DOCUMENTOS YANOMAMI

N.º3 - 2003

Fronteira agro-pecuária

e Terra Indígena Yanomami

em Roraima (I)

Editor deste número: Bruce ALBERT (IRD)


Criada em 1978 (e registrada em 1984), a Comissão Pró-Yanomami-CCPY (www.proyanomami.org.br), originalmente designada por Comissão pela Criação do Parque Yanomami, é uma organização não governamental brasileira, sem fins lucrativos, dedicada à defesa dos direitos territoriais, civis e culturais dos índios Yanomami. Trabalhou inicialmente na campanha nacional e internacional pela demarcação da Terra Indígena Yanomami (TIY), que veio a ocorrer em 1991. Paralelamente a essa campanha, a entidade empreendeu um trabalho intensivo de assistência em saúde na área Yanomami entre 1981 e 1999 - trabalho hoje assumido pela URIHI Saúde Yanomami (www.urihi.org.br), ONG parceira da CCPY. Após a homologação da TIY em 1992, a CCPY reorientou-se para atender, principalmente à demanda yanomami por educação intercultural, criando, a partir de 1995, uma rede de escolas na área indígena. Além desse projeto de educação em língua yanomami, a Comissão Pró-Yanomami iniciou em 2000 um programa de gestão ambiental na TIY, com a implementação de sistemas agro-florestais em áreas de longa sedentarização e recuperação de áreas degradadas pelas atividades garimpeiras.

Conselho Diretor: Alcida Rita Ramos (Presidente), Roque de Barros Laraia (Vice-Presidente), Bruce Albert, Henyo Trindade Barretto Filho e Carlo Zacquini. Secretaria Executiva: Fernando Bittencourt e Jô Cardoso de Oliveira. Assembléia de Sócios: Ana Valéria Araújo, Aurélio Virgílio Veiga Rios, Carlos Alberto Ricardo, Claudia Andujar, Daniele Marcelle Grannier, Ednelson de Souza Pereira, Fernando Bittencourt, George Cerqueira Leite Zarur, Jô Cardoso de Oliveira, Jussara Gomes Gruber, Luciano Mariz Maia, Marcos Wesley Oliveira. Sócios Honorários: Nelly Arvelo-Jiménez e Paulo Sérgio Pinheiro.

Julho/2003

Apoio Institucional

   
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DOCUMENTOS YANOMAMI Nº 3

Comitê Editorial:

Alcida Ramos

Bruce Albert

Jô Cardoso de Oliveira

Capa:

Mariana Fernandes

Editoração:

Formato 9 Produção Gráfica Ltda.

Brasília

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Introdução

A população Yanomami no Brasil foi estimada recentemente em cerca de 12.500 pessoas, distribuídas em 185 comunidades1. Essa população ocupa a região do alto rio Branco, no oeste do estado de Roraima, bem como a margem esquerda do rio Negro, no norte do estado do Amazonas. Nela predominam os falantes da língua Yanomami oriental (Yanomae ou Yanomama) com mais de 5.500 pessoas, ou seja cerca de 49 % da etnia no Brasil, situados na sua maioria em Roraima. Os falantes do Yanomami ocidental (Yanõmami ), cerca de 3.500 pessoas, constituem 30 % do grupo e são situados no estado do Amazonas. Os Sanumá (Yanomami setentrionais) representam 15 % dos Yanomami no Brasil e os Ninam (Yanam) dos rios Uraricaá, Mucajaí e Ajarani cerca de 6 %, ambos ocupando regiões do oeste de Roraima.

A Terra Indígena Yanomami abrange 96.650 km² de florestas tropicais, de florestas tropicais de altitude (entre 500 e 1200 metros) e savanas tropicais de altitude (acima de 1200 metros). É reconhecida pelos biólogos por sua grande relevância em termos de proteção da biodiversidade amazônica.2 Foi demarcada em novembro de 1991 e homologada por um Decreto presidencial em 25 de maio de 1992.3

Até o fim do século XIX, os Yanomami mantiveram contato apenas com outros grupos indígenas da região: Caribes (Ye'kuana, Purukoto, Sapara, Paushiana) e grupos isolados (Makú, Awaké, Marakana) ao norte e a leste, Arawaks ao sul e a oeste (Bahuana, Mandawaka, Yabahana, Kuriobana, Manao, Baré). No Brasil, os primeiros encontros esporádicos de grupos yanomami com representantes da fronteira extrativista local (balateiros, piaçabeiros, caçadores), bem como com militares da Comissão de Limites e funcionários do SPI ou viajantes estrangeiros, ocorreram nas décadas de 1910 a 1940.4

1 Censo da Fundação Nacional de Saúde, 2001. Este censo conta 12.975 pessoas incluindo cerca de 350 Índios Ye'kuana (Caribes) habitantes de três aldeias situadas ao longo dos rios Auaris e Uraricoeira. Ver www.funasa.gov.br

2 Ver o Mapa «Amazônia Legal Brasileira. Resultados do seminário de consulta, Macapá 1999. Áreas prioritárias para a biodiversidade. Mapa síntese", in: Capobianco 2001: 398-399.

3 Portaria 580 de 15/11/91 e Decreto sem número de 25/5/92.

4 Ver Albert 1985: cap. II.


Nas décadas de 1970 e 1980, os projetos de desenvolvimento do governo federal começaram a expor os Yanomami a formas de contato maciço com a fronteira econômica regional em expansão, principalmente, no oeste de Roraima: estradas, projetos de colonização, fazendas, serrarias, canteiros de obras e primeiros garimpos. Esses contatos provocaram um choque epidemiológico de grande magnitude, causando grandes perdas demográficas, uma degradação sanitária generalizada e, em algumas áreas, como a região do rio Ajarani, graves ocorrências de desestruturação social.

As duas principais formas de contato sustentado inicialmente conhecidas pelos Yanomami - primeiro, com a fronteira extrativista e, depois, com a fronteira missionária - coexistiram até o início dos anos 1970 como uma associação dominante no seu território. Entretanto, os anos 1970, foram marcados (especialmente em Roraima) pela implantação de projetos de desenvolvimento no âmbito do "Plano de Integração Nacional" lançado pelos governos militares. Tratava-se, essencialmente, da abertura de um trecho da estrada Perimetral Norte (1973-76) e de programas de colonização (1978-79) que invadiram o sudeste das terras Yanomami. Nesse mesmo período, o projeto de levantamento dos recursos amazônicos RADAMBRASIL (1975) detectou a existência de importantes jazidas minerais na região.5 A publicidade dada ao potencial mineral do território yanomami desencadeou um movimento progressivo de invasão garimpeira, agravado no final dos anos 1980 e transformado, de 1987 a 1989, em verdadeira corrida do ouro.

Cerca de 90 pistas clandestinas de garimpo foram abertas no curso superior dos principais afluentes da margem direita do Rio Branco (Uraricoera-Parima, Mucajaí, Catrimani) entre 1987 e 1990 (MacMillan 1995:38-39). O número de garimpeiros na área yanomami de Roraima foi, então, estimado em 30 a 40.000, cerca de cinco vezes a população indígena ali residente. Durante vários anos esta avassaladora frente garimpeira relegou a segundo plano o impacto dos projetos de desenvolvimento surgidos em meados dos anos 1970. O fluxo mais intenso dessa corrida do ouro foi interrompido a partir de janeiro 1990 graças a repetidas operações de extrusão da área indígena organizadas pela FUNAI e a Policia Federal (Operações Selva Livre). Porém, do começo dos anos 90 até hoje, núcleos de garimpagem continuaram encravados na

5 Ver, sobre este período,Ramos & Taylor (orgs.) 1979, CCPY 1982, 1984, 1987.


área Yanomami onde seguiram causando violências e sérios problemas sanitários.6

Além da persistência do interesse em garimpos na região, é previsível que outras atividades econômicas existentes ou potenciais (colonização agrícola, empreendimentos agropecuários e madeireiros ou mineração industrial) podem também constituir no futuro uma séria ameaça à integridade das terras yanomami, apesar de estar oficialmente homologada e registrada em cartório. Assim, quase 60% do território yanomami está coberto por requerimentos e títulos de mineração registrados no Departamento Nacional de Produção Mineral por empresas públicas e privadas, nacionais e multinacionais (Ricardo 1999: 50, 84). Além disso, o sudeste da Terra Indígena Yanomami (região do Rio Ajarani), ao longo da parte inicial da BR-210 (Perimetral Norte), está invadida por várias fazendas e posseiros.7

Os projetos de colonização implementados desde 1978 pelo INCRA ou pelo governo estadual nos municípios de Alto Alegre, Mucajaí, Iracema e Caracaraí e, principalmente, as ocupações ilegais de terras que, invariavelmente aumentam sua extensão,8 criaram uma frente de povoamento e de desmatamento que hoje atingiu o limite da Terra Yanomami (regiões de Ajarani e Apiaú). O avanço desta frente apresenta vários riscos para o território indígena.

O primeiro risco é o óbvio perigo de aumento do processo de invasão direta na área situada entre os rios Mucajaí e Apiaú (como já é o caso na região do rio Ajarani, ao sul). O segundo risco é a exploração (caça, pesca9, extração de madeira) e/ou a destruição de recursos florestais (plantas alimentares e

6 Ver o caso do massacre de Haximu de 1993: Haximu: Foi Genocidio!, Documentos Yanomami 1 (Brasília, CCPY). Durante o período de 1991-1998 (até junho) o setor de epidemiologia da FNS-RR registrou o óbito de 1211 Yanomami (35,1 % de causa desconhecida i.e. sem assistência sanitária -, 23,4 % de malária e 13,2 % de infecção respiratória). Um relatório da FUNAI de agosto de 2002 evidenciou a permanência de cinco núcleos de garimpagem na TI Yanomami de Roraima, totalizando uma população estimada em 200 garimpeiros (M. Alves de Andrade Júnior, administrador Regional, FUNAI, AER de Boa Vista, RR). A continuidade desta presença garimpeira foi confirmada em nova investigação de março de 2003 (Relatório FUNAI, AER de Boa Vista-RR, 15.03.2003).

7 Ver os Boletins Yanomami n° 9, 14, 18, 20 e 35. [Os Documentos e Boletins da CCPY estão disponíveis no website da entidade: www.proyanomami.org.br].

8 Sobre a interação entre projetos de colonização oficiais e ocupação ilegal do espaço favorecida pela abertura de estradas vicinais com apoio dos madereiros ver o artigo de F.-M. Le Tourneau no presente documento.

9 A regularidade da pesca ilegal no Igarapé Repartimento (Ajarani) é comprovada por relatório da FUNAI de 11/03/2002 de autoria de V. Marinho Lima (AER de Boa Vista-RR).


medicinais) da área indígena pelos colonos dos assentamentos limítrofes.10 O terceiro risco, também de ordem ambiental, é o perigo para a biodiversidade da fronteira leste do território yanomami que representam as queimadas descontroladas oriundas das zonas de colonização, como foi o caso dos grandes incêndios de Roraima em 1998 e 2003 que atingiram, principalmente, quatro regiões: Alto Alegre, Médio Mucajaí, Apiaú e Ajarani.11

Portanto, após seus longos esforços de denunciar o impacto nocivo, e muitas vezes trágico, da invasão garimpeira na T.I. Yanomami desde os anos 8012 , a CCPY pretende atrair hoje, através do presente documento, a atenção pública sobre as graves ameaças que pairam sobre a integridade da faixa leste dessa terra indígena em Roraima, devido à colonização agrícola e à fronteira agro-pecuária.

Nessa perspectiva, este terceiro Documentos Yanomami apresenta dois textos (de F.-M. Le Tourneau e R.I. Barbosa) analisando as dimensões econômicas e políticas, bem como as conseqüências ambientais das dinâmicas sociais subjacentes ao avanço da fronteira agrícola no oeste de Roraima (e, em particular, nas bordas da T.I. Yanomami). Para completar, uma entrevista do líder e xamã Davi Kopenawa revela a visão yanomami dos perigos ecológicos trazidos pelo desmatamento indiscriminado e pelos incêndios florestais na região. Por fim, um documento da FUNAI (de autoria de Sandra Barcelos Coelho, engenheira agrimensora) descreve a recente aviventação dos limites da T.I. Yanomami nas regiões dos Rios Ajarani e Apiaú (concretizada com o apoio da UNESCO), realizada em resposta a reivindicação da CCPY, acolhida com grande atenção pelo então Presidente do órgão indigenista, o Sr. Glênio da Costa Alvarez.

Bruce Albert,

Antropólogo, Membro do Conselho Diretor da CCPY

Pesquisador do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD)

brucealbert@aol.com

10 Ver o artigo de F.M. Le Tourneau citado acima.

11 Sobre este aspecto ver o texto de R. I. Barbosa no presente documento. Ver também Elvidge et al. 2001e o Boletim Yanomami n° 34.

12 Um estudo científico multidisciplinar realizado pela CCPY na região do Alto Mucajaí (Homoxi) será em breve publicado na série Documentos Yanomami, propondo uma avaliação pormenorizada do impacto ambiental, sanitário e social dos garimpos nesta área (1988-1998).


Bibliografia

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