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Brasília,     


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Esta seção apresenta um conjunto de documentos de referência sobre diversos aspectos da ação da entidade na defesa dos direitos Yanomami (Terra Indígena Yanomami, direitos humanos, saúde, educação e preservação do meio-ambiente). Trata-se de documentos recentes ou " históricos ", de documentos produzidos pela Pró-Yanomami (CCPY) ou de documentos oficiais.


 
 

... Arquivo Pró-Yanomami

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BOLETIM URIHI Nº 9

SÃO PAULO, JULHO DE 1989
EDITADO PELA COMISSÃO PELA CRIAÇÃO DO PARQUE YANOMAMI (CCPY)
RUA MANOEL DE NÓBREGA 111 3º CJ.32
04001 SÃO PAULO SP
COLABORADORES DESTE NÚMERO
TEXTO: ALCIDA RAMOS
ILUSTRAÇÃO: CIÇA FITTIPALDI
FOTOGRAFIA: RENATO DOS ANJOS


 

Amigos

Este  número  do  Boletim URIHI   apresenta relatório de viagem da antropóloga Alcida R. Ramos,   que   representou   a   Associação Brasileira de Antropologia (ABA) na comitiva da Ação pela Cidadania que  visitou  Roraima de 9 a 12 de junho de 1989.  O relatório foi preparado para a ABA e gentilmente cedido  à CCPY.  Formada por 20 pessoas, entre elas os subprocuradores da República Carlos  Eduardo Vasconcelos  e Wagner  Gonçalves,  além do subprocurador  geral  Claudio  Fonteles,   o senador Severo Gomes (PMDB/SP) e o  deputado federal Plínio de Arruda Sampaio (PT/SP),  a comitiva da Ação pela Cidadania constatou  a urgência de se tomarem medidas efetivas para evitar o genocídio Yanomami.

A volta da viagem, reuniram-se os membros da comitiva no auditório da CNBB  em Brasília, sob a presidência de d.  Luciano Mendes  de Almeida -   com    a        participação de

representantes  da Ação pela Cidadania, parlamentares, ABA, CIMI, CEDI, CCPY,  SBPC, OAB,  INESC,   Comissão   Teotônio  Vilela, Fundação Oswaldo Cruz, Procuradoria Geral da República, jornalistas, e do  Presidente  do IBAMA,  Fernando  César Mesquita      para decidir as iniciativas a serem adotadas  em relação à dramática  situação  da  população indígena de Roraima.

Em  primeiro   lugar,    decidiu-se    pela publicação do relatório RORAIMA: O Aviso da Morte, elaborado pela Ação pela Cidadania. Editado  pela   CCPY/CEDI/CIMI,   terá  uma tiragem de 16 mil exemplares ilustrados  com mapas e fotos, para ampla divulgação.   Está sendo também traduzido  para o inglês,  para tornar-se a base de uma  vasta  campanha  em defesa dos povos  indígenas  de  Roraima  no Brasil e no exterior.

Também um vídeo filmado  no  local  por  uma equipe do CEDI está sendo preparado, de modo a que se disponha de instrumentos  para  uma ampla mobilização das forças políticas e dos órgãos  da  sociedade  civil,  em  torno  da exigência  do  cumprimento  da  Constituição Federal no que se refere  aos  direitos  dos índios.

Por  seu  lado,  a  Procuradoria  Geral   da República criou a  Coordenadoria  de  Defesa dos Direitos  e  Interesses  das  Populações Indígenas, que vai propor ao Ministério  da Aeronáutica e à Superintendência da  Polícia Federal a interdição de 54 pistas  de  pouso utilizadas pelo garimpo, situadas  em  áreas indígenas ou de florestas nacionais.  Em seu segundo ato, vai abrir  um  inquérito  civil público para levantar a  situação  fundiária das  áreas  Yanomami  e  os  critérios   que determinaram a demarcação das 19  "ilhas"  - áreas indígenas, considerada inconstitucional.

Os deputados e  senadores  participantes  da Ação pela Cidadania,   acompanhados   das entidades de apoio à questão dos  índios  de Roraima (OAB, CNBB,  ABI,  SBPC  e  outros), organizarão  visitas  aos   ministérios   da Aeronáutica, do Interior e da Justiça,  além de ao titular do SADEN (antigo  Conselho  de Segurança Nacional),  com  a  finalidade  de entregar o relatório e discutir  as  medidas nele propostas para a solução dos  problemas apontados.

O  Grupo  Parlamentar  se  incumbirá,   além disso,   de   formular   requerimentos    de informações, dirigidos a diferentes  setores do Governo, com o  objetivo  de  esclarecer questões  levantadas  durante  a  visita   a Roraima.

Outro ponto importante é  a  solicitação  de que seja implantado  um plano  assistencial médico e sanitário que atenda às  populações indígenas de Roraima, atualmente dependentes da assistência de missionários.  Com base em um depoimento do médico da Funai, Oneron  de Abreu Pithan,  as  condições  de  saúde  dos índios são  extremamente  precárias.  Com  o assessoramento da CCPY, que    desenvolveu atividades de  assistência  médica  na  área Yanomami, o  Grupo  Parlamentar  proporá  um convênio entre a Funai e o setor  competente do Ministério da Saúde para  possibilitar  o envio, com a máxima urgência, de uma  equipe de auxílios médicos aos Yanomami.

A CCPY acredita que são necessárias  medidas drásticas para impedir o genocídio Yanomami, pois muitos índios    foram mortos  nessa ocupação desenfreada, e continuam a  sofrer não só assassinato físico como cultural.   É para trazer a público a denúncia  de  que  o que está acontecendo nesse  momento  com os índios   Yanomami   pode   significar    seu extermínio que apresentamos este URIHI.

Claudia Andujar

Coordenadora - CCPY

São Paulo, julho de 1989


 


RELATÓRIO DA VIAGEM DE INSPEÇÃO ÀS ÁREAS YANOMAMI E MACUXI EM RORAIMA PELA COMITIVA DA AÇÃO PELA CIDADANIA

9 a 12 de junho de 1989

Num Búfalo da FAB, chegou a Boa Vista no fim da tarde  de  sexta-feira,  9  de  junho,  a comitiva liderada pelo Senador Severo  Gomes (PMDB-SP) e pelo Deputado Federal Plínio  de Arruda  Sampaio  (PT-SP)   e   composta   de representantes do Deputado Fábio Feldman, da Procuradoria Geral da República, da OAB,  da CNBB, do CIMI, da SBPC, da ABA, da CCPY,  da Polícia Federal, do Ministério da Justiça  e da  imprensa  (O Estado  de  S.  Paulo,  TV Cultura e CEDI),  acompanhada  pelo  Coronel Amado do Estado Maior das Forças Armadas.

À noite,  foi  feito  o  planejamento   das atividades   dos   dias   seguintes   e    a apresentação dos  membros  da  comitiva  aos representantes  da  Igreja  Católica  local, liderados pelo Bispo  de  Roraima, D.  Aldo Mongiano.    Os padres  Saffirio  e   Lirio fizeram exposições, respectivamente, sobre a situação  da  missão  Catrimani  junto   aos Yanomami e os conflitos  entre  fazendeiros, posseiros e índios Macuxi.   Relataram que, depois que a Igreja de Roraima fez  a  opção explícita  de  se  posicionar  ao  lado  dos índios, tanto o bispo como vários  padres  e outros  membros  da  Pastoral  têm  recebido ameaças de morte.

A dramática exposição do Padre Pedro, membro da  Diocese,  demonstrou  com  fortes  cores emocionais o estado de tensão em que  vivem os  religiosos.    Esbravejando,   o   Padre despejou uma avalanche de desabafos sobre os problemas   enfrentados   por    índios    e missionários e exigiu da  comitiva  que  não prometa o que não pode cumprir, pois ele  já está cansado de promessas.    Seu  acalorado desempenho demonstrou até  onde  pode  ir  o descontrole de quem vive  sob  a  constante pressão de uma guerra surda  e  interminável pela  posse   da   terra,   com  todos   os ingredientes de  Wild  West  onde  a  lei  é comprada por quem dá mais.

Terminadas as exposições,  os  parlamentares explicaram o que é a Ação pela  Cidadania  e que mecanismos podem ser acionados  para  se fazer cumprir a lei, principalmente  através do  congresso,  da  imprensa,    da  opinião pública, gerando  pressões sobre  o  governo para que a lei seja cumprida.

Iniciava-se, assim, uma missão de coleta  de fatos e evidências das mais contundentes, em que cada  dia  da  viagem desvelou  eventos dramáticos   que   contribuíram  para    se construir um quadro sensível do caos social, da inadimplência  institucional,  de    fé política e do sofrimento humano nesse que  e dos  estados  da   união   talvez   o  mais eminentemente indígena.

Casa do Índio: da fonte de contaminação ao depósito de doenças

Enquanto esperávamos uma melhora  do  tempo que, no  sábado,  era  típico  da  época  de chuvas em Roraima  (de  abril  a  novembro), fizemos uma visita à Casa  do  Índio,  local inóspito mantido pela  FUNAI  a  uns   15 quilômetros do centro da cidade para abrigar índios  em  tratamento  de    saúde   ou simplesmente de passagem por Boa Vista.

Não havia  sinal  de médico,  apresentou-se Geralda, a enfermeira.   Entre  os  diversos índios espalhados  pelas   dependências  de teto de palha e  chão  de  cimento,  estavam vários Yanomami de Surucucus, do Ericó, e do Olomai.    Um homem Sanumá residente   em Olomai,  urinando   sangue,   estava   sendo tratado de  infecção  urinária,  embora   a enfermeira não soubesse ao certo se esse era o mal.  Também da região do Olomai, um casal do subgrupo conhecido como Parahuri, de fala Yanomami residente  próximo  à  cachoeira  de Tucuxim,    estava   em   tratamento   de tuberculose, sem que nenhuma precaução fosse tomada para isolá-lo dos outros.   A mulher já havia  contraído   catapora   claramente visível no  rosto.    Trouxe  tuberculose  e recebeu  catapora.    Mesmo  assim,  com  a disposição    acolhedora    e    risonha, característica dos Yanomami para com alguém que lhes fale em alguma  das  suas  línguas, pediam cigarros, roupa  e  contaram que  na aldeia da mulher muitos  haviam  morrido recentemente. Mais tarde, tive a oportunidade de conferir essas  informações com Donald  Borgman,  missionário  da MEVA (Missão  Evangélica  da  Amazônia),   que trabalha com os Yanomami  desde  meados  dos anos  60  e que  atualmente   faz   visitas periódicas à missão de Olomai no  baixo  rio Auaris.  Borgman levantou e me transmitiu as seguintes informações:

O casal  tuberculoso  vive  numa. aldeia  de cerca de 45 pessoas,  a  8  minutos  de  vôo abaixo de Olomai; os próprios índios abriram aí uma pista, de modo a facilitar  a  visita dos missionários para tratamento  de  saúde. Logo  depois,  chegavam,  pelo  menos,   30 garimpeiros munidos  de  balsa.    O  líder indígena dessa aldeia,  Cadona,  foi  levado doente à Casa do Índio e aí morreu em  abril passado.  Sua comunidade está  infestada  de tuberculose.  Mais abaixo, está outro  grupo Parahuri, de cerca de 40  pessoas;  morreram há pouco de malária  dois  adultos  e  cinco crianças, ou seja, mais de 17%.   Próximo  à boca do Auaris, subindo o rio Paríma, está o grupo dos wateri himodimi' dibi', também com seus  quarenta  e  poucos  habitantes,  onde morreram  cinco  adultos  e  cinco  crianças recentemente, o que representa cerca  de  um quarto da sua  população.    A  sudoeste  de Olomai, no conjunto de aldeias conhecido por xikoi di'bi', faleceram dois adultos  e  dez crianças.

Os garimpeiros  permaneceram na  região  do Tucuxim durante um ano.  A pista  aberta  aí pelos índios servia de base para  alcançarem a região do Aracaçá, a cerca de um dia a  pé da  pista.    Logo  abaixo  do  Tucuxim,  as notícias eram de que os garimpeiros extraiam três quilos de ouro por  mês.    Em  janeiro deste ano, havia cerca de 300 balsas e  umas seis pistas de pouso só  no  rio  Uraricoera acima de Waicás, na altura do Aracaçá.   Por toda a área do rio Parima, subindo o Auaris, têm passado garimpeiros, em grupos de 12  ou 20  que,   utilizando  pistas   e   aldeias indígenas como base, espalham-se pela região em busca de  novas  concentrações  de  ouro. Muita cassiterita também foi lá encontrada. Essa região mais setentrional do  território Yanomami  no   Brasil   não   tem  recebido cobertura  vacinal  adequada,  com  exceção talvez dos locais adjacentes às missões.  É, pois,  muito  alto  o   risco  de   grandes epidemias de sarampo, tuberculose  e  outras doenças  contagiosas,  que,   surgindo   num determinado local, podem aniquilar  aldeias inteiras numa reação em cadeia.  Além disso, a malária, atualmente muito exacerbada, é um dos  principais  causadores  de   doença   e mortes.

Como   símbolo   trágico  dessa    situação insustentável está o caso do pai que veio do Tucuxim em avião de  garimpeiro  trazendo  a filha pequena muito doente.    Na pista  do aeroporto de Boa Vista, a menina morreu-lhe nos braços.  Seu drama agora era como  levar o corpo para casa.    Perdido,  desesperado, atordoado  pelo  sofrimento,  ele   procurou Donald  Borgman.    Empreenderam então  uma busca de horas no pátio  do  aeroporto  para achar um piloto  que,  dentre  as  muitas dezenas, iria para o  Tucuxim.    Finalmente encontraram.  O Yanomami  viajou  de  volta sentado no caixão da filha, empilhado  sobre tambores de combustível. 


Aqueles índios que, contaminados,  conseguem chegar a Boa Vista, são levados  à  Casa  do Índio que passa a ser um depósito de doentes e  um  foco  concentrado  de  virulência vários  tipos.    O  tratamento  médico extremamente precário e  as  queixas  de alimentação são constantes.

Estava na Casa  do  Índio,  "a  passeio Yanomami  Raimundo   do   Ericó,   que

acompanhou  nos  vôos  a Waicás,  Paapiu Surucucus.

Paapiu: o Vietnã dos Yanomami

“Isto   é   um  Vietnã",   ouvi   um   dos parlamentares   exclamar   ante   a   visão apocalíptica de  aviões  e  helicópteros  em constante movimento que enchiam a  pista  do Paapiu com um barulho  ensurdecedor  e  sem trégua.  Aí, a longa faixa de lama de  quase um quilômetro,  continuamente  sulcada  por mono e bimotores, palmilhada por  constantes levas de garimpeiros, donos de aviões, donos de barrancos,  comerciantes,  prostitutas  e Yanomami de ambos os sexos  e  de  todas  as idades, serve de palco para um dos capítulos mais  estrondosamente  dramáticos  na  curta história do contato dos Yanomami com o mundo de fora.  Lá, no início de  1986,  a  COMARA declarara como área de segurança nacional  a pista por ela ampliada, mais cem metros  de cada lado, setenciando, assim, à  destruição a maloca Yanomami que ali já existia.  Agora aglomeram-se barracos cobertos  de  plástico azul brilhante que abrigam cantinas, depósitos, alojamentos, áreas  de  pouso  de helicópteros, sem que ninguém mais se lembre de segurança  nacional    Os  barracos  dos garimpeiros,  que   em   fins   de   janeiro amontoavam-se no  pé da  pista,  começam  a avançar para a cabeceira, onde está  a  casa comunal cônica  dos  Yanomami  e  os  quatro casebres que passam por posto da Funai. Dilapidado, o  posto  é  a  testemunha mais veemente do abandono a que a  Funai  sujeita os Yanomami em meio à maior  crise  de  sua historia interétnica,  depois  que  a mesma Funai,  apoiada  no  Conselho  de  Segurança Nacional, baniu da  região  equipes  médicas pertencentes a  Comissão  pela  Criação  do Parque Yanomami (CCPY).    Lá há  catapora, furúnculos, gripe e muita malária que  antes não existia.  Com o  abandono  do  posto  da Funai, que desde  abril  ou maio  está  sem ninguém, remédios, se  os  índios  quiserem, têm que  pedi-los  aos  garimpeiros.      O depoimento sofrido de Raimundo, um jovem pai de família da maloca do Paapiu, revela a sua indignação com essa incúria  oficial.    Sua fala foi gravada dentro da maloca, assistida por uma densa roda de membros da comitiva  e de garimpeiros que  nos  seguiam.    Um dos membros da CCPY  traduzia  trechos  da  fala para o português, até  que  a  presença  dos garimpeiros  foi   notada   e   a   tradução interrompida.  O depoimento que se segue foi traduzido em Brasília pelo antropólogo Bruce Albert, pesquisador dos Yanomami desde  1975. Em tom de  grande  revolta  e  indignação, Raimundo disse-nos o seguinte:

Eles (os brancos) não dão remédio. Tem muita doença, mas não curam a  gente, ficam aqui em  volta, não fazem nada. Tem  só Os garimpeiros são muito ruins, não chamam     a gente para dar remédio .  Por isso eu fico revoltado, mas eu não  sou  um  líder,  e então não posso falar em nome  da  gente. Se eu fosse um líder, eu falaria.   Estou muito  zangado.    São  vocês  que  devem tratar das nossas doenças (dirige-se a um dos integrantes da  equipe  da  CCPY  que realizou um programa  de  vacinações  de 1983 a 1987).  A Funai foi embora e  pode ir embora.    São  vocês  que  podem dar remédio,  vocês  que  devem  cuidar   dos índios" (em português).  É isso que  eu quero muito dizer.

A Funai  foi  embora  porque   nós,   os Yanomami, íamos sempre à  casa  da  Funai  (chefe de  posto)  para  dar  uma  prensa nele, por isso ele foi  embora.    Quando foi embora ele disse: "é esta  gente,  os garimpeiros, que de agora em diante  vai dar remédio para vocês, nós não vamos dar mais".   Foi  assim que  falou  a  Funai quando foi embora: "eles (os garimpeiros) são todos seus, para vocês já basta", foi assim que a Funai falou

(Pergunta:  os  garimpeiros   quiseram  dar remédio para vocês e a Funai recusou?)

A Funai só deu remédio umas poucas vezes. Os garimpeiros nunca dão remédio  para   a gente.  A mim eles recusaram mesmo.    Eu fui    e  eles  não  quiseram me   dar remédio.  Por isso eu  falei  para  eles: 'Podem ir embora, podem voltar.   Eu  vou a pista, a pista  é  minha,  por isso eu vou estragar.    Se  meus  filhos morrem (por  falta  de  remédio)  eu vou estragar  essa  pista.    O  "posto"  (em português) é nosso também.  Se  é  assim, eu vou destruí-lo também".

Quero que se dê remédio assim: para  um, para outro, para outro,  para  outro,  um por  um, para as crianças  doentes,  quero que cheguem aqui com remédio para  dar  a cada um e digam: "depois você  vai  ficar bom".  E depois, quando os doentes vêm de novo, quero que se dê  tratamento  também para cada um, do mesmo jeito e então  nós vamos  dizer:  "tá bom,  obrigado"   (em português).

Neste depoimento, Raimundo fez  o  contraste entre o cuidado da equipe médica da CCPY,  o método de  trabalho de  atender  um a  um, registrando as vacinações e  tratamentos  em fichas  individuais,  com o  despreparo  e desorganização dos agentes da Funai que  têm a obrigação de dar assistência sanitária aos índios,   mas   que,    por   penúria   e incompetência, acabam se desmoralizando  aos o4hos de todos, principalmente dos Yanomami. No período de quatro anos antes  da  invasão qarimpeira, a região em torno de Paapiu  foi praticamente   coberta  em  toda  a   sua totalidade pela  campanha de vacinação  da CCPY.  Hoje  os  índios  estão  sofrendo os efeitos de epidemias de malária,  novas  na região, de gripe e outras doenças,  mas  não se tem noticia de grandes ondas de  sarampo, tuberculose,  coqueluche  e  outras  doenças infecciosas que costumam varrer populações indígenas que enfrentam invasões,  raramente na escala dessa avalanche de garimpeiros.

Em janeiro, durante a visita de uma missão diplomática européia da qual  participei,  o mesmo  Raimundo  e  uma  mulher  Yanomami denunciaram as várias  frentes  do  desastre que é para eles o garimpo.  A falta de  caça é total, há muito afugentada pelos aviões  e garimpeiros que varam a mata;  a  água  está inutilizada por mercúrio e pelo assoreamento dos rios, provocado pelo trabalho brutal  de mangueiras gigantes que varrem os barrancos; não há mais peixe.  Os Yanomami vêem-se  na humilhante  situação de  pedir comida  aos invasores.  Até mesmo a  tentativa de  João Davi,  outro Yanomami  local,  de  extrair pedágio  dos  aviões  não - deu   certo. Desiludido,     ele     encontra-se     na desconfortável  situação  de  ter  perdido legitimidade e respeito na pista e  talvez também em casa.

Se Paapiu  é  a epítome  do  desastre que desabou sobre os Yanomami encarnado naquilo que foi descrito como "faroeste aéreo" (vide o relatório do então  Secretário  Geral  do Ministério da Justiça, após  uma visita de surpresa ao  local  em  fins  de  1988),  os barracos devastados da Funai são o  símbolo vivo da  conivência  oficial  com  esse desastre.  O que era a farmácia tornou-se um quarto de despejo,  com vidros  quebrados coalhando o chão de terra batida,  seringas descartáveis expostas a qualquer mão, livros dê registro amontoados  na  poeira,   numa atmosfera de saque e agressão.  O que  levou o Chefe de posto a abandonar  assim o  seu dever fica apenas sugerido no depoimento  de Raimundo (...). 


 


Se já é desastroso o resultado da inépcia da Fanai, pior  ainda  é  a  sua  determinação, aliada à Saden,  de  proibir que  entidades independentes trabalhem junto  aos  Yanomami em campanhas de saúde preventiva e curativa. rio criminoso quanto não fazer é não  deixar fazer.    Assim,  o  direito  dos  índios  à assistência sanitária é duplamente violado.

Cerca  de  duas  horas   no   Paapiu   foram consumidas por longa  conversa  do  Deputado Plínio Sampaio com os  garimpeiros  que  se amontoaram à porta do Búfalo, querendo saber se era mais um grupo de ecologia que  vinha observar a situação; pela caminhada ao longo da pista  até  a  maloca  Yanomami,   sob quantidades de olhos desconfiados de  homens barbados, muitos deles esperando vôo;  pela entrada em massa à maloca, tomada de assalto por  tanta  gente   ao  mesmo  tempo  e mostrando-se misteriosa e quase mística pelo efeito da fumaça  que  subia  das  fogueiras domésticas e encobria o topo do mastro  e  o teto (era hora da  refeição  da  tarde,  por volta das 4); pela tentativa de se filmar lá dentro, frustrada pela negativa dos  índios, sempre avessos a  câmeras  e  muito mais  a flashes e  holofotes;  pela  constatação  de quão contaminado está o córrego ao  lado  da maloca; e pelo patético espetáculo do estado deplorável das instalações  da  Funai.    Às presas,  voltamos   ao  Búfalo,   rumo  a Surucucus, para voltar a Boa Vista antes  do anoitecer ou, mais precisamente,  antes  das 18 horas.

O contraste de Surucucus com  Paapiu  é  tão grande que chega a desconcertar. A  sensação de paz e tranquilidade é plena do momento em que a aeronave que nos transporta desliga os motores.  Ouve-se apenas algum pássaro  que voa piando, vozes humanas, o vento.

Em janeiro, o destacamento do  Segundo  BEF, que é um posto  em  fase  de  instalação  do Projeto Calha Norte, tinha 10 homens,  quase meninos,  comandado  pelo  Tenente  Agenor, jovem de Curitiba,  saído  da  Academia  das Agulhas Negras.  As  casas  do  destacamento são  novas,  de madeira  envernizada,   as janelas e portas protegidas por tela  verde, tudo muito  limpo  e  confortável.      um pavilhão para as operações, como  telefonia, um que é dormitório dos soldados e um outro, o "pavilhão dos terceiros", que irá  abrigar a Cobal e uma agência bancária.  O prédio da escola para  filhos  de  oficiais    está pronto, a  mobília  empilhada  numa  sala  à espera de uso.   Umas  oito  residências  já estão  construídas  -  três  quartos,  sala, cozinha, área de  Serviço  com  espaço  para máquina de lavar - e mais  oito  estão para ser feitas.  O Tenente, que está no meio  de seu  segundo  e  último  ano  em Surucucus, pretende deixar a obra acabada, pronta  para receber 70 oficiais e suas famílias,  embora saiba que essas famílias ainda demorem a vir e a escola mais ainda a ser ativada.

À chegada da missão diplomática em  janeiro, o Tenente e seus soldados vieram ao posto da Funai,  ao pé  da pista,  perguntar  quem éramos.  Não haviam sido avisados e, como "a área é do exército", ele  tinha que  saber. Está  acompanhado da mãe  viúva,   senhora patriota e maternal, cuja maior  frustração em Surucucus é ver sua plantação de  tomates não produzir mais  nada  além  de  muito trabalho.

Os Yanomami de Surucucus têm a maloca a  uns 50 metros da pista, ligada ao posto da Funai por uma trilha coberta de lama preta em toda sua extensão.  Em janeiro, a maloca  estava quase vazia;  com exceção  de  umas   três mulheres, uns dois jovens e várias crianças, todos os demais estavam, segundo  Cleber,  o chefe de posto, tomando caxiri  numa  aldeia vizinha, a três horas a pé. 

Nas imediações não  existe  garimpo,  só há garimpeiros em Xidéia, a oeste do posto.   Há pouco  tempo,  informaram-nos  em  janeiro, destacamento atendeu ao pedido dos  Yanomami de uma maloca mais  distante  (provavelmente Xidéia ou imediações) para retirar um grupo de garimpeiros.  Parece que  a  presença do exército inibe a invasão.

Em junho, o destacamento já crescera para 30 homens,  ainda  sob o  comando  do  Tenente Agenor, que nos acompanhou desde Boa Vista, aproveitando a viagem do Búfalo.  Ao pousar em Surucucus,  deparamo-nos  com  todo  o pelotão perfilado na  pista  à espera das ordens de  seu  comandante.    Ficava  assim marcada  para  a  comitiva  da   Ação   pela Cidadania a presença do Calha Norte na  área Yanomami.

Alguns índios, mulheres jovens,  rapazinhos, crianças,  observavam a  alguma  distância, tentando  fugir  às  câmeras  de  todos   os fotógrafos, profissionais e amadores.  Eu só consegui convencer  umas mocinhas  zangadas que não tivessem medo,  pois  eu  não  iria fotografá-las,  quando,  ainda  de   longe, demonstrei gesturalmente a  minha  intenção, enfiando   a   máquina   numa    sacola. Aproximei-me,  falei   algumas   frases   em mistura de Sanumá e Yanomami, e imediatamente sorrisos se abriram, vieram perguntas  sobre quem eu era, pedidos para que  não  se  tire fotos   e   muita   vontade   de   continuar conversando.

Quinze   minutos    depois    de    pousar, embarcávamos de novo no Búfalo, de onde saía o único ruído extemporâneo a quebrar a paz e o silêncio daquela magnífica  paisagem.    O Deputado Plínio Sampaio, às pressas, foi até os prédios do destacamento,  acompanhando  o tenente e sua veneranda mãe, fielmente à sua espera para um beijo  de  boas  vindas.    O cuidado,  a   limpeza  e   disciplina  nos edifícios e nos soldados do Calha Norte  são um espelho mortal para a desordem,  falência e  ineficácia  da  Funai,   até  mesmo   em Surucucus, onde o posto já foi modelo, antes de Francisco Bezerra, chefe  durante muitos anos, ser transferido em 1987.  Mas, que não se iluda quem ler nesse contraste  favorável aos militares qualquer sugestão de  que  seu papel na área é benéfico aos Yanomami.   Até agora, a única coisa. que  o  Projeto  Calha Norte tem feito pelos índios foi retalhar  o seu  território  tradicional  em  19   ilhas insuficientes  em  tamanho  e  inadmissíveis para a sobrevivência desse grupo étnico  que é o maior das Américas a viver ainda segundo suas próprias tradições.  Por outro lado, as doenças que afligem os Yanomami de Surucucus não parecem ter diminuído com a presença dos militares, apesar de contarem com a presença de um médico no destacamento. 


 

Cleber, o "antropólogo"  de  Juiz  de  Fora, continua à frente do posto.  O atendente, um índio Macuxi, aproveitou o Búfalo  e  voltou para Boa Vista.

Em janeiro, Cleber nos disse que a  situação de saúde dos Yanomami ali era  boa,  nenhuma doença, a desnutrição de duas semanas  antes havia acabado, como por magia.    Agora,  em junho, membros da comitiva  relataram outra coisa: os Yanomami em Surucucus queixaram-se de  estar  sofrendo  de  doença  de  branco, xawara,  o  que  significa  algum tipo   de epidemia.  Pela brevidade da  nossa  visita, não  foi  possível  obter maiores  detalhes sobre isso.  Apesar de não terem garimpeiros nas imediações, como ocorre  em Paapiu,  e apesar  de  haver   agora  um  médico   no destacamento, os índios de  Surucucus  estão igualmente sujeitos às ondas infecciosas que assolam  a  região.    Uma  mulher  Yanomami afirmou que os índios só recebem remédios se forem procurar o médico dos  militares, pois ele nunca vai à maloca.

Depois  de  umas  cinco horas  voando   na turbulência da época das chuvas, pousamos em Boa Vista quando já começava a escurecer.  É que, dá manhã, depois da visita  à  Casa  do Índio, fomos até Waicás, voando  abaixo  das nuvens, para constatar que seria  impossível pousar.   As poças  d'água  na pista eram grandes e intransponíveis.  Depois  de  umas quatro  ou  cinco voltas  sobre  o   lugar, voltamos à base.

Há em Waicás um posto da Funai,  uma maloca estilo Yanomami, cônica,  fechada,  nova  ao lado das  casas  retangulares  ovaladas  dos índios Maiongong, de  teto    negro.    As margens do  Uraricoera,  nas  imediações  do posto, umas 15 balsas empilhavam-se, algumas em evidente atividade.    Dias  depois,  fui informada por Donald Borgman da participação dos Maiongong nas operações  de  garimpo  de Waicás.   Atraindo os  garimpeiros  para  a pista, eles serviam (ou  ainda  servem?)  de guias mata  a  dentro,  cobrando  bem pelo serviço. Ganharam muito dinheiro , construíram uma  casa  em Boa Vista para alojar  Maiongong  e   fretam   aviões   com regularidade para mandar encomendas  a  seus parentes de Auaris, a pista mais distante  e cara em todo  Roraima.    Por  sua  vez,  os Maiongong de Auaris não  estão  dispostos  a conviver com garimpeiros.   Em  janeiro,  um certo Walmir, irmão de José Pereira,  médico da Funai, e filho de mulher Wapixana, estava em negociações com os Maiongong para  trazer uma balsa para a área, a umas cinco horas de canoa abaixo da missão de  Auaris.    Os Maiongong concordaram, desde  que  fosse  só ele.  Mas, aos poucos, Walmir  foi  trazendo mais gente, até que os  índios,  que  também trabalhavam   na   balsa,    desconfiados, mandaram-nos  embora  e  eles  se  retiraram pacificamente.

Em janeiro, o alto Uraricoera estava  tomado por centenas de balsas, conspícuas com  seus toldos de plástico azul;  grande quantidade de pistas, alguns  aviões  pousados,  longas manchas de óleo em alguns  pontos  do  rio. Segundo o piloto do Islander que transportou a missão diplomática,  a maioria  daquelas balsas  estava desativada,  encostadas   às margens; só funcionavam as  que  ficavam no meio do rio, geralmente em grupos de três ou mais.   A desativação  não  foi  devida  às chuvas excepcionais que caíam naquela  época do ano, mas porque o ouro é fraco  na  área. Cora isso, os garimpeiros  vão  subindo  cada vez mais.  Os rios Parima e Aracaçá, ao  sul e a noroeste do alto  Uraricoera,  passam a ser o foco de novas invasões.  O número  de pistas de pouso, estimado entre  80  e  100, muda constantemente com o avanço das frentes garimpeiras que se espraiam pela  região  em torno das Serras de  Surucucus  e  Couto de Magalhães, tendo chegado mesmo a entrar uns 300 quilômetros Venezuela a dentro,  criando uma situação  extremamente  tensa  com  o exército venezuelano e  um grande  embaraço diplomático para o Brasil.   Por  ironia  ou provocação,  uma das  pistas   ilegalmente abertas  por   brasileiros   em   terras vezuelanas foi  batizada de  Constituinte (...  ) .


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jucá vai resistir à expulsão do garimpeiros

Se o governo federal decidis-se expulsar garimpeiros das áreas indígenas no mínimo em Roraima encontraria um decidido foco de resistência no governador do esta-do, Romero Jucá, que, embora ex-presidente da Funai, assume uma posição totalmente favorável à exploração do ouro pelos garimpei-ros mesmo nas terras dos Yanoma-mi. Romero Juca acha que o índio também deve participar da exploração do ouro e nisso auferir van-tagens, "construindo seu próprio futuro'

-         Não concordo com uma ini-ciativa de força para retirar os garimpeiros. É possível achar uma fórmula que atenda a esses trabalhadores - disse Jucá num encontro que reuniu todos os lideres garimpeiros da região dia 28. Ele promete que não usará a policia

O governador de Roraima afirmou estar firmemente conven-cido de que a atividade garimpei-ra pode ser desenvolvida com res-peito ao meio ambiente e às comu-nidades indígenas, cuja participação no processo de exploração do ouro preconizou. A vantagem que Jucá acha possível os índios tira-rem com isso é que, explica, se eles atuarem de forma organizada, o garimpo lhes pode render royalties e, assim, os Yanomami, de posse do dinheiro, teriam condições de viver melhor.

O empenho de Jucá no caso é que para ele "o futuro de Roraima depende da extração mineral: o país não pode ignorar essa realidade".

Culpa da igreja

O presidente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis  (Ibama) e a igreja são os atuais bodes expiatórios do presidente da União dos Sindicatos de Garimpeiros da Amazônia Ilegal (Usagal), José Altino disse que, coagido pelo capital externo, ele mudou sua posição, que era a favor de uma exploração organizada do ouro de Roraima junto à fronteira da Venezuela.

-         Fernando César chegou a dar a impressão de que tentaria convencer o presidente Sarney  a tomar uma posição nesse sentido, mas depois de sua viagem à Europa mudou o discurso - acusou Altino.

As acusações contra a Igreja são mais violentas: ela "é culpada em grande parte por toda essa mentira de que o  índio Yanomami está sendo dizimado e nossa floresta destruída pela exploração do ouro". Por achar isso, Altino prometeu:

- Se o governo tomar alguma atitude para tirar os garimpeiros de Roraima, a Usagal vai criar um movimento e forçar a expulsão de todos os padres e missionários estrangeiros que atuam na Amazônia. ( J.B. 29/6/89) 

Os índios do lavrado: a guerra do fogo

O vôo de domingo,  dia  11  de  junho,  para Surumu foi acrescido de vários  passageiros. Saiu  Raimundo  do  Ericó,  mas  entraram  a antropóloga  Nadia  Farage,  Jaci,  o  líder Macuxi, o bispo D. Aldo,  o  Padre  Lírio  e dois agentes locais da Polícia Federal.    A grande caravana,  desembarcada  na  pista  e seguindo a pé, encheu a rua larga  que  leva às instalações da missão católica, a dois ou três quilômetros.   Nessa  rua  da  Vila  de Surumu, ocupada tanto por  índios  como  por regionais,      enfileiram-se      modestas residências  e  estabelecimentos   variados, como  a  Associação  de  Mães,   a   central elétrica  e um número de bares.

Levados ao auditório da missão, esperava-nos um salão repleto de índios Macuxi, Wapixana, Taurepang e Ingaricó.  Fomos  acomodados  ao longo da parede,  em  torno  da mesa,  onde Jaci,  de  pé,  com microfone  na mão,  ia convocando  a  se  apresentarem grupos   de índios  de  acordo  com  suas   atribuições: vaqueiros,         capatazes, catequistas, costureiras, etc.  Eram saudados com palmas. Cada um de nós também se apresentou.    Mais palmas.

Depois das formalidades, embarcamos, brancos e. índios, em três toyotas e um caminhão para ver os efeitos da queima das casas indígenas na maloca do Miang, a  seis  quilômetros  da missão.

A história recente  dessa  maloca  tem  sido pontuada por contínuos abusos de fazendeiros e autoridades locais contra  o direito dos Macuxi à posse de suas terras, direito esse há muito estabelecido  e  reconhecido agora com a delimitação da área indígena de Surumu da qual Miang faz parte.

O nome Miang é uma versão  transformada da palavra macuxi que  significa  "lagoa dos mosquitos".  Há uns 80 anos, os Macuxi deram nomes  aos  rios,  às  serras  e  a  outros componentes da paisagem e se  instalaram na região.  Antes  de  1964,  não haviam tido problemas sérios com invasores,  embora um certo João Rebouças  já andasse  pela  área desde o final dos anos 40.

Como  é  de  hábito,  os   Macuxi   deixaram temporariamente o Miang na década de 60 para permitir o pousio da terra.  Quando voltaram nos  anos  80,  as   fazendas     estavam instaladas e começaram os  conflitos.    São basicamente  dois   os   fazendeiros:   João Rebouças, da fazenda Brasiléia,  cuja  posse está em nome  de   Francisca,   sua   irmã absentista, e Dedé, José  Américo  Valentim, da fazenda Redenção, genro de Francisca, que antes possuía também essa  fazenda.    Dedé alega ter título de posse datado de 1939.

Em 1984,  a  área  foi  identificada  como indígena;  quatro  anos  depois,   o  Grupo Interministerial  encarregado   do   assunto acatou essa identificação e procedeu  à  sua delimitação.    A partir  daí,  os   ânimos acirraram-se e a guerra do fogo começou.

Em outubro de  1988,  chegaram ao  Miang agentes do IBDF e da Polícia  Federal  para intimar os  índios,   acusados  de  crime ecológico por estarem preparando  roçados; suas ferramentas foram confiscadas.  Um mês depois,   os  mesmos  agentes   voltaram, acompanhados de Rebouças e  Dedé;  intimaram de novo os índios e obrigaram-nos a  assinar um documento  comprometendo-se  a  não mais trabalhar aquela terra.

Em fevereiro de 1989, prenderam o  líder  do Miang,  José  Peres  e mais  dois  Macuxi. Queimaram cinco casas.  Em março, os  índios reconstruíram as casas.

Em abril,  agentes  da  Polícia Militar  e Civil,  funcionários  da Funai  e  os dois fazendeiros   prenderam   cinco   Macuxi, destruíram cinco casas e, numa demonstração de força e poder de humilhação,  fizeram os índios arrancar à mão os postes da cerca que haviam instalado em volta  da maloca para protegê-la.  Prenderam também o Padre  Pedro e foram todos levados para a Vila de Surumu. No dia seguinte, foram a Boa Vista para  um interrogatório de várias horas.

Sessenta índios se uniram para  reconstruir Miang.  A 6 de maio, nova investida. da PM, da PC, da Funai e dos  fazendeiros  resultou na queima de todas as  nove  construções  da aldeia, inclusive escola e  igreja,  e  na prisão de todos os índios de Miang. Dedé sentiu-se  especialmente   fortalecido  por haver ganho uma  liminar na  justiça  de Roraima.

No dia 8 de maio,  pela  primeira vez,  os índios reagiram e queimaram as  casas  de Rebouças e Dedé,  reconstruídas pouco  depois com dinheiro  arrecadado  de  um  leilão promovido pela UDR.

A  25  de  maio,   os   fazendeiros   e   o administrador da Funai  sequestraram o tuxaua Tota da maloca do Barro, quando ele voltava  da roça, à noite, com a mulher.   Levaram-no para a casa de Dedé, prenderam-no e tentaram extrair dele  informações  sobre  os outros índios que haviam participado do  ataque  às fazendas.

Com esse pano  de   fundo  ainda  pouco vislumbrado  (estas   informações   foram-me gentilmente fornecidas no fim de  junho por Luis Eusebi e  Patricia  Ferri,  membros  do Movimento de Leigos para a América Latina), fomos levados  para  observar  de  perto  os resultados visíveis dessa guerra que  não  é mais fria.

No caminho de Miang,  paramos para ver  um prédio  queimado   na   fazenda  Brasiléia. Tivemos  uma demonstração inesperada da volatilidade  da  situação interétnica da área.  Juntou-se um aglomerado  da  comitiva de  índios  na  frente  da residência de Rebouças.  Um dos agentes da Polícia Federal embarcados em Boa Vista  sacou da  arma  e, entrando casa a dentro,  desarmou o homem, nordestino já grisalho.  Em poucos minutos, armou-se uma cena tão  incandescente que  o agente da PF mandou embora todos  os  índios ali presentes com tal Urgência e pânico  na voz, que, com exceção de  alguns  líderes, voltaram todos para a missão.    Rebouças gritava contra o abuso dos "caboclos" -  não são índios porque usam roupa -, acabou tendo crise de  choro  e  foi  acalmado pelos procuradores.  Sua mulher,  de uma  janela, insistia para  que  todos víssemos suas panelas furadas pelas, balas  dos  caboclos. Uma menina chorava no  quintal.    A tensão subiu a tal ponto que tivemos que sair dali rapidamente, fotógrafos, cinegrafistas  e  o resto.  A consternação era geral e alguns da comitiva lamentavam que tudo  aquilo  caísse sobre um mero posseiro.    Entretanto,  os índios e os membros da Pastoral afirmam que esse homem é perigoso e  já havia  atacado índios,  chegando a esfaquear  na mão um menino Macuxi.

Mais  adiante,  outra parada  na   fazenda Redenção  Os agentes  da  PF  não deixaram ninguém se aproximar do portão até que  eles mesmos fossem verificar se era seguro.  Mais uma casa queimada pelos  índios.    Dedé,  o dono da fazenda, homem baixo, - troncudo,  de barba e com rabo de cavalo preso num boné de Fórmula 1, conversou suave e calmamente  com as autoridades, reclamando da  agressão dos "caboclos".  Enquanto isso, dois dos agentes da PF foram até um casebre sob umas  árvores a cerca de 50 metros do pátio onde estávamos agrupados, e voltaram carregando umas  cinco ou seis espingardas  e uma  ou duas  armas pequenas, confiscadas de  três  garimpeiros. Estavam estes a caminho da  Serra do  Sol, aguardando  que  o  patrão,    Magalhães, aparecesse com uma balsa.  Surpreendidos por um flagrante que não era bem deles, pouco se importaram com a tomada das armas; não  eram suas, afinal, e serviam apenas para caçar, dizia um velho garimpeiro  desdentado  e alheio.  As  armas  foram postas  numa das toyotas e seguimos viagem.

Prosseguindo  pelo   lavrado  em  estrada precária,  transformada  em lamaçal  pelas chuvas, chegamos  a Miang,  rio e maloca. Nove casas espalhadas num diâmetro de  cerca de 200 metros só tinham as paredes de barro; os telhados haviam sido queimados.    Mais além, a cerca dupla que  os  índios  haviam erigido para proteger a roça do gado dos fazendeiros fora cortada a motosserra e  a plantação  destruída pelos  animais.    Ao fundo, a bela Serra de  Marari  e mais  o plácido lavrado em volta pareciam querer negar tanta violência.  Num toque de ironia, como uma peça que  a História  pregava, visitamos, do outro lado da estrada, a pedra com a inscrição SPI, marcando aquelas terras como indígenas, posta ali,  segundo consta, por Rondon em 1917.  Ao lado da  inscrição, membros da comitiva posaram para fotos.

De volta a Surumu,  foi  servido um rápido almoço e os índios voltaram a reunir-se  com a comitiva para lhes entregar  um documento contendo as  agressões que vêm  sofrendo pessoas e bens  indígenas,    A visita  foi encerrada com uma sessão de dança do  culto Aleluia,  bem  no  estilo  Caribe,   mas, aparentemente,   com  letra   de   música catolicamente religiosa.

Enquanto voltávamos ao avião, os três homens da PF que nos acompanhavam saíam de um bar com o dono da fazenda Redenção.

O Búfalo, superlotado de gente,  levou para Boa Vista vários índios, entre os quais um menino de seus oito anos  com  suspeita  de poliomielite.    A mãe  acompanhou-o;   com expressão de intensa ansiedade  e  dor  não tirava os olhos da maca onde  deitaram a criança. 

Em  Boa  Vista:   a  pulverização   de responsabilidades

Às 9 da manhã de segunda-feira,  dia  12,  a comitiva  dividiu-se   em  duas   tarefas: encontro  com o  governador  Jucá  Filho  e entrevista com as autoridades militares.   O que se segue é um relato da segunda, à qual compareci juntamente com o  Senador  Severo Gomes, os representantes do  Deputado  Fábio Feldman, da SBPC, do CEDI, da CCPY, além da antropóloga Nádia Farage.

Receberam- nos o Coronel Francês,  comandante da  guarnição  do  Sexto  BEC  (Batalhão  de Engenharia e Construções) de Boa Vista  e  o Coronel  Lima  Mendes,   comandante   dos destacamentos  do  Segundo  BEF   (Batalhão Especial de Fronteiras) de  Roraima.    Quem mais falou  foi  o  segundo,  respondendo  a perguntas e acrescentando a maior parte  dos comentários.  Ele estima que    atualmente 50 mil garimpeiros na mata e de 80 a 100 mil na cidade, o que representaria praticamente o dobro da população de Boa Vista.    Sendo assim,  disse  ele,  torna-se  impossível  a retirada de  garimpeiros  à  força.    Seria preciso empregar exército de campanha e  não há recursos para isso: o  exército  não  tem efetivo e a aeronáutica não  tem os  meios. Portanto, é preciso  encontrar uma  solução conciliatória juntamente com o  governo de Roraima.  Este quer administrar o  garimpo, quer mostrar que    índios  que  querem o garimpo e outros que não o aceitam.   Assim, os    garimpeiros     seriam     retirados exclusivamente das áreas dos índios que  não o querem.  A fonte de Lima Mendes foi a rede Manchete que mostrou índios que  exploram e índios que não exploram ouro.  Por  exemplo, no Auaris, os Yanomami exploram  (informação infundada, pois não tem havido  garimpagem, ao menos no  alto Auaris);    no  Demini, Continuou o coronel, o índio Davi não  deixa garimpar.  Prosseguindo, disse que o fato  é que existe ouro em quantidade compensatória; portanto, é preciso achar uma  solução  para que a exploração continue.  O BEF  e  o  BEC fazem parte da comissão criada pelo  governo do estado para ordenar  o  assentamento  dos garimpos.  O Projeto Meridiano 62 do governo de  Roraima  contempla  a  organização   dos garimpos dentro de áreas indígenas, pois  já são um fato consumado.  O restante  da  área seria administrada pela Codesaima (a estatal de  Roraima)   que   subcontrataria   outras empresas   para   exploração   de   minério. Royalties seriam revertidos  à  Funai  para serem repassados aos Yanomami.    O Coronel Francês insistiu repetidamente que é preciso ficar em Roraima um tempo para conhecer tudo melhor, pois a situação  é  muito  complexa. Há que permanecer ai para  se  saber  o  que está  acontecendo.  Ambos estão em Boa  Vista apenas desde janeiro.

Foram levantadas questões sobre responsabilidades.  O que  faz  o  exército sobre as  pistas  clandestinas?    Resposta: isso é com a aeronáutica; as pistas não  são clandestinas, são  apenas  não  homologadas; não há nada que impeça um avião de  decolar. O que  faz  o  exército  sobre  as  invasões descontroladas de  garimpeiros  em área  de fronteira?   Resposta:  "nós  somos  aqui  o órgão de execução; é o CMA (Comando Militar da Amazônia)  que manda".    O que  faz  o exército para coibir o contrabando de  ouro? Resposta: "o exército não  tem   ingerência nos casos  de  contrabando,  isso  é  com a receita federal".   O que  faz  o  exército sobre  a  violência   e   assassinatos   nos garimpos?  Resposta: isso é  com a polícia Civil e federal.  Como está a demarcação das áreas indígenas?  Resposta: a colocação  de marcos é feita por outra parte do  exército, o BEF apenas presta apoio; só  foi  feita  a demarcação  em torno  de  Surucucus,   Lima Mendes não sabe se foi completada.

O que  faz,  afinal,  o  exército  na  área? Resposta: cuida da  segurança  interna,  da segurança  externa  e      apoio    ao desenvolvimento   de    assistência    às comunidades, como saúde, por  exemplo.    Em que   consiste   essa   segurança   interna? Resposta: criar condições para as comunidades;  Surucucus  é  um  pólo  de desenvolvimento  para   a    fixação   de populações.  Mas, questionou-se, Surucucus é área indígena!   Resposta  de  Lima Mendes:

“isso não é comigo, é o governo que decide”. Previstos no Projeto Calha Norte, os  postos do BEF em Auaris e em Ericó, ambos  em  área Yanomami, deverão ser construídos  a  partir do próximo semestre.  Seriam, portanto, mais dois  "pólos  de  desenvolvimento"  junto  à fronteira,  em pleno  território  indígena. Resta a pergunta que não chegou a ser feita: se Paapiú não está previsto  como  posto  do Calha Norte, por que foi ampliada  a  pista? ou, inversamente1 se o Projeto  Calha  Norte prevê a ordenação da  ocupação  em área  de fronteira, por que o BEF não está em Paapiu? Pelo que nos foi dito, a recente invasão  de garimpeiros brasileiros na Venezuela não  se enquadra em nenhuma das atribuições do nosso exército.  Esclareceu  Lima 

Mendes:  se  os nossos invadem a Venezuela, o problema é dos venezuelanos; se os deles invadem o Brasil, o problema é nosso.

Como órgãos de execução, o BEC e o  BEF  não tomam  iniciativas  que  vão  além de  suas limitadas responsabilidades.  Fica  delegado a poderes superiores,  algo  difusos,  nunca imediatos e  acessíveis,  o  ônus  de  fazer executar as políticas e ações.  A dispersão da responsabilidade contribui  decisivamente para a inércia institucional que  permite  a continuação  e   exacerbação  dos   abusos, crimes, inconstitucionalidades e impunidades que assolam Roraima.

Uma  rápida  visita  ao  sindicato  dos garimpeiros deu a José Teixeira  Peixoto,  o Baixinho,  a  oportunidade  de  mostrar  sua liderança entre os garimpeiros.  O sindicato declara que   6  mil  garimpeiros   estão inscritos.  O que esse número representa  em termos de percentagem do  total  de  pessoas que  trabalham em garimpos  é  difícil  de avaliar, mas pode ser um parâmetro  para  se questionar os números flutuantes e sempre em ascensão  que  são   citados   por   aqueles interessados em tornar a invasão de  dezenas de milhares de garimpeiros um fato consumado e irreversível.

Baixinho é supostamente adversário de  José Altino Machado, empresário de Minas  Gerais que  controla aviões  e pistas  na  área Yanomami.  Oponentes ou  aliados,  Altino  e Baixinho, como Tom e Jerry, fazem parte  de um mesmo roteiro e cenário.  Seus interesses são mais convergentes  do que  antagônicos, apenas  competidores por mão  de  obra  e produção  de  ouro.      Figura  um  tanto folclórica,  Baixinho  orgulhosamente  exibe fotos suas 


 

trocando  sorrisos  com Ulysses Guimarães  e  contou ao  Deputado  Plínio Sampaio a sua versão pessoal da  invasão  de garimpeiros na fronteira.  O que  realmente aconteceu, disse ele, foi que um grupo de garimpeiros  venezuelanos   atravessou   a fronteira, chegou até um garimpo no Brasil e deu uma surra nos  nossos  compatriotas  que garimpavam tranquilamente  na  sua  terra. Mostrou no mapa da parede  onde  se  deu o assalto inimigo.

Por último (last but not least), visitamos a Funai. O prédio,  uma  casa  residencial transformada em escritórios na década de 70, está  em  franca   deterioração. O administrador estava  ausente,  em Manaus, desde o dia em que a comitiva  chegou,  e  a substituta, Rita Maria de  Souza  Gonçalves, nervosa e quase em pânico, tentou  livrar-se das perguntas mais delicadas, dizendo que  é apenas substituta, não sabe  de  nada,  está ali só porque o administrador  não  está,  a responsabilidade não  é dela.     Veio  o discurso habitual de  impotência:  falta  de

CORREIO BRAZILIENSE

 18  Brasília. domingo. 2 de julho de 1989

Roraima culpa Ibama pela ameaça

Boa Vista- Tanto o governador Romero Jucá como os garimpeiros não crêem que o garimpo seja   fechado. Acham que a polêmica se instaurou devido “ao jogo mal intencionado” do presidente do Ibama. Fernando Cesar Mesquita, “O Fernando me telefonou antes de pedir na Justiça a retirada dos garimpeiros, para dizer que só tomou a medida porque organismos internacionais defensores do meio ambiente e dos índios estavam pressionando-o a fazê-lo, caso contrário não conseguiria empréstimos no exterior”, garante o “Rei do Garimpo”.

Jucá acredita que este embate judicial sobre os garimpeiros será "empurrado pela barriga" até o término do governo Sarney e o "abacaxi” ficará nas mão do próximo pre-sidente da República. "Fechar garimpo é conto do fada". diz o governador, admitindo que o governo de Roraima não concordará com qualquer iniciativa voltada para a retirada, à força, dos Garimpeiros.

As criticas do governador e dos garimpeiros ao senador Severo Gomes (PMDB- SP), ao deputado Plínio Arruda Sampaio (PT-SP) e a Igreja Católica tiveram repercussão  positivas na comunidade garimpeira. Os parlamentares, recentemente, fizeram uma viagem à Roraima e sobrevoaram as áreas indígenas e teceram severas criticas aos garimpeiros e ao governo do Estado. "Esses dois políticos (alusão aos parlamentares) e mais os padres estrangeiros do Pais. têm que ser execrados pela opinião pública", dia Altino Machado.

Os garimpeiro", algumas tribos Yanomami civilizadas que atuam e vivem a cem metros da pista de pouso  de Paa-piu (esta pista serve como apoio para os 13 pontos de garimpos de ouro na Floresta Nacional, e o Governador Romero Jucá, sentem arrepios" ao ouvir pronunciar o nome de Claudia Adujar, fotógrafa integrante da Comissão para Criação do Parque Yanomami. Dizem eles que "é uma estrangeira que veio tirar fotografias dos índios e decidiu permanecer morando com os Yanomami. Depois, esta senhora veio à imprensa  denunciar que os garimpeiros estavam matando os índios". diz um garimpeiro que catava no apartamento 156 do Hotel Boa Vista Tropical, em Boa Vista, na última quarta. feira, e pediu para no ser identificado.

recursos, o Calha Norte ainda não liberou os 50 mil cruzados  novos que prometeu  em janeiro, a Funai não  tem aviões,  não  tem lanchas, não tem ambulâncias, tem uns  dois ou três veículos do tipo toyota.   Quando é preciso remover índios doentes  da  área,  a Funai pede avião ao governador.    O piloto faz a remoção, mas não leva os  doentes  de volta; ficam depositados na Casa do  índio até surgir uma carona aérea.  Rita negou que a Funai contrate aviões de garimpeiros,  por falta de dinheiro!  Os 23 postos da Funai em Roraima mais  a  sede  contam  com  123 funcionários,  sendo que  apenas  dois  são médicos para atender  a mais de  30  mil índios.

Aflita com a barragem de perguntas  e  a presença de uma câmera de vídeo no cubículo que passa por seu  escritório,  Rita mandou chamar às  pressas  o  engenheiro  agrônomo, Ponciano,  que,  mais  calmo  e  articulado, produziu estatísticas da miséria da Funai. A desordem dos  remédios  em Paapiu,  disse ele, é por causa dos  aviões  na  pista que levantam muita poeira!   Enquanto  isso,  em   e outra sala, o chefe de  posto  ausente  de Paapiu  batucava  burocraticamente   numa máquina de escrever, preenchendo algum papel para uma  índia do  lavrado em pé  à  sua frente.

Ao sairmos, topamos com a cena dramática de um casal  Macuxi  da maloca Araçá   (Alto Cotingo)  com uma  criancinha que parecia agonizar.  Com a cabeça desproporcionalmente maior que  o corpo,  a menina havia  sido operada de hidrocefalia em Belém.  Os pais, sentados  na varanda da  Funai,  esperavam algum tipo de providência, pois  não  sabiam se a criança havia tido alta ou não.  O pai, indignado, aproveitou a presença da comitiva para desabafar sobre os abusos da  Funai,  a total  falta de  assistência,   o  descaso proposital; denunciou que  o  administrador passa mais tempo viajando do que  na  sede. Nega-se terminantemente a deixar a mulher  e a filha serem levadas para a Casa do  Índio, porque lá se passa fome.   Por  sua  vez,  a mulher reclamou de ter sido abandonada pela Funai,  que  a  mandou  para  Belém  sem acompanhante; voltou, procurou  funcionários da Funai, ninguém atendia o telefone,  ficou na rua; chovia muito;  uma  noite  teve que fugir de bandidos que a perseguiram,  acabou se acomodando num bairro. da periferia,  o Treze, até a vinda do marido que  ficara  na maloca.  A comitiva  levou-os  ao hospital Coronel Mota,  do  estado,   para  tentar averiguar  a  condição  da  criança.     Não chegamos  a  saber o  resultado,  devido  à demora do diretor do  hospital  em procurar essa informação e ao compromisso da comitiva para voltar a Manaus logo depois do almoço. Numa caricatura de nossas piores previsões, soubemos, duas semanas mais tarde,  que  tão logo a comitiva se retirou, Rita arrancou  o casal  do hospital,  com a  conivência  do diretor,  levou-os  de  volta  à  Funai   e deixou-os  lá até  à noite.    Sem  outra alternativa, o marido chamou um táxi e levou a  família para  a Casa  do  Índio.    Até domingo, 24 de junho, a mulher e  a  filha agonizante ainda estavam lá, alimentadas com mingau e bolacha.

 

De minha parte, fiquei em Boa Vista mais  um dia para coletar informações sobre a  região do rio Auaris, onde opera a MEVA.    Viajei para Manaus na noite de terça-feira, dia 13. A bordo, um homem jovem, mulato  e  humilde, posando ostensivamente  de  homossexual   e louco, distraiu os  demais  passageiros  com discursos inflamados  que  começaram com a greve dos  funcionários  e  enveredaram por assassinatos  nos  garimpos.    No  fim  da viagem, arrancou de  alguém na  platéia  o comentário antológico: "o que faz o ouro!".

Brasília, 25 de junho de 1989

Alcida Rita Ramos

Representante da ABA na Comitiva da Ação pela Cidadania 

FOLHA DE S. PAULO

 A  4 - POLÍTICA  Terça-feira, 18 de Julho de 1989

Ação quer tirar garimpo de território indígena

O Ministério Público Federal Ingressou ontem na Justiça com uma ação contra a União, reclamando a interdição das pistas de pouso existentes na área dos índios Yanomami e a expulsão dos garimpeiros que invadiram a reserva. Segundo o procurador Oswaldo José Barbosa Silva, o território dos Yanomami, em Roraima e no Amazonas, abriga entre 60 e 70 pistas de pouso e cerca de 50 mil garimpeiros.

A ação entrou ontem na Justiça Federai de Brasília e foi distribuída à 9ª Vara. O juiz de plantio Luciano Tolentino Amaral vai analisar o pedido de liminar que acompanha a ação. Se concedida a liminar, a Aeronáutica será obrigado a interditar as pistas. Na opinião de Barbosa Silva, só isso bastaria para provocar a saída dos garimpeiros. que se abastecem de viveres levados por avião. As pistas, em sua maioria, são clandestinas, mas algumas foram construídas pela Funai ou pelo Projeto Calha Norte, segundo Silva.

Barbosa Silva disse que os garimpeiros, além de desmatarem a área e contaminarem os rios com mercúrio, levam doenças e hábitos nocivos para os 20 mil índios da reserva.



Coordenação Editorial: Alcida Rita Ramos, Bruce Albert, Jô Cardoso de Oliveira


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