, no sangue dos Yanomami, se não tiver outras coisas nele, deverão contar por escrito : ‘sim. Não tem outras coisas no sangue de vocês. Não tem outra coisa no sangue de vocês, Yanomami [1]. Falarão assim. Agora, se vocês quiserem jogar nosso sangue, podem jogar. Derramem o sangue na água. Não o joguem no fogo ou na sujeira. Para nós, índios, há muito tempo, Omama [2] criou o sangue, por isso os brancos devem devolvê-lo às águas. Se for assim, este antigo verdadeiro que nos criou estará contente. Se jogarem nosso sangue no lixo, se ele for queimado, não vai ser bom. Se vocês dizem : « sim. O sangue não tem nada. Não tem outras coisas neste sangue. Está vazio (de doenças)», então vou pedir a vocês : « Sim. Se, agora, querem jogar o sangue fora, que o derramem nas águas. Devolvam-no assim ». Os rios conhecem o nosso sangue. A terra sobre a qual vivemos tem os olhos abertos e os ouvidos atentos. Não vê, mas enxerga. Por isso, devolvam-no deste modo.


Entrevista conduzida e traduzida do Yanomami por Bruce Albert, antropólogo do IRD (São Paulo-Paris) em Boa Vista (RR), dia 8 de abril de 2001.

NOTAS

[1] A explicação que Davi Kopenawa pressupõe aqui para pesquisa com sangue é um exame para diagnóstico de alguma doença, o que correponde à experiência recente que têm os Yanomami desta prática.

[2] O demiurgo Yanomami. Sua esposa, mãe da humanidade atual, era filha de Tëpërësik+, ser sobrenatural das águas profundas, sogro provedor das plantas de cultivo. Davi Kopenawa se refere provavelmente a esta origem, quando insiste sobre devolver o sangue Yanomami às águas.

 
 
 

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