BOLETIM URIHI Nº 7
SÃO
PAULO, NOVEMBRO DE 1988
EDITADO PELA COMISSÃO PELA CRIAÇÃO DO
PARQUE YANOMAMI (CCPY)
RUA MANOEL DE NÓBREGA 111 3º CJ.32
04001 SÃO PAULO SP
COLABORADORES DESTE NÚMERO
EDIÇÃO DEPOIMENTO ROMEO GRAZIANO
ENTREVISTA/FOTOGRAFIA CLAUDIA ANDUJAR
ILUSTRAÇÃO: CIÇA FITTIPALDI
TRADUÇÃO/REVISÃO: LÚCIA PRADO
NO
DEPOIMENTO DE IVANILDO, A SITUAÇÃO DOS YANOMAMI
No mês de agosto, o funcionário da
Funai Ivanildo Wawanaweytheri Yanomami foi retirado da chefia
do Posto Flechal, no rio Mucajai, e rebaixado para funçÕes
de um trabalhador braçal. O cargo de chefe de posto
era ocupado por Ivanildo desde 86, ano em que ele também
participou ativamente, como intérprete, da 1ª Assembléia
Yanomami, realizada em março no Posto Indígena Demini com
a presença de 14 comunidades Yanomami.
Ivanildo tem hoje 34 anos e
um passado de atividades que lhe permitem falar com profundo
conhecimento sobre a situação que envolve o seu povo.
Nascido no Estado do Amazonas, na aldeia Maia, nas imediações
do Rio Maiá, Ivanildo atingiu á adolescência órfão, época
em que foi solicitado a trabalhar na Funai. Servindo de
intérprete, ele aprendeu o português, e assim ajudou as equipes
da Funai em seus contatos com as aldeias estabelecidas
na rota da Perimetral Norte, em fase de construção.
Ivanildo não só trabalhou em quase
da Funai como também acompanhou saúde em áreas de índios
isolados equipe da CCPY. Seu trabalho foi da máxima
importância no levantamento Interministerial para
a de Yanomami, ocorrido no inicio deste ano.
Entre os episódios que refletem
com bastante clareza as dificuldades recentes enfrentadas
por Ivanildo como funcionário da Funai, destacam-se os seguintes:
quando ele viajou três dias pela floresta e na ocasião
em que foi picado por cobra no posto que chefiava. É ele
próprio quem conta:
"Eu trabalhava como chefe de
posto pra ajudar os Yanomami, que são meus parentes. O
trabalho era sem condições. Eu precisava de um barco, de
um rádio transmissor para comunicar o que estava acontecendo
na região. Mas eu não tinha e estava lá sozinho.
"Uma vez eu estava precisando
de medicamento e fiz um pedido, passei por rádio em outro
posto e consegui que eles deixassem o medicamento no posto.
Um dia eu estava construindo uma casa. Eu cobri com palha
e estava precisando de uma ferramenta pra trabalhar, pra
melhorar as coisas, a construção do posto. Então eu pedi
ajuda pros Yanomami, pra me levarem no caminho que eles
conhecem.
"Peguei minhas coisas e fui
pra Boa Vista. E eles me perguntaram: 'como é que você
vai?' Eu respondi que ia por terra e falei que queria
alguém pra me acompanhar até Alto Alegre, onde tem uma estrada.
Mas foram apenas dois Yanomami, que me largaram no meio da
viagem.
“Fui sozinho, pegando chuva,
de noite também. Eu estava todo molhado, descalço porque
meu sapato tinha acabado na viagem, tinha descolado, e estava
sem alimentação. Gastei três dias. Quando eu cheguei
no local onde vai ser uma hidrelétrica (hidrelétrica do
Paredão), encontrei duas pessoas. Pedi socorro mas elas
também não tinham alimentação. Tinham café e leite, e
eu tomei o leite e segui viagem.
"Quando eu cheguei no meio da
viagem, corri lá pro igarapé, bebi água. Eu consegui
chegar numa fazenda, com o pé todo lascado, pra alguém me
dar uma merenda, um prato de comida. E me perguntaram:
'tá com quantos dias?' Eu disse que estava com três dias,
sem alimentação, sem coisa nenhuma. O pessoal me disse
que pra chegar na cidade ainda estava longe. Eu então
cheguei numa casa e achei um rapaz que podia me acompanhar
até Alto Alegre.
"Tirei três dias e três noites,
cheguei em Alto Alegre e pedi uma carona pra um ônibus, isso
umas 8 horas da noite. Eu estava sem dinheiro, com muita
fome. Ninguém iria me dar nada de graça, tudo tem que
ter dinheiro. No dia seguinte, peguei um ônibus e voltei
pra cá.
"Cheguei aqui em 'Boa Vista,
na Funai, e me perguntaram como eu tinha vindo. Contei
tudinho, fiz um relatório sobre a viagem e disse que só
iria para o posto quando eles me dessem um motor de popa,
um rádio transmissor. E até hoje eu estou ai. Eles
prometeram arrumar o motor, mas não sei se vão fazer isso.
"Não é qualquer pessoa que faz
uma viagem como a que eu fiz, no meio do mato, onde
não tem passagem. O igarapé todo cheio, eu tirava
o yamaxi (cesta) das costas e botava na cabeça pra
atravessar pro outro lado e seguir viagem. Valeu por não
ter acontecido nada comigo."
“Eu rolava de dor dentro
da canoa.”
"Numa outra ocasião, eu fui
picado por cobra. Estava sozinho, sem ninguém pra me ajudar.
Era um domingo, e foram os dois Yanomami que conseguiram
me 'levar de canoa até um local cheio de carros de garimpeiros.
Um deles estava indo pra Alto Alegre e eu pedi carona, pedi
socorro, e eles me levaram. Eu estava 'fritando', rolando
de dor dentro da canoa. Os garimpeiros me deixaram
lá no Alto Alegre. Eu já estava nas últimas, mas o médico
disse que não tinha soro pra veneno de cobra. Só tinha uma
injeção pra eu aguentar até chegar aqui em Boa Vista. Uma
ambulância me deixou aqui no pronto socorro, mas nem me
lembro como eu cheguei. No dia seguinte, quando eu acordei,
as pessoas me disseram que eu tinha chegado muito mal, que
os médicos faziam perguntas pra mim e eu não falava nada.
Nem a minha família estava sabendo o que tinha acontecido.
Era um domingo."
Antes de Ivanildo receber a
notícia do seu rebaixamento, ainda no mês de agosto, ele
deu um extenso depoimento à CCPY em Boa Vista, que pode
ser dividido em duas partes: a primeira é a sua visão
pessoal sobre as inúmeras formas de violência sofrida
pelos Yanomami. A outra demonstra a experiência por
ele adquirida durante o trabalho de levantamento de terras
do Grupo Interministerial, segundo a Portaria 006
de 07.01.88. É esse depoimento que passamos a transcrever.
CCPY - o que você sabe
da situação atual dos Yanomami?
Ivanildo -
Eu vejo muitas coisas da situação dos Yanomami. Acontece
um monte de coisas, eu vou falar muito pouco mas vai dar
pra entender. No início não tinha os garimpeiros, era
só Yanomami. Agora mudou muito e os Yanomami estão sofrendo
de muitas doenças, de malária, de gripe. Eu estou muito
preocupado porque os Yanomami estão morrendo muito. Morreu
muito parente também à bala. Os garimpeiros estão matando,
eu me preocupo muito. A água que a gente bebe foi envenenada,
morreram muitos Yanomami. Os Tuchauas se perguntam o que
eles poderiam fazer, mas nós estamos numa situação difícil,
e entra muita cachaça também. A gente pensava que a Funai
ajudaria os Yanomami, mas nos ouvimos uma conversa que
ela ajuda sim é pra acabar com os Yanomami, ou ajuda os
garimpeiros a acabar com os Yanomami.
A gente estava reclamando de assistência
médica, pois estava morrendo muito Yanomami, crianças
também. Nós pedimos mais ajuda para a Funai. A maioria
dos Yanomami precisa de muita assistência para sua saúde.
Eu acho que a situação dos Yanomami
está muito bagunçada, que entra muita cachaça...
Os garimpeiros chegam nas malocas levando cachaça. Aí
quando eles estão bêbados vão chamar os Yanomami.
Se eles não querem vir, são ameaçados com arma de fogo.
Quando os Yanomami ficam bêbados, os garimpeiros aproveitam
das suas mulheres. Eles também dão cachaça pros Yanomami.
Muitos garimpeiros levam doenças, e os Yanomami falam que
aumentou muito o número de doenças. Há todo tipo de doença
e está morrendo muito Yanomami.
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CCPY - Mas a Funai não
tem feito nada?
Ivanildo -
A Funai não tem condições pra ajudar os Yanomami. Quando
tinha uma equipe que estava trabalhando na área era diferente.
Tinha a equipe da CCPY, tinha missão também. Eles davam
uma ajuda muito grande. Quando deu essa confusão, a situação
piorou muito, morreram muitas crianças, mulheres. Está
difícil pra gente trabalhar. Quando não tinha essas coisas
a gente trabalhava tranquilo, sem bagunça, sem confusão.
Mas agora ficou difícil, e sempre morre Yanomami, morto
também por garimpeiros. A gente acha que a Funai deveria
dar uma ajuda muito grande, e retirar os garimpeiros pra
acabar com toda essa bagunça.
CCPY - Como está a relação entre
os Yanomami e os garimpeiros?
Ivanildo -
Os Yanomami têm medo dos garimpeiros. Muitos deles são criminosos,
levam muita arma de fogo, como revólver, espingarda. Eles
têm todas as armas e também falam que têm metralhadora.
A polícia militar fica do lado dos garimpeiros e os Yanomami
acham que por qualquer coisa a polícia fica do lado dos
garimpeiros.
CCPY -
O que os Yanomami fazem quando chegam os garimpeiros?
Ivanildo -
Tem muito Yanomami que não conhece branco. Quando os garimpeiros
chegam, todo mundo corre pro mato. Eles trazem muita
bebida, cachaça, e dão pros Yanomami. É só pra
prejudicar. E os Yanomami ficam muito bravos. Os Yanomami
da região da maloca do Flechal me contaram isso.
CCPY - Alguma vez os garimpeiros
afugentaram os Yanomami à bala?
Ivanildo - Eu conheço um lugar
onde os garimpeiros chegaram querendo mandar mais que os
Yanomami. Chegaram com arma, atiraram pra cima, atiraram nos
Yanomami. Conheço muitos lugares, nas regiões do Mucajai
e do Paapiú. O próprio garimpeiro mata o outro garimpeiro
e bota a culpa nos Yanomami. Matam, jogam o morto no meio
do caminho e vão dizer pros outros que foi o índio que
matou o garimpeiro. Por isso que eles chegam na maloca atirando.
Os garimpeiros falam que se acontecer qualquer coisa eles
matam os Yanomami todinho. As vezes a polícia tira as armas
deles mas depois devolve.
CCPY -
Como os garimpeiros entram na área dos Yanomami?
Ivanildo - Entram por rio, por
terra, por caminho e também de avião. Na região do Ajarani
eles entram por terra de noite e. de dia. Lá tem estrada
e eles também entram de, avião. No Mucajai eles entram de
noite e por terra, por onde a polícia não vê. Eles
têm caminho até no Alto Alegre, até no garimpo, beirando
o rio. E muitos deles se aproveitam da roça dos Yanomami,
caçam.
CCPY
- Quais são as regiões
onde tem mais garimpeiros?
Ivanildo - No Rio Paapiú, na
cabeceira do Rio Mucajai, no Rio Palimiú, nas regiões do Aracaçá
e do Rio Urariquera. Estas duas regiões são onde tem mais
garimpeiros. Ouvi dizer que os garimpeiros já estão
se aproximando da Serra do Surucucu. Mas muitos deles já
estão nessa regiáot Lá tem o Projeto Calha Norte, mas os militares
não estão fazendo nada.
CCPY - E os Yanomami ainda
continuam garimpando?
Ivanildo -
Só alguns. A maioria deles não está garimpando porque
não tem ferramenta para trabalhar.
CCPY -
Há índios que estão abandonando sua maloca por causa dos garimpeiros?
Ivanildo - Muitos deles falam
que estão querendo abandonar suas malocas, outros não. Outros
falam que não devem abandonar seu lugar, que devem continuar
onde nasceram, onde vivem, onde eles têm alguma coisa plantada
e onde o avó e a avo nasceram e ficaram.
CCPY -
Por que você acha que os garimpeiros estão no território dos
Yanomami?
Ivanildo - A gente acha que a
Funai apoio aos garimpeiros. Eles mesmos estão apoiados
pela Funai, que estão verba pra Funai.
'A policia
militar também está no garimpo.'
CCPY -
A polícia militar também dá apoio?
Ivanildo - A polícia militar
também está no garimpo, eles também são garimpeiros. Eles
dizem que é pra controlar os garimpeiros, mas não é nada disso.
Eles estão lá é pra dar apoio aos garimpeiros e acabar
com os Yanomami. Isso é verdade.
CCPY -
Os Yanomami não poderiam expulsar os garimpeiros?
Ivanildo -
Eu estive conversando com eles e acho que os Yanomami deveriam
reunir todo mundo pra ver se eles mesmos resolvem alguma coisa,
pra eles mesmos tentarem retirar os garimpeiros. Eles
disseram que iriam tentar conversar com os outros Tuchauas
pra ver se é possível fazer alguma coisa. Isso porque quando
a gente se queixa pra Funai ela não liga. Eles só
respondem que isso é com a presidência da Funai",
"a Funai não pode resolver nada'. É isso que eles respondem.
Eu não sei como é que os Yanomami vão fazer pra acabar
com essa situação. Eu acho difícil porque os Yanomami só
têm suas flechas e os garimpeiros têm arma de fogo, mais
forte do que a flecha.
CCPY -
Mas os Yanomami sempre foram um povo valente. Como
eles são hoje?
Ivanildo - Eu tenho pra mim
que eles não são fracos. o Yanomami sempre foi guerreiro,
entre eles. Mas eu já perdi meus parentes. Pra não acontecer
novamente a confusão do ano passado, uma briga de Yanomami
com garimpeiros, com a morte de Yanomami e garimpeiro, os
Yanomami ficaram mais afastados. Os Yanomami têm medo e
os garimpeiros também. Eles falaram isso pra mim.
CCPY - Quantos índios morreram na área
do Rio Mucajaí?
Ivanildo -
Eu acho que morreram 15 ou 20 índios. Isso aí já faz uns
três meses. Foi no meio do verão, a partir de janeiro.
Eles morreram de uma malária forte, de gripe, pneumonia,
febre e da água que eles tomam, muito envenenada. Quando
eles estão bebendo água, é como se fosse barro, e está cheia
de gordura, de óleo de motor. Até os peixes estão morrendo.
CCPY -
O que os Yanomami vão fazer se não podem beber a água do
Rio Mucajai?
Ivanildo Eu estive conversando
com os Tuchauas e eles me disseram que irão ficar longe do
rio, que procurarão um rio que não esteja sujo, envenenado.
Eles iam se retirar da maloca pra morar em outro lugar.
Esse é o único jeito.
CCPY -
Você sabe o que é mercúrio?
Ivanildo -
O mercúrio é usado pra procurar ouro. Muitos garimpeiros
usam e falam que é veneno. Eu côo a água que eu bebo.
Ela mata muito peixe, acaba com ele.
CCPY -
Os Yanomami ainda caçam como de costume?
Ivanildo - No Paapiú já não acham
mais nada. camarão, nem caranguejo. Lá acabou tudo.
CCPY -
Como os Yanomami vêem o homem branco hoje?
Ivanildo - Hoje a gente considera
os brancos como criminosos. No começo, quando os Yanomami
tiveram contato com os brancos, eles achavam que não iria
acontecer nada assim como o crime. Hoje eles estão vendo
que não é assim.
“Os Yanomami acham que
vão acabar."
CCPY -
O que diz a história do seu povo sobre o tempo em que o
branco ainda não tinha aparecido?
Ivanildo -
Eu posso contar um pouco. Não dá pra contar tudo. No começo,
quando não tinha branco, não tinha avião, era só Yanomami
na terra. Eles dizem que o Yanomami tem um deus e o branco
tem o deus dele. E chegou o tempo em que o deus do branco
fez o Naba. O nosso deus, Omama, morava com os Yanomami,
ensinava eles. Quando mudou o tempo, apareceu o Naba,
começou a voar avião, a andar barco no rio. Foi nesse
tempo que começou a aparecer o Naba, que entrou em contato
com os Yanomami. Até essa época, ninguém sofria com
doenças, os Yanomami viviam muito bem, tinham muita alimentação,
as crianças não sofriam como hoje. Os Yanomami começaram
a ficar tristes e Omama foi embora. Quando foi aumentando
o contato dos brancos com os Yanomami, eles sentiram muito
medo. Eles não conheciam, eles pensaram que eram outros,
diferentes dos Yanomami.
CCPY - Como olham o futuro
os índios que você conhece?
Ivanildo -
Eles acham que daqui a um tempo ás Yanomami vão acabar.
E estão muito preocupados. No Surucucu, onde nunca tinha
entrado um branco, qualquer doencinha, gripe fraca, mata
os Yanomami. Eles são muito fracos e eu já vi muita tristeza.
Antes tinha uma missão evangélica na área do Mucajai
e outra no Rio Catrimani, tinha também a CCPY, e os Yanomami
achavam que eles davam uma ajuda muito grande pra sua
saúde. Então a gente pede pra essas pessoas retornarem,
pra continuarem fazendo seu trabalho.
Com o Grupo Interministerial
CCPY - Você acompanhou o
levantamento realizado pelo Grupo Interministerial no
território dos Yanomami?
Ivanildo -
Acompanhei até o fim. Cada maloca que a gente chegava, onde
nunca se tinha visto um branco, todo mundo corria de medo.
Com medo dos helicópteros, com medo dos "brancos".
Quando a gente chegava, a maloca parecia abandonada.
Eu chamava todo mundo e perguntava por que eles estavam
fugindo. Eles diziam que tinham ouvido uma conversa de
que estavam se aproximando os garimpeiros que não gostam
de índios, que trazem doenças pra acabar com os Yanomami.
"Você veio aqui pra trazer doenças", eles me perguntaram.
E eu disse que nós estávamos ali pra visitar eles. Eu acho
muito triste a situação dos Yanomami, onde não tem remédio,
onde nunca foi um médico. Ninguém nunca foi nesses lugares.
Eu acho muito triste. Eles sofrem muito. Qualquer tipo
de doença, uma gripe ou qualquer doença fraquinha, quando
o Yanomami pega, de repente ele morre. Por isso tem medo.
Ele pode morrer por causa. de uma disenteria fraquinha, e
se eles pegarem uma doença mais forte, aí então acabam de
uma vez. Eu não visitei todas as malocas, ninguém visitou
todas. Só conversamos com eles onde a gente tinha condição
de descer com o helicóptero.
CCPY -
Havia muitos índios doentes ou mortos?
Ivanildo - Nós vimos muitos doentes,
vimos todo tipo de doença. Eu acho triste por isso.
Eu visitei uma maloca no Buudu, onde deram malária, gripe
e pneumonia. Morreram todas as crianças, e aio só crianças
mas também adulto, mulheres. Eles nos mostraram as casas
onde deveria morar gente. Estava tudo acabado. Eu cheguei
lá e estava todo mundo triste, chorando. O lugar
está abandonado. Foi lá que morreu muita gente. Nós visitamos
a nova maloca e vimos que agora eles se dividiram.: tem
um bocado deles morando pra cá, na cabeceira do Rio Mucajai,
e têm outros que estão morando no Rio Parima.
CCPY -
E o que aconteceu na maloca dos Watautheri?
Ivanildo Morreram muitos Yanomami
de malária. Essa doença deu no Botomata mas foi no Buudu
que ela deu mais. O ano retrasado deu sarampo. Mas no
ano passado deram malária, gripe, pneumonia, depois que
chegaram os garimpeiros.
CCPY - Vocês foram até a Xideia?
Ivanildo Fomos. Eles disseram
que precisam medicamento, de gente pra tratar deles.
CCPY -
Há garimpeiros naquela área?
Ivanildo: No tempo que eu estive no local
não tinha, mas eles falaram que os garimpeiros já estão
se aproximando daquela região.
CCPY- E da região do Demini?
Ivanildo - Eu ouvi de um rapaz
que eles estão se aproximando da região do Demini. Estão
chegando no Rio Catrimani, abrindo estrada, estão indo de
avião, que está passando na frente da maloca do Opikthery.
Eles falaram que os garimpeiros voltaram e foram embora.
Disseram que não acharam nada.
CCPY -
Na região do Botomata tem ouro?
Ivanildo -
Eu estive perguntando aos garimpeiros se eles viam alguma
coisa por lá e eles me disseram que há lugar que tem,
há lugar que não tem. Eles contaram também que acharam
um lugar muito bom, mas que os Yanomami de lá não deixaram
que eles trabalhassem.
CCPY - O que os Yanomami fizeram
para impedir?
Ivanildo - Quando os garimpeiros
chegaram querendo trabalhar, os Yanomami apareceram e falaram
que lá não era lugar pra eles, que eles tinham de ir embora.
Me contaram isso aqui mesmo em Boa Vista, foi o próprio garimpeiro.
CCPY -
Você ouviu falar de garimpeiro matando Yanomami naquela
área?
Ivanildo - Eu ouvi uma conversa
dessa, os garimpeiros querendo acabar com os Yanomami
para se aproveitar do ouro do Botomata.
CCPY - O garimpeiro costuma
fazer roça dentro da área Yanomami?
Ivanildo - Eles não fazem roça.
Só fazem é esculhambar a terra. Eles jogam a terra,
só esculhambam a terra. A única coisa que eles fazem é isso.
Não aproveitam a terra, só querem tirar o ouro. É muito triste,
é um crime. A gente não acha bom, é uma esculhambação que
eles fazem.
“O índio tem o direito de viver onde
nasceu.”
CCPY -
Qual é a saída para toda essa situação, no seu modo de pensar?
Ivanildo - Eu acho que os Yanomami
devem apertar a Funai. Foi isso que eu falei pros Yanomami,
pros Tuchauas. Há muita coisa errada. Tem muita terra sobrando
pra eles trabalharem, pra não levarem toda essa confusão.
Mas eles não querem trabalhar na roça. Querem trabalhar só
com ouro, onde tem índio, fazendo bagunça, matando índio
de veneno, de doença. Eu acho tudo isso muito errado.
O índio tem o direito de viver onde
ele nasceu. Dizem que o índio não tem terra, não tem direito,
que trabalha só pra comer, que não tem carro, não tem avião,
nem ferramenta pra trabalhar e produzir. Isso eu acho
muito errado. Eu vejo muito branco, que tem lote pra
trabalhar, abandonar tudo pra ir pro garimpo Não adianta.
Ele vai pro garimpo, arruma o dinheiro mas não vai viver todo
o tempo com esse dinheiro. Vai gastar do mesmo jeito. E
quando recebe o dinheiro, ele gasta e volta pra bagunçar
de novo.
Eles também falam que o Brasil não
tem terra pra trabalhar, só tem índio que tem o direito
da terra. O índio tem o direito da terra onde ele nasceu.
Mas o branco tem terra pra trabalhar, pra viver. Esse povo
acha uma coisa que não está certa. Dá muita confusão,
muita briga.
Eu estive pensando que a Funai poderia
fechar o garimpo e colocar uma companhia para tirar
o minério. Mas eu acho que os problemas não iriam acabar,
que seria tudo a mesma coisa. Eu acho que se entrar um
grupo minerador deve ter uma diferença, mas não sei ao
certo, não conheço.
CCPY –
Quando a Funai disse que iria fazer o levantamento das terras
dos Yanomami e a demarcação da sua área ela prometeu levar
alguma coisa?
Ivanildo -
Eles falaram em levar criação, ferramentas pra fazer
colônia, sementes. Eles prometeram fazer criação de porco,
galinha, peixe e outras coisas. Eu estive conversando
nas malocas sobre isso, mas os Yanomami não quiseram aceitar
essas promessas. Eles querem é demarcar uma área pra eles.
Eles também prometeram escolas, prometeram isso tudo.
COMISSÃO DOS DIREITOS DO HOMEM CITA BRASIL
A Comissão dos Direitos do Homem,
da LIGA INTERNACIONAL PARA OS DIREITOS DOS POVOS da ONU,
sediada em Genebra, fez duas menções ao Brasil na sua 40ª
sessão, de 8 de agosto - 2 de setembro de 1988, no ponto
12 da ordem do dia – discriminação ao encontro dos povos
autóctones -, nos seguintes termos:
1º Ao Brasil
Desde 1968, numerosas entidades
têm alertado as autoridades brasileiras sobre a necessidade
de se criar um Parque Yanomami. Em 1985, a OEA (Organização
dos Estados Americanos) formulou recomendações idênticas;
no mesmo ano a Funai (Fundação Nacional Brasileira do Índio)
delimitou administrativamente 9 milhões de hectares
(resolução governamental nº 1817). Mas uma decisão
ministerial de 18 de agosto último tem em vista a retalhação
desse território e a concessão de grandes parcelas a cerca
de 10.000 garimpeiros de ouro ilegais que invadiram o
território Yanomami. Esta invasão se traduz por uma grande
violência: em agosto de 1987, 4 Yanomami foram assassinados
pelos garimpeiros de ouro. Este ano, uma criança de 2 anos
foi abatida nos braços de seu pai e 3 Yanomami gravemente
feridos; um outro, torturado, foi submetido a graves maus
tratos e foi dado como morto. Uma tentativa de homicídio
foi perpetrada contra o líder Júlio Gois Yanomami; Davi Yanomami,
outro líder, recebeu ameaças de morte. A fim de fazer desaparecer
qualquer traço, os corpos dos Yanomami assassinados estariam
enterrados nos locais de mineração ou teriam sido atirados
na selva de aviões utilizados pelos garimpeiros.
Além
disso, os garimpeiros de ouro veiculam numerosas enfermidades,
contra as quais os Yanomami não estão imunizados. Privados
há um ano dos cuidados médicos que lhes proporcionavam
diversos grupos não- governamentais expulsos da área,
entre os quais missionários, as últimas testemunhas indesejadas
dessas violências, estão em uma situação sanitária desastrosa.
2º Ao Brasil, ainda
O projeto "Calha
Norte" atinge cerca de 88 000 índios que vivem na
faixa de fronteira de 6 500 Km, ao longo de 5 países limítrofes,
e as terras indígenas localizadas nos estados do Acre,
Rondônia, Mato Grosso do Norte e do Sul. Este projeto,
que o governo brasileiro apresenta como uma ação de proteção
ao território nacional, visa de fato aumentar a presença
militar nessa zona, aplicar a política indigenista de
integração forçada, assim como implantar polo de colonização
interna. Como outros projetos (Jari, Carajás ou Polonoroeste),
o "Calha Norte" significa o etnocídio de milhares
de índios, pois estes não terão mais territórios delimitados
e certos grupos serão deslocados. Por outro lado, não se
pode deixar de se interrogar a respeito desta suspeita de
anti- patriotismo que pesa sobre os índios: não seria ela,
na verdade, senão um pretexto para contestar seus
direitos sobre as terras fronteiriças?