BOLETIM URIHI Nº 11
SÃO PAULO, DEZEMBRO DE 1989
EDITADO PELA COMISSÃO PELA CRIAÇÃO
DO PARQUE YANOMAMI (CCPY)
RUA MANOEL DE NÓBREGA 111 3º CJ.32
04001 SÃO PAULO SP
COLABORADORES DESTE NÚMERO
CAPA: CIÇA FITTIPALDI
PLANEJAMENTO EDITORIAL E GRÁFICO: CLAUDIA ANDUJAR
TEXTO: ROMEO GRAZIANO
MINERAÇAO: O ESBULHO DAS TERRAS YANOMAMI
(HISTÓRICO DAS INVASÕES: 1975-1989)
ÍNDICE
Capitulo
1.
Mineração: o esbulho das terras Yanomami. (Histórico das
invasões: 1975 –1989)
2.
Serra de Surucucus (Bacia do Rio Parima )
3.
A Tomada de Surucucus
4.
O Furo de Santa Rosa (Região do Rio Ericó)
5.
Garimpo no Apiaú
6.
Serra Conto de Magalhães (Paapiú)
7.
Morte e Ouro no Novo Eldorado
8.
Início da "Legalização" dos Garimpos em Roraima
Se a década de 70 fez surgir as primeiras pesquisas que revelaram
o potencial geoeconômico do então Território de Roraima a
região de maior concentração indígena do País -, a década
de 80, principalmente a partir do ano de 1987, representa
a largada à invasão maciça de suas terras por hordas de garimpeiros
procedentes de todas as partes, bem como a implantação de
uma estrutura exploradora empresarial, mantida por grupos
econômicos de variados portes. Reconhecido o descontrole sobre.
a entrada dos invasores (mais de 40 mil homens), que na verdade
serviram aos interesses dos setores eufóricos com o novo Eldorado,
e considerando-se a atual proposta de retalhação do território
Yanomami para facilitar esse avanço, é inegável que a próxima
década mudará radicalmente o curso da história desse povo,
vítima direta do esbulho que hoje atinge considerável parcela
dos recursos naturais brasileiros.
SERRA DE SURUCUCUS ( BACIA DO RIO PARIMA)
Em 1975, os levantamentos aerofotogramétricos
realizados pelo Projeto Radam-Brasil, evidenciaram a descoberta
de importantes depósitos minerais em áreas povoadas pelos
Yanomami, especialmente a oeste do meridiano 62 OO'W. Novos
projetos de levantamento, levados adiante pelo convênio firmado
entre o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e
a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), confirmaram
as perspectivas de descoberta de minerais de importante emprego
na indústria -estanho, cobre, níquel, zinco, prata, além dos
comprovados depósitos de ouro e diamante, e materiais radioativos.
O anúncio da existência de depósitos de cassiterita na Serra
de Surucucus, o coração do território tradicional e de posse
imemorial dos Yanomami, atraiu centenas de garimpeiros à região,
apesar da ilegalidade do garimpo em terras indígenas. Logo
a seguir, instalou-se na área a Companhia de Mineração Além
Equador.
Os garimpeiros construíram duas pistas
próximas às ocorrências de cassiterita, utilizando-se da pista
grande - cerca de 900 metros, construída pelo então major
Camarão, em 1963, para servir à "Operação parima"
-, a fim de transportar o minério em aviões maiores até Boa
Vista.
Segundo o "Relatório sobre a Ocupação
do Garimpo de Surucucus, de 14 a 20 de fevereiro de 1985"
(elaborado pela Associação dos Faiscadores e Garimpeiros do
Território Federal de RR), no auge dessa fase de garimpagem,
em 1976, produzia-se até 400 toneladas/mês de cassiterita,
e mesmo "30 dias após a expulsão dos garimpeiros os aviões
ainda retiravam sacos de minérios amontoados nas laterais
das pistas". Só isso bastava para Surucucus transformar-se
em sonho e bandeira de muitos garimpeiros que, anos depois,
voltariam à região determinados a reaver seus "direitos"
de exploração do minério.
Essa ocupação não demorou muito para gerar
uma série de conflitos interétnicos. Em meados de 76, a região
concentrava 500 garimpeiros, cujo contato descontrolado provocou
doenças venéreas, tuberculose, surtos de gripe e mortes nas
comunidades Yanomami de Surucucus. Data dessa época a introdução
de doenças venéreas entre os índios da comunidade Tépèxinahiopètheri.
Os invasores, sem alimentos e outras provisões, ameaçam invadir
as roças Yanomami, tendo início roubos e assaltos à mão armada
que deixam feridos de ambos os lados, a ponto de um índio
e dois garimpeiros serem internados, em estado grave, no hospital
de Boa Vista.
As consequências dessa invasão levaram
o Ministro do Interior, Range1 Reis, a assinar a portaria
422 (02.09.76), fechando o garimpo na área e determinando
a retirada dos garimpeiros.
É importante salientar que, enquanto as
descobertas do Radam excitavam o imaginário do "milagre
brasileiro", naquele mesmo ano, exatamente no dia 27
de junho de 1975, era assinado o Acordo Nuclear Brasil-Alemanha.
O jornal "New York Times", em matéria sugestiva
sobre a disputa entre poderosos grupos estrangeiros pelas
riquezas brasileiras, aproveitou a ocasião para denunciar
a existência de um acordo secreto, entre o Brasil e a República
Federal Alemã, envolvendo reservas de urânio. Essa denúncia
nunca foi desmentida pelo nosso governo.
Em troca das oito usinas estabelecidas
no Acordo Nuclear, a Alemanha receberia o urânio da Serra
de Surucucus. (Ver artigo "Minérios, índios e (In)Dependência",
de Dalmo de Abreu Dallari, publicado na Folha de S.Paulo em
14.9.84 e transcrito em "A Questão da Mineração em Terra
Indígena", cadernos da Comissão Pró-índio/SP nº 4.)
O Projeto Radam também forneceu argumentos
decisivos à criação de um Parque .Indígena. Ao enfocar que
29,4% daquelas terras são declaradas de proteção permanente
pelo Código Florestal e 40,12% são inaptas para projetos de
lavoura ou agropecuários, o Radam recomendou, para tais áreas,
a criação de Parques Nacionais e Estações Ecológicas. A fertilidade
do solo em território Yanomami foi assim descrita: a) área
de capacidade natural baixa: 11,53%; b) área de capacidade
natural muito baixa: 37,04%; c) área de capacidade natural
não significante: 11,29%; área de proteção permanente: 40,12%.
Em março de 1979, a Rio Doce Geologia e
Mineração (DOCEGEO), subsidiária da Cia Vale do Rio Doce (CVRD),
instala-se em área autorizada pela Funai a funcionar como
empresa de mineração, ao mesmo tempo em que a Funai dá andamento
aos estudos para a transformação da região em Parque Indígena.
Mas a CVRD, tão logo inicia os trabalhos preliminares de prospecção
geológica sob a assistência e orientação de técnicos da Funai,
se dá conta das "incoveniências e incompatibilidade da
presença de elementos estranhos entre os indígenas" (carta
enviada pela CVRD ao DNPM, em 28.02.80).
Levados pela fome decorrente da escassez
de caça e pesca e do abandono da lavoura de subsistência após
a presença dos garimpeiros, os índios invadiram as barracas
da equipe de pesquisa à procura de alimentos. Obviamente,
as incoveniências percebidas na presença de uma equipe reduzida
e orientada por técnicos indigenistas ganhariam outra dimensão
com a entrada na área de um contingente muito maior de homens,
da sua maquinaria pesada, além dos perigos inevitáveis do
contato com o branco. Além dos riscos à integridade física,
cultural e social dos Yanomami, havia dois pontos preponderantes:
a) o fato de o País possuir outras áreas
produtoras e em desenvolvimento na Amazônia e na região Centro-Oeste,
com capacidade de atendimento, suficiente e a longo prazo,
das necessidades internas de cassiterita, inclusive gerando
excedentes exportáveis;
b) As dificuldades de acesso àquela região,
possível apenas por via aérea, encareceriam demais os custos
de pesquisa, extração e comercialização do minério, colocando
a produção em desvantagem de concorrência com a produção das
outras partes em atividade ou em vias de ativação. (P/EXT-116/8º
de 28.2.80, da CVRD ao diretor do DNPM) Preocupada com a validade
de uma exploração mineral mal sucedida, a CVRD decide suspender
os trabalhos de pesquisa. E o seu Conselho de Administração
acolhe proposta da Diretoria da Empresa para apresentar ao
DNPM a sugestão de que esse Departamento promovesse estudos
com o objetivo de transformar os depósitos de cassiterita
do Território Federal de Roraima em Reserva Nacional, conforme
prevê o Código de Mineração. (P/EXT-116/80). '
Entretanto, o DNPM recusa os argumentos
e a experiência da CVRD e de outros, e solicita à CVRD a renúncia
aos títulos de autorização de pesquisa para a região ficar
livre para novos requerimentos. E a CVRD se vê obrigada a
ceder à CODESAIMA (Cia de Desenvolvimento de Roraima) boa
parte da área proposta para a reserva mineral.
A idéia de uma reserva mineral estratégica
em território indígena foi bem recebida pelo Ministro do Interior,
Mário Andreazza, que se manifestou favorável à sua aprovação
no programa "Viagem ao último país dos índios",
levado ao ar pela TV Globo em 5.8.80. Igual posição manteve
o presidente da Funai, col. Nobre da Veiga, enfatizando que
"no momento em que as reservas (de minérios em áreas
não indígenas) se esgotam, então poderemos conceder a exploração
dos minérios das terras indígenas". (O Estado de SP de
8.8.80 e Jornal do Brasil de 8.8.80)
Mas a reserva de cassiterita do Surucucus
concentrava o interesse de diversos grupos econômicos, como
a CODESAIMA, a Mineradora Montes Roraima Ltda ou a CPRM, mesmo
porque poderia significar o acesso às outras riquezas da região.
Em 9.3.82, o Ministério do Interior baixa
a Portaria GM/025 interditando a área indígena Yanomami com
cerca de 7 milhões e 700 mil hectares; a medida reconhece
os direitos desse povo à terra e aos seus recursos naturais.
Dois anos depois, a Funai delimitará o território administrativamente
e denominará toda a área como Parque Indígena Yanomami. O
processo será encaminhado ao Grupo Interministerial em 8.1.85,
pela Portaria nº 1.817, que proibirá "o ingresso, trânsito
ou permanência no aludido Parque de pessoas ou grupo não-índios,
salvo quando autorizados pela Funai e desde que a atividade
não seja julgada nociva ou incoveniente ao processo de assistência
aos índios".
A interdição da área indígena vem acompanhada
do anúncio da criação de uma ajudância especial, com a instalação
de infra-estrutura para se construir 11 postos de vigilância
em áreas estratégicas, numa tentativa de impedir a entrada
de estranhos à área. Mas, como se comprovará posteriormente,
é apenas uma garantia provisória, sujeita a suspensão a qualquer
momento, que cumpre a função de acalmar as pressões para a
criação do Parque Yanomami. A partir de 80, a própria Funai
passa a deixar clara a sua posição contrária ao Parque nos
moldes professados pela CCPY e demais organismos de apoio
à questão Yanomami.
Em 24.10.83, a CODESAIMA obtém concessão
do DNPM para pesquisa e lavra de cassiterita na Bacia do rio
Parima (Serra de Surucucus) , onde pretende empregar mão-de-obra
Yanomami, numa área em que os índios mal travaram contato
com a sociedade envolvente. A solicitação foi feita a partir
do Processo DNPM 881.048/83, para o período de novembro de
83 a dezembro de 84, sujeito a prorrogação. A CODESAIMA e
a Funai, através de convênio, desenvolveriam uma ação conjunta
naquela Bacia, localizada no município de Alto Alegre.
O "Plano de aproveitamento Econômico
da Jazida Estanífera de Surucucus" , elaborado pela CODESAIMA,
alinha-se com a "orientação do Governo local no sentido
de buscar soluções que integrem os índios nesse processo de
desenvolvimento. A Companhia propõe-se a fomentar o desenvolvimento
de Roraima, defendendo que "somente com a atividade mineira
pode-se superar a crise econômica da região", e a levar
os benefícios da exploração mecanizada da cassiterita de Surucucus
à população indígena -"ociosa e marginalizada no processo.
de desenvolvimento regional" -,
pela arrecadação de royalties de 5% do volume bruto
de produção.
Antevendo as consequências dessa ação,
a CCPY solicita ao DNPM que reconsidere e anule essa concessão.
Baseada nas recomendações e justificativas feitas pela CVRD,
a CCPY insiste para que o DNPM tome as providências no sentido
de sustar todos os títulos de autorização não só naquela área
mas também em outras em que a exploração mineral poderá causar
danos irreversíveis à população Yanomami.
No mesmo mês em que a CODESAIMA e a Funa1
firmam o referido convênio, exatamente no dia 10.11.83, o
presidente Figueiredo e os Ministros César Cals (Minas e Energia)
e Mário Andreazza (do Interior) assinam o polêmico Decreto
nº 88.985, que trata da abertura das áreas indígenas à mineração
mecanizada. A medida causa grande mobilização de entidades
civis e pelo movimento indígena, e funciona como um ensaio
para os grupos econômicos interessados na questão, mais tarde
assegurada pelos trabalhos da Constituinte nacional como um
duro golpe (senão o maior) para os defensores da causa indígena
no País.
Ainda em 83, o deputado roraimense Mozarildo
Cavalcanti surge com o Projeto de Lei nº 1.179, que autoriza
a abertura e exploração do garimpo de cassiterita de Surucucus
nos moldes do convênio estabelecido entre a CODESAIMA (como
representante do governo do Território) e a Funai. O deputado
argumenta que Roraima passa por uma das mais sérias crises
de sua já debilitada economia, com a agricultura, a pecuária
e a indústria madeireira em declínio, discurso esse típico
da classe dominante roraimense.
A
Cláusula 7 do Projeto Surucucus reza que: "A CODESAIMA
e a Funai farão funcionar, no posto indígena Surucucus, um
centro de treinamento destinado à preparação de mão-de-obra
indígena". À Funai caberia uma participação de 5% no
resultado bruto da lavra, revertidos em benefícios para os
indígenas, a título de indenização do solo, de acordo com
o previsto por lei. Entretanto, muito fora do esperado, já
que serviria apenas para compensar os estragos causados pela
atividade mineradora.
Cavalcanti tem seu projeto brecado diante
dos pareceres contrários de respeitados juristas, antropólogos
e políticos, mas retorna, em 1984, com um Substitutivo ao
Projeto de Lei, que prevê a exploração através de processos
semi-mecanizados. Surpreende que, em nenhum momento, o Projeto
ou seu Substitutivo consideram que os Yanomami ainda são uma
população isolada.
A TOMADA DE SURUCUCUS
Desde fins de 1984, o piloto e empresário
do garimpo José Altino Machado articulava-se para reconquistar
a área de Surucucus. Com um passado ligado à Amazônia (como
empreiteiro de obras, piloto, dono de táxi-aéreo e de garimpos),
Altino Machado atuou em Serra pelada e liderou a formação
de uma ponte aérea entre a Serra e Marabá. Em Manaus, empenhou-se
na descoberta de novas áreas de garimpagem e no transporte
aéreo de apoio. Sua larga experiência em atividades ligadas
ao garimpo e o espírito aventureiro conferiram-lhe um poder
pare liderar grupos e idealizar planos como o dê tomada de
Surucucus.
Alegando conhecer a iniciativa da entrega
do garimpo de Surucucus a três empresas de mineração, uma
das quais, afirmava Altino com forte participação estrangeira,
o autoproclamado líder dos garimpeiros começou a contatar
a classe garimpeira de Roraima para idealizar a ocupação "pacífica"
da área. Vale dizer que, segundo levantamento do CEDI/CONAGE
em 1986, n região de Surucucus havia requerimento par lavra
e pesquisa registrado no DNPM pela seguintes empresas: Cia
de Mineração Participação, Paranapanema, Brumadinho CODESAIMA
e CPRM na Serra Couto d Magalhães, da Montes de Roraima e
Cia de Mineraçao e Participação. A estratégia de Altino Machado
era chamar atenção das autoridades e pleitear, em nome da
classe, uma solução legal e definitiva para a exploração de
Surucucus. Assim, ele visitou as Forças Armadas, o Ministro
da
Justiça,
o governador do Território, o Delegado da Funai e o Delegado
da Receita Federal em Boa Vista, procurando avaliar a posição
das autoridades frente à idéia que iria levar adiante.
Em
lº de fevereiro de 85, fundou-se a Associação dos Faiscadores
e Garimpeiros do Território Federal de RR, com 824 membros,
e no dia 12 foi eleita a Diretoria, com José Altino na Vice-presidência
da Associação. O momento também serviu para acertar os detalhes
da ocupação imediata de Surucucus.
No
dia 14, foi deflagrada a operação; o país entrava na folia
carnavalesca. A investida começou com a chegada de 5 aviões
no período de duas horas, trazendo 60 dos 3.000 garimpeiros
previstos para a tomada da Serra. Dos 60 homens embarcados
na fazenda da vereador a Lourdes Pinheiro, ex-presidente da
Câmara Municipal de Boa Vista, três portavam uniformes de
combate e armas automáticas e tinham treinamento em aviões
de combate para-militares (Porantim-Março/85). José Altino
liderava a operação com o apoio de um "alto comando"
em Brasília e de elementos do governo do Amazonas e do próprio
Território de Roraima. A CCPY aciona as instituições de apoio
para alertar o Ministério da Justiça, em Brasília, no sentido
de tomar as medidas cabíveis para conter os invasores. No
dia 19, a Funai retira-os da área, com o auxílio do governador
de Roraima e das Polícias Militar e Federal. José Altino é
preso em flagrante, mas enfrenta processo em liberdade. Em
suas declarações à imprensa local, o líder garante que no
próximo verão "os garimpeiros estarão lá em cima na Serra".
José
Altino declarou não ter sido preso por causa da invasão "mas
por perturbar a ordem pública", e que nos dias passados
na penitenciária Agrícola de Roraima ele pôde conhecer pessoas
do Território e conviver melhor com a realidade local. Obstinado,
Altino Machado assegurou que faria nova tentativa para reativar
o garimpo de Surucucus, não só por contar com cobertura política
mas também por pretender criar uma situação de conflito social
para o futuro governo.
As
suspeitas de envolvimento de políticos e empresários na investida
de Surucucus fez circular na imprensa nomes como o do ex-governador
do Território, brigadeiro Otomar de Souza Pinto, do então
deputado federal de Roraima e coronel João Batista Fagundes
e do empresário e diretor-presidente da mineradora Gold- mazon
Tomé Mestrinho, irmão do governador amazonense.
Ainda no ano de 1985, Altino Machado articulou
mais duas alternativas, sem sucesso, para garimpagem em Surucucus:
no dia 30 de março, com a realização do 1º Encontro das Classes
Trabalhadoras de Roraima - que convocou garimpeiros de Manaus,
Rondônia e Mato Grosso para reivindicar do governo federal
a abertura da área -, e em meados de junho, quando o empresário
apresentou à Funai um acordo que, em troca da entrada dos
garimpeiros, reverteria aos índios ganhos de cerca de Cr$
1 bilhão ao mês. A Funai recusou a proposta na época.
Em setembro de 85, o deputado Mozarildo
Cavalcanti solicita à CPI para apurar a ação de estrangeiros
em áreas indígenas e acusa a coordenadora da CCPY, Claúdia
Andujar, e o "italiano Zaccini" de defenderem interesses
obscuros quando tentam criar o Parque Yanomami. O Correio
Brasiliense, por sua vez, começa uma campanha para levar a
opinião pública a aceitar as invasões de garimpeiros ou a
instalação de mineradoras em Surucucus. Para isso lança mão
de deturpações, difamações e flagrantes falsificações de dados
quanto a funcionários da Funai, a entidades de apoio à causa
indígena e aos próprios índios. Em Boa Vista, corre o boato
de que Surucucus não é território originalmente indígena,
e que os Yanomami teriam sido levados para lá por americanos
interessados nas riquezas da região e pela Funai.
No mês de outubro, o Projeto de Lei 1.179/83
do deputado Mozarildo Cavalcanti é rejeitado, por 12
a 2, na Comissão do Índio da Câmara. Motivo: em vista da sua
omissão quanto à complexidade da situação envolvida, que convalida
as condições para um amplo genocídio em nome de um suposto
desenvolvimento econômico do Território de Roraima.
Uma semana antes da votação, a mobilização
das entidades contrárias à exploração de Surucucus é deslanchada.
Uma Comitiva de Deputados da Comissão do Índio visita a área
indígena do Surucucus, tendo a presença também de José Altino,
de Davi Yanomami, como intérprete legítimo de seu povo, e
de João Bosco Guerreiro, médico da CCPY, que se coloca de
prontidão em Boa Vista. Os índios da região manifestam-se
contrários à abertura do garimpo.
O
Instituto de Estudos Sócio-Econômicos (INESC), com base na
documentação fornecida pela CCPY, havia preparado farto material
para ser usado como subsidio pelo deputado Márcio Santilli,
relator do Projeto 1.179 perante a Comissão do Índio. Também
a Associação Brasileira de Antropologia (Setor Indígena) e
a Comissão Pró- Índio de são Paulo tiveram participação ativa
no lobby nacional.
Durante
a visita da Comissão a Boa Vista, o governador de RR, Getúlio
Cruz,. discursa sobre a questão indígena: "de um lado
nós temos que buscar a preservação dos legítimos interesses
dos índios, de outro não se pode negar à sociedade do Território,
que hoje atinge mais de 200 mil habitantes, o direito que
a sociedade tem. É uma questão que fica colocada nesses dois
pontos: de um lado o inalienável direito do índio, de outro,
o também inalienável direito que a sociedade de Roraima tem
de se autogerir."
"É
consenso", prossegue o governador, "mesmo entre
a sociedade do Território, que as propostas de áreas de reserva
indígena, da forma como estão propostas, no nosso entender
do governo do Território, significam uma tentativa de internacionalizar
parcelas da Amazônia."
Na
reunião parlamentar da Comissão de Minas e Energia, estiveram
presentes geólogos ligados a mineradoras (Paranapanema), o
presidente da Associação dos Garimpeiros de RR, José Altino
Machado, e também o INESC, a pedido da CCPY. A fim de contornar
as barreiras para a entrada em áreas indígenas, a Comissão
de Minas e Energia da Câmara Federal propôs uma reavaliação
do Código de Mineração e o estudo da legalização de reservas
de garimpos no país. Para tanto, é formada uma Comitiva de
Deputados da Comissão de Minas e Energia da Câmara Federal
para visitar várias áreas da Amazônia, inclusive a área Yanomami.
Essa Comitiva comparece a Surucucus três semanas após a visita
da Comissão do Índio. Novamente o INESC e a imprensa nacional
são acionados, colhendo-se resultados positivos. Os parlamentares
acabam por não acatar a proposta de José Altino Machado de
abrir Surucucus à garimpagem.
Altino Machado ainda tenta levar a questão Yanomami para a
Rede Globo sob seu ponto de vista, mas a CCPY apressa-se em
manter contato com a emissora e consegue um espaço para ela
e um Yanomami bilingue assessorarem a filmagem na área indígena.
Entretanto, a diretoria da poderosa emissora censura o filme
e retira os comentários políticos; salva-se a solicitação
para a criação do Parque Yanomami (o documentário de 1/2 hora
é levado a todo o país no horário nobre) .
O FURO DE SANTA ROSA (REGIÃO DO RIO ERICÓ)
Os
Yanomami da região do Alto Uraricoera - ou área do Ericó -
convivem com invasões de garimpeiros desde o início dos anos
60, que para lá levaram surtos ora amenos, ora mais virulentos.
A intensificação dessas invasões, no decorrer da década de
70, fez com que os garimpeiros invadissem o território da
Venezuela, criando grande tensão na fronteira, quase ao ponto
de deflagrar uma crise diplomática.
Os
recursos minerais do Ericó não eram ignorados pelos Yanomami,
que tiveram oportunidade de aprender as técnicas manuais de
extração de ouro dos igarapés, em épocas de menor afluxo de
garimpeiros em suas terras - eles tiravam o ouro necessário
para certas compras, tal como fazemos com nossas contas bancárias.
Em vários pontos dos rios da região, os índios extraem ouro
de maneira parecida à de sua organização no trabalho agrícola:
os garimpos são trabalhados conforme suas roças, isto é, como
atividade familiar, individualmente por família, numa produção
artesanal, exercida à vontade deles. "Essa forma de garimpar
é rara, senão mesmo única, e revela uma grande criatividade
dos Yanam (subgrupo cultural Yanomami da região dos rios Uraricaá
e Coimim) no processo de se ajustarem a novas condições de
vida traz idas de fora." (Ramos, 1984)
Com
a descoberta de ouro, em 1980, na parte sul de Ericó, em poucos
meses o garimpo de Santa Rosa reunia 5 mil homens, irradiando
doenças e desagregação para os Yanomami. Sem o auxílio da
missão evangélica que atuava na comunidade de Boas Novas até
o início de 70, e sem a Funai, que ali viria a instalar' um
posto somente em 1983, os Yanomami tiveram que tratar eles
mesmos das suas doenças, recorrendo aos garimpeiros (o próprio
foco) para comprar remédios, a peso de ouro, na farmácia do
garimpo.
O
DNPM autorizou e a CODESAIMA incentivou, nessa época, a invasão
de garimpeiros no chamado Furo de Santa Rosa, onde se abriu
um garimpo ao longo dos rios Uraricaá, Uraricoera e Coimim.
O garimpo apropria 20 mil hectares de terras na região- apesar
de parte dessa área encontrar-se dentro da que seria interditada
pela Portaria Ministerial GM/025 (março/82)-, que se situa
entre a área indígena e a estação ecológica da Ilha de Maracá.
Na
área indígena Uraricaá, situada dentro da Reserva Florestal
do parima, residiam 196 Yanomami (Funai, 6.4.80) em nove aldeias
ao longo do rio Uraricaá e seus afluentes, o Coimin e o rio
Surubai. Atraídos pelo garimpo de Santa Rosa, vários grupos
locais deslocaram-se em direção ao baixo rio Uraricaá.
Com
a invasão de milhares de garimpeiros em Boas Novas, no segundo
semestre de 80, houve um considerável aumento de malária na
região, registrando-se também alguns casos de morte. Notícias
sobre um surto de catapora também chegaram ao conhecimento
da CCPY. Em fins de 80, a Funai interdita a pista de Boas
Novas, mas isso não impede o acesso dos garimpeiros pelo rio
Uraricaá. A 109 DR solicita a Brasília a abertura de um posto
de controle em Boas Novas. Os garimpeiros não mais restringem
suas atividades até o limite da área indígena - o igarapé
Pacasibi.
Em
1983, Santa Rosa é invadida por 3.800 garimpeiros. Seu garimpo
continua ativo, apesar das solicitações por parte da Delegacia
Regional de Roraima ao Governador do Território para evacuar
os invasores. De olho na região de Surucucus, o deputado federal
João Batista Fagundes. (PDS-RR) e o diretor da CODESAIMA,
José Luiz Hertz, aproveitam para solicitar da Funai a reabertura
também daqueles garimpos. Porém a requisição é negada.
O
Batalhão de Fronteiras (BEF) coloca um destacamento militar
junto ao Posto de Vigilância da Funai, no rio Ericó. Mas no
primeiro semestre de 85 o destacamento sairia da área por
solicitação da Funai. Os invasores agora encontram a entrada
para a região sem policiamento ou controle da Funai.
O
Relatório de Saúde levantado em 83 (MDM/CCPY) demonstra a
situação encontrada no Posto de Vigilância do Ericó, consequência
do contato indiscriminado levado pelo garimpo à região. É
notável o crescimento da incidência da malária. O quadro clínico
é o seguinte:
- Problemas sérios de malária visceral
crônica, 27% dos examinados que apresentam sinais de hepato,
espleno ou hepatoesplenomegalia são crianças de 4 a 12 anos;
-
36% de anemia clínica, provavelmente
associados à alta incidência de malária e a parasitas intestinais.
Até início de 86, os invasores avançavam
pacasibi acima ,- aproximando-se perigosamente de malocas
indígenas e até do Posto da Funai em Ericó. O intenso movimento
de garimpeiros, mercadorias e máquinas pela pista de pouso
batizada de xicuti (uma homenagem ao primeiro cantineiro do
local), dentro da área indígena, demonstra que os garimpeiros
pretendem alastrar-se para outros trechos do território Yanomami,
onde há indícios de minérios, pra cima do rio Ericó, na Serra
de Uratanim.
O diretor do 8º Distrito do DNPM, José
Belfort dos Santos Bastos, afirma, em correspondência de 22.3.84
ao Dr. Manoel da Redenção e Silva (Diretor da DIPM/DNPM- Brasília)
a isenção do órgão sobre a condução do garimpo de Santa Rosa:
(...) "No Furo de Santa Rosa a garimpagem
se processa com o conhecimento da própria Funai. Em 26/10/82,
recebemos ordens para retirar todo o pessoal técnico do DNPM
daquela região, o que nos obrigou a assinar o Telex nº 0734/82
de 29/10/82, dirigido à Funai, colocando Santa Rosa sob sua
responsabilidade. Vale lembrar que o Furo de Santa Rosa só
se transformou em Reserva Indígena após haver sido descoberto
ouro. Antes era urna área fronteiriça à Reserva Yanomami,
sendo posteriormente inserida nesse espaço em consequência
de um ato da Funai.
Dessa forma afirmamos que não existe qualquer
responsabilidade do DNPM na condução daquele garimpo e somente
com urna mineração mecanizada será possível ocupar racionalmente
a área, se ainda existirem condições econômicas para suportar
os investimentos que advirão."
Em janeiro de 85, os próprios Yanomami
informam os membros da CCPY no Posto de Vigilância do Ericó
sobre a entrada de embarcação na área indígena, rumo à Serra
de Uratanim, ponto de garimpagem de diamantes.
Em 28 de fevereiro, o antropólogo Marco
Antônio Lazarin (CCPY e UFG) entrega ao delegado da Funai
em Boa Vista, Sebastião Amâncio da Costa (109 DR), um relatório
descrevendo a situação na área, solicitando urgentes providências.
Lazarin e uma equipe integrada por Alcida
Rita Ramos e Gale G. Gomez fizeram um trabalho de campo junto
aos Xiriana dos rios Ericó e Uraricaá, com o objetivo de avaliar
a presença e dispersão dos garimpeiros na área Yanomami. Tinha-se
a informação do Batalhão Especial de Fronteira (BEF), de 14.2,
dando conta de que "nada constava além de Santa Rosa",
concluindo pela não confirmação das informações anteriores.
Mas o que se pôde averiguar mostrou outra realidade.
Junto aos índios, soube-se que as atividades
dos garimpeiros já tinham alcançado um local chamado "Cabeça",
logo abaixo, do Igarapé Topi. Essa área, bastante conhecida
dos Xiriana, abrigara diversas famílias nas malocas dos rios
Ericó e Uraricaá até cerca de dois anos antes, quando, em
razão da presença constante de garimpeiros, foram transferidas
rio acima.
Observa o relatório: "No rio Ericó,
à esquerda de quem desce, pouco abaixo do Igarapé Topi, a
cerca de 4 horas e meia de canoa, encontra-se o porto do Garimpo
Cabeça. (...) Não
foi possível saber o número exato de barrancos e barracões
na extensa área em volta de um igarapé represado e desviado
em torno de grotas com mais de 5 metros de profundidade. Pode-se
afirmar, todavia, que cerca de 40 a 50 homens trabalham como meia-praça. Os direitos dos barrancos
teriam sido adquiridos algum tempo atrás, por 3 milhões de
cruzeiros, e o preço atual seria pelo menos 10 vezes maior.
Segundo os próprios donos desses serviços enfatizaram, eles
estão ali há 4 anos. Todavia, não há indícios concretos de
sua presença na área há tanto tempo.
Na "Pista" ou "xicuti",
à margem esquerda do rio Ericó e acima do Igarapé pacasibi,
observaram-se táxi- aéreos pousando diversas vezes ao dia,
transportando garimpeiros, maquinários e mercadorias, diretamente
aos donos de serviço ou às duas cantinas, restaurante e farmácia
ali instalados.
Pelos cálculos de um cantineiro, mais de
150 homens frequentavam aquela pista de pouso, todos garimpeiros
de grotas próximas, além de prostitutas. "Algumas dessas
grotas têm sido exploradas ultimamente por maquinário caríssimo,
ressaltando-se, entre outras, uma exploração que fica entre
o Cabeça e a Pista de Pouso. Seus proprietários possuem dois
conjuntos de maquinários (com uso de jatos d'água para desmonte
e lavagem de cascalho simultâneo) no valor de 40 milhões de
cruzeiros cada, trazidos de Rondônia. Como' o retorno do capital
investido ainda estava muito baixo, havia interesse de se
'visitar' o rio Ericó acima."
Outro cantineiro apontou a existência de
uma segunda pista de pouso, batizada de " Garimpinho
" , abaixo do Igarapé pacasibi; ao seu redor, flutuariam
cerca de 50 garimpeiros.
Lazarin observa: "Conclui-se que grande
parte da região conhecida por Santa Rosa penetrou a Area Indígena
Yanomami há já algum tempo, e que para ameaça das populações
indígenas do Ericó, Uraricaá e Surubai (a noroeste da área
indígena), não pretende permanecer onde está agora, espraiando-se
rio acima."
Levados pelo iminente esgotamento mineral
dos garimpos de Santa Rosa, os exploradores se deslocam para
pontos da área indígena ainda intocados.
O relatório tece algumas sugestões para
conter a entrada dos invasores na região: reforço da vigilância,
execução de expedições rotineiras com a participação dos xiriana
e a retirada dos garimpeiros situados acima do Igarapé pacasibi.
Mas as providências tomadas de nada adiantam.
No mês de dezembro, é desencadeada uma
operação de remoção dos garimpeiros da região de Santa Rosa,
bastante desastrosa por sinal. A iniciativa só fomenta ódio
e não dá o menor sinal de solução para o problema. A Polícia
Federal, com o apoio da FAB, decide "investigar"
a presença de garimpeiros em áreas indígenas.
Os acontecimentos relatados pela imprensa
local e nacional, nos dias 19 e 21 de dezembro, trazem apenas
a marca da intimidação e da violência. Os fatos:
Cerca de 150 homens, agrupados no Garimpo
de Santa Rosa, recebem, no dia 19.12, a ordem do comandante
da operação: "Vocês têm um prazo de três dias, a contar
desta data, para desocupar esta área; caso não obedeçam à
ordem, nós voltaremos aqui e limparemos tudo".
Aqueles mais precavidos apressaram-se.
a esconder mantimentos, materiais e equipamentos pesados para
escapar dos altos prejuízos. Os descrentes do retorno do comando,
entretanto, continuaram seu trabalho.
"No terceiro dia o grupo voltou ao
local mas não houve conversa. Um dos helicópteros pousou na
pista, seus ocupantes desceram e passaram a revistar todos
os barracões, recolhendo armas e quebrando as balanças para
pesar ouro, ameaçando a homens e mulheres da corrute1a. O
outro aparelho dirigiu-se para a localidade do Baixão do Cabeça,
onde se concentra a maioria dos garimpeiros da área. Depois
de sobrevoar a região, esperou o segundo helicóptero chegar,
começando então 'a operação'."
Os federais torturaram violentamente um
garimpeiro de 23 anos, natural de Teresina (PI), pois queriam
que ele revelasse onde estavam os barracões dos seus companheiros.
Espancado, mergulhado de cabeça num poço de lama, ele não
teve outra alternativa. "... foi obrigado a mostrar os
acampamentos..., que metralharam máquinas, mantimentos, tambores
de combustíveis e todos os utensílios utilizados pelos garimpeiros."
(Folha de Boa Vista de 22.12.85)
Os garimpeiros denunciaram os abusos promovidos
pela Polícia Federal e seguiu-se uma série de declarações
que nada esclarecem sobre a origem da tal operação: o delegado
da PF de Boa Vista, Danie1 Norberto, assegura que não foram
agentes locais os envolvidos; o secretário da Segurança Pública,
coronel Car10s A1berto Menna Barreto, e o diretor da Polícia
Givi1, Jacir Cruz (também pai do governador de RR), exigem
a retirada imediata dos agentes federais do local, pois "caso
contrário a Secretaria da Segurança ocuparia a área com contingentes
da PM para fazer valer a ordem" (Diário do Povo, 21.12);
o governador do Território, Getúlio Cruz, solicita a abertura
de inquérito e apuração dos acontecimentos, e contata, em
Brasí1ia, o Chefe da Casa Militar, general Bayma Denys, autoridades
do Conselho de Segurança Nacional e do Ministério da Justiça,
para descobrir o responsável pela missão mas não obtém resposta;
José Altino Machado, presidente da Associação dos Garimpeiros
da Amazônia Legal, ameaça processar os responsáveis pela operação.
Com o secretário Geral do Ministério da
Justiça, Getúlio Cruz alega ser inaceitável um procedimento
dessa natureza, pois tal operação "traria conturbações
sociais que inexistem em Roraima". Para o general Bayma
Denys, o governador manifesta-se surpreso, "uma vez que
aparentemente as coisas estavam tranquilas em Roraima, e que
um episódio desta natureza tumultua a sociedade que está vivendo
em paz". Aproveita também para esclarecer que não há
nenhum tipo de desencontro entre ambas 'as instituições, ou
seja, a do Governo do Território e a da polícia Federal que
ali atua, e reafirma a existência de um bom relacionamento.
Menna
Barreto (secretário da Segurança pública), desconfia ter havido
uma intenção de intrigar as populações locais. À Folha de
Boa Vista (12.1.86), o secretário afirma que o inquérito para
apurar as responsabilidades da invasão "depende da identificação
dos elementos da Polícia Federal que praticaram excessos contra
os garimpeiros, mas que se recusaram a se identificar quando
vieram falar comigo em Surucucus, local onde estavam acampados...
(...) há uma grande possibilidade de haver
envolvimento da PF local, que tem à frente o diretor da Divisão,
Daniel Norberto, bem como de outros órgãos federais. (...)
há envolvimento inclusive da FAB, através da identificação
dos helicópteros".
Além da inconsistência das informações
sobre a violenta operação promovida em Santa Rosa, nem a imprensa,
nem as autoridades do Território sequer mencionaram a região
como área indígena, muito menos o fato de que a garimpagem
por não índios é proibida nessas áreas.
Como a intervenção federal só gerou tumultos,
1985 encerra-se com forte lobby da CCPY, a nível ministerial
(Interior e Justiça), para que se consiga a remoção dos garimpeiros
das áreas do rio Uraricaá e Ericó.
No dia 16 de janeiro de 86, dois
membros da CCPY sobrevoam a área indígena interditada na região
do rio Ericó e constatam a presença de garimpeiros tanto no
Baixo do Cabeça como no local conhecido por Pista, e ainda
em vários pontos entre as duas localidades.
Segundo a 10º DR, ainda houve uma solicitação
da Funai à Polícia Federal de Roraima para se complementar
a operação de dezembro e retirar os garimpeiros da área interditada.
Porém a medida ficou só na intenção, favorecendo indiretamente
os interesses do Governo local de explorar as áreas de mineração
dentro ou fora do território indígena. Mesmo as pressões de
Getúlio Cruz, a nível federal, em razão da violência desencadeada,
criaram um clima desfavorável à continuação de qualquer medida
que surtisse uma solução em Santa Rosa ou na região do Apiaú.
GARlMPO NO APIAÚ
Desde
1980 a região compreendida entre os rios Ap
iaú
e Catrimani concentrava diversos garimpos clandestinos de
ouro. A Funai fora informada sobre as invasões e o funcionamento
do garimpo conhecido como Apiaú Velho através das denúncias
dos missionários do Catrimani e dos próprios índios, levadas
ao chefe do Posto PI Demini. O garimpo localizava-se em área
de índios semi-iso1ados (cerca de 300 indivíduos) e alguns
pequenos grupos locais sem qualquer contato. Entre os anos
de 1982 e 1984, foram encaminhadas inúmeras solicitações às
autoridades no sentido de evacuar o garimpo da região e criar-se
um posto de vigilância no rio Apiaú.
Em 1983, quando o número de invasores mal
chegava a 200 homens, a Funai e a Polícia Federal fizeram
uma tentativa de retirada dos garimpeiros, sem sucesso. Ainda
nesse ano, conflitos entre invasores e os Moxihatateme, grupo
Yanomami ainda arredio, causaram a morte de um garimpeiro.
A Funai foi notificada mas não foi possível apurar a ocorrência.
Em 1984, as consequências dessas invasões
para a saúde dos índios agravaram-se, e três Yanomami da comunidade
dos Apiauprautheri morreram de malária; uma das mulheres vitimadas
era mulher do Tuxaua Vital, cujo grupo, em 1977, perdera metade
de sua população devido a um surto de sarampo.
No mês de agosto, nova violência deixa
como saldo um índio baleado, o jovem Adriano Yanomami, da
comunidade dos Hewenahipi, no rio Jundiá. De acordo com o
relato feito pelo Bispo de Roraima e pelo Padre da Missão
Catrimani ao presidente da Funai, "os garimpeiros pediram
ao Yanomami Adriano Hewenahipitheri para acompanhá-los, como
caçador, na travessia da mata entre o garimpo do Apiaú até
o Mucajaí. No alto rio Mucajaí, o garimpeiro conhecido por
Negão roubou o ouro dos Yanomami, e, de noite, provavelmente
bêbado, atirou nas costas do índio. Logo em seguida fugiu".
Revoltados com a violência dos garimpeiros, os índios da área
tentaram organizar-se para vingar o parente.
Em setembro, a Funai em Brasília por fim
autoriza a criação de um Posto de Vigilância no rio Apiaú.
Mas ao mesmo tempo em que os servidores da Funai se deslocam
para a região, correm notícias sobre ondas de garimpeiros
que chegam de Rondônia e outros cantos do país cobiçando o
ouro do Apiaú. Visando evitar o estabelecimento de uma situação
irreversível, a CCPY (8.10) reinvidica do presidente da Funai
e de outros órgãos competentes a imediata evacuação dos invasores
da área.
Não vendo outra alternativa, um grupo de
Yanomami mais consciente de seus direitos toma a iniciativa,
em janeiro de 85, de exigir a imediata retirada dos transgressores.
Cerca de 50 guerreiros pintados de preto, armados com arcos
e flechas e algumas espingardas adquiridas dos próprios garimpeiros,
invadem os sítios de trabalho de dois garimpos situados entre
os rios Catrimani e Apiaú. Os índios procediam dos rios Catrimani,
Pacu, Anaualina e Mucajaí, e vinham sob a liderança de Davi
Kopenawa, um dos Yanomami que mais compreendem as trágicas
consequências da penetração desordenada das terras de seu
povo.
Os guerreiros queimaram barracas e roças
de um garimpo, quebraram as ferramentas dos invasores e enfrentaram
uns 40 homens armados em plena atividade de garimpagem num
segundo local, com "muitas casas iguais à da vila de
Mucajaí", roças, duas cantinas e bastante cachaça.
Após as primeiras horas de tensão, quando
alguns índios cobraram a morte de seus parentes, os Yanomami
decidiram não entrar em briga aberta com seus adversários,
preferindo explicar-lhes que eles estavam agindo contra a
lei garimpando dentro dos limites do Parque Indígena Yanomami,
exigindo assim a sua retirada imediata. Os garimpeiros responderam
que desconheciam ser ali uma área indígena. No outro dia,
os índios saíram da área, prometendo voltar com reforço de
homens caso os garimpeiros ainda permanecessem em suas terras.
Em 26 de fevereiro, um grupo de mais de
20 homens armados, acrescido das Polícias Militar e Federal,
dirigiu-se à área do Apiaú com o objetivo de expulsar os invasores.
Foi retirada uma centena de garimpeiros do garimpo do Apiaú
Velho; outros, contudo, permaneceram na região. A Funai instala
um Posto de Vigilância no rio Apiaú, nas imediações dos limites
do Parque Indígena, numa tentativa de controle da entrada
de não índios na área.
Acontece que a frustrada tentativa de tomada
da Serra de Surucucus, no dia 14 desse mesmo mês, definiu
uma nova tática de invasão. Agora são pequenos grupos de garimpeiros
que sobem os rios Apiaú, Mucajaí, Novo e Ericó para adentrar
as terras Yanomami. Eles vão a pé por diversos pontos afastados
do Posto de Vigilância, contornando qualquer tentativa de
bloqueio. Prosseguem as denúncias dos Yanomami, de chefes
de Postos da Funai, de missionários e da CCPY. No mês de julho,
de acordo com informações fornecidas pelos próprios garimpeiros,
cerca de 80 homens trabalham no novo sítio do Garimpo do Rio
Novo, afluente do Apiaú. A 109 Delegacia Regional da Funai
de Roraima tenta obter fundos e um helicóptero, através de
Brasília, para fazer a retirada dos invasores, mas não consegue.
Em fins de julho, a Funai é comunicada
da infiltração de cerca de 600 homens na área Yanomami, entre
os garimpos do Rio Novo e Apiaú, justamente de onde havia
retirado 180 garimpeiros em fevereiro passado. O contingente
que garimpava ilegalmente no Apiaú fora organizado por José
Altino Machado, e, apesar da presença da Polícia Militar,
os invasores continuavam a infiltrar-se na área, favorecidos
pelas dificuldades de acesso à região.
O
delegado da 10º DR da Funai faz o seguinte relato:
"Informamos
existir forte pressão por parte de grupos locais- Associação
Comercial, entidades de classe e por políticos junto ao Governo
do Território, para que seja conseguida a liberação de garimpos.
Esse fato tem provocado afluência de garimpeiros nesta capital
e, consequentemente, a invasão das áreas indígenas."
(Cf. 289 de 29.7.85) A situação atingiu tal ponto que os membros
da CCPY em Boa vista começam a temer pela sua segurança.
O carismático líder garimpeiro Altino Machado
é denunciado pela polícia Federal de Boa Vista por "prática
de incitação ao crime e que culminou com a invasão da área
indígena Yanomami, no garimpo do rio Novo, na região do rio
Apiaú". (Cf. nQs 474 a 476/85, DPF, 23.7.85)
Sem dúvida, o policiamento mantido no Posto
de Vigilância Apiaú não dá conta dos invasores. A presença
da Polícia Militar no Posto da Funai faz com que os garimpeiros
não mais levem seus mantimentos de barco - eles os recebem
por aeronaves de empresas de táxi-aéreo de Boa Vista, sendo
que os avisos dos lançamentos são feitos pela Rádio Nacional
de Boa Vista.
Como a Funai, em Boa Vista, nada conseguira
da FAB para conter os invasores ,. no caso um helicóptero,
a coordenadora da CCPY, acompanhada por um Yanomami representante
da União das Nações Indígenas (UNI), consegue pelo deputado
Márcio Santilli uma audiência no Ministério da Justiça para
expor a situação. É encaminhado um dossiê completo sobre as
invasões com extensa documentação. O ministro coloca uma assessora
à disposição para se averiguar a possibilidade de se dispor
de um helicóptero para remover os garimpeiros do Apiaú. Mas
a iniciativa não tem sucesso.
No mês de setembro, duplica o número de
invasores no garimpo do rio Novo, embora haja a presença permanente
de cinco agentes da PM no PV Apiaú.
No dia 8 de outubro, a Ccpy toma conhecimento
de uma operação para remover os invasores daquela área, prevista
para a segunda quinzena do mês, reunindo as Polícias Militar
e Federal, além da Funai.
Em 6 de dezembro, o presidente da Funai,
Apoena Meirelles, recebe um telegrama assinado em conjunto
por onze NGOs de diversos pontos do país, que lutam pela sobrevivência
e direitos humanos dos povos nativos do Brasil. Seu conteúdo
é o seguinte:
"Comunicamos grande preocupação abandono
total por parte autoridades área indígena Apiaú e Rio Novo,
partes integrantes território Yanomami interditado em 1982
Portaria GM/025, invadido por centenas garimpeiros conforme
109 DR Funai.
"Em 04.12.85, por ordem do Governador,
contingentes Polícia Militar inesperadamente retirados Posto
Vigilância Apiaú. Funai temendo massacre abandonou a região.
Situação muito crítica, região totalmente desprotegida, solicitamos
esta Fundação evitar genocídio índios Yanomami."
Em
9 de dezembro o presidente da Funai acusa o recebimento do
telegrama e comunica à CCPY o seu deslocamento para o Território
de RR. No dia 17, em outro telegrama, o presidente da Funai
informa à entidade sobre o contato feito com autoridades com
poder decisório na busca de uma solução para a breve retirada
dos garimpeiros. E nos dias 19 e 21 de dezembro acontece a
desastrosa operação de remoção no garimpo de Santa Rosa, na
região do rio Ericó, mais uma prova de força mal administrada
do que de real capacidade para se chegar a uma solução definitiva.
SERRA COUTO DE MAGALHÃES (PAAPIÚ)
O ano de 1987, particularmente na sua segunda
metade, figura como o ponto alto de todos os problemas gerados
na irrefreáve1 invasão das terras Yanomami por garimpeiros.
A retirada das missões que há anos prestavam auxílio aos indígenas,
a invasão maciça de suas áreas por levas de garimpeiros seduzidos
pelas notícias do novo Eldorado em que foi transformado o
Território de Roraima, a campanha inescrupulosa desencadeada
pelo jornal O Estado de S.paulo pela abertura das terras indígenas
às mineradoras ou o reconhecimento do próprio presidente da
Funai, Romero Jucá Filho, da liberação irregular de mais de
400 alvarás de pesquisa mineral em terras indígenas, tudo
isso deve ser levado em conta no entendimento dos fatos que
se sucederam a partir dessa nova fase.
De obra integrante do Projeto Calha Norte,
o campo de pouso do Paapiú acabou transformando-se em plataforma
e base de apoio para os garimpos abertos nas cercanias, enquanto
as autoridades federais renovavam suas promessas de conter
e expulsar os invasores. Assim, em apenas sete meses - de
agosto de 87 a março de 88-, a região de Couto de Magalhães
sofreu o assalto mais brutal e maciço até então conhecido,
com novas ondas de garimpeiros de toda espécie desembarcando
sob o olhar complacente da Funai e do governo do território.
Normalmente, chegam primeiro os garimpeiros humildes e miseráveis,
boa parte expulsa de sua região de origem por problemas de
sobrevivência, e que vê no garimpo uma chance de bater com
a sorte grande. Depois a notícia se alastra e é a vez dos
pequenos e médios empresários, negociantes de todo tipo, que
controlam e estruturam as atividades altamente rentosas dos
garimpos. Tráficos diversos, prostitutas e bebidas alcoólicas
compõem os negócios marginais rapidamente implantados. E as
doenças, a violência e o crime ficam à solta.
Em seu dossiê "Conflito e Morte no
Garimpo da Serra do Couto de Magalhães" (25.9.87), a
CCPY e o Instituto de Estudos Sócio-Econômicos (INESC) discorrem
sobre os acontecimentos que colaboraram para aumentar o conflito
entre Yanomami e invasores, com as terras indígenas altamente
cobiçadas pelas empresas de mineração, já que o período era
de elaboração da futura Carta Magna.
No dia 20 de agosto, o escritório da CCPY
recebe a ordem expedida pelo coronel Guadalupe (do serviço
de informação da Funai) para a suspensão das suas atividades
na área Yanomami. A CCPY conclui que a Funai havia negociado
a retirada dos garimpeiros com o Governo de Roraima, com a
simultânea retirada dos "estrangeiros", pessoas
incômodas aos políticos de Roraima.
A CCPY novamente é alvo de diversas calúnias,
como acusações de que seus membros garimpam, de insuflar os
Yanomami contra a Funai, de participar de um complô para criar
um país independente Yanomami com a esquerda venezuelana ou
de utilizar-se dos índios para apossar-se das riquezas de
suas terras. De fato, a CCPY não ignora essas riquezas, muito
menos que dois terços daquelas terras estão requeridos por
mineradoras como Best, Pompéia, Crasa, Aracati, Cia Mineração
e Participações, Mequimbrás, Vila do Príncipe, J.R.Scalabrin,
Peguina, Vale do são João, Montes de Roraima, Tratex, Codesaima,
Brumadinho, Mineral, parima, Curd, Mearim, Itacuá, Paranapanema,
Rio Vivenda, Brascan, CPRM, Mutum e Bozzano Simonsen (conforme
levantamento CEDI/CONAGE-1986).
Em face de tantos interesses nas áreas
Yanomami, argumenta a CCPY, é normal que entidades de defesa
dos direitos humanos das minorias étnicas e do "mundo
livre" sejam alvos de difamações com o objetivo de esmagá-las,
pois não surpreende que se invente o inimigo para aliviar
as tensões sociais. Por outro lado, a condução do capítulo
referente aos índios, na Constituição Nacional, não deixa
dúvidas sobre a existência de setores da política nacional
ligados às empresas privadas, com o objetivo de abrir as terras
indígenas à mineração através de emendas constitucionais.
Em maio (87), Davi Kopenawa Yanomami coloca ao presidente Sarney
sua preocupação com as crescentes invasões da área Yanomami,
reivindicando medidas efetivas para evitar o desaparecimento
de mais um povo indígena.
Como resposta, o presidente assegura que
órgãos do governo trabalham para levantar a situação real
e propor soluções para atuar de forma enérgica contra os invasores.
No mês de julho, o chefe de posto do PIN
Paapiú alerta a Administração Regional da Funai (ADR) de Boa
Vista da proximidade de garimpeiros do Posto Indígena e das
malocas Yanomami. A ADR comunica que não tem condições de
intervir em caso de uma invasão. A Polícia Federal proíbe
os lançamentos de gêneros alimentícios para os garimpos da
área Yanomami, mas o advogado da Associação dos Garimpeiros
consegue liminar contra a
proibição.
Entra agosto e o chefe de posto do PIN
Paapiú sai de férias. No dia 12 -no mesmo dia da entrega da
emenda popular da UNI e do CIMI ao Congresso Nacional -, surgem
os primeiros indícios de desacordo entre Yanomami e garimpeiros
na área do garimpo do Novo Cruzado; os índios exigem a retirada
dos invasores da área.
No dia 15 é deflagrado o conflito no garimpo,
distante duas horas a pé do PIN Paapiú. Resultado: quatro
Yanomami e um garimpeiro mortos.
A Folha de Boa Vista (28.8.87) publica
o testemunho de um funcionário da Polícia Civil, deslocado
para o local do incidente e que presenciou a autópsia nos
corpos dos índios: "a cena era das mais comoventes e
revoltosas, com os corpos dos coitados totalmente mutilados.
Tiros, facadas, pauladas e um verdadeiro retrato da perversidade
humana".
De
acordo com a versão mais plausível, os acontecimentos sucederam-se
da seguinte maneira:
Um grupo de índios Yanomami, da região
do Mucajaí, estava garimpando no Couto de Magalhães. Eles
se ausentaram para visitar seus parentes no Mucajaí, e quando
retornaram o acampamento dos índios estava ocupado pelos garimpeiros.
A partir de lá começou o atrito, os Yanomami exigindo de volta
o garimpo e os garimpeiros resistindo. No dia 15, os Yanomami,
armados somente com arco e flechas e duas espingardas, voltaram
no acampamento procurando resolver a questão, "sem serem
pintados de preto para a guerra" (depoimento de Davi
Yanomami). Os garimpeiros, armados com rifles e revólver,
atiraram nos Yanomami desprevenidos e três deles caíram mortos
no próprio acampamento. O quarto Yanomami atingido fugiu,
mas foi encontrado morto a pouca distância.
Segundo os Yanomami do Mucajaí, eles tentaram
conversar para convencer os garimpeiros a abandonar o local
quando esses reagiram, abrindo fogo contra os Yanomami. Os
Yanomami envolvidos no conflito eram três índios do PIN Paapiú
e um da área do rio Mucajaí. Os três Yanomami assassinados
no acampamento foram enterrados pelos garimpeiros. Conforme
os Yanomami, vários garimpeiros foram atingidos no mato, enquanto
esses tentavam fugir do local do conflito. A polícia encontrou
somente o corpo de um deles.
No dia seguinte ao conflito, o garimpeiro
baleado, Manuel Ribeiro de Jesus, removido do garimpo Novo
Cruzado para Boa Vista, e acompanhado pelo advogado dos garimpeiros,
solicita apuração de responsabilidade em atentado de que foi
vítima na manhã do dia 15 de agosto, a tiros. O garimpeiro
relata o falecimento de Avert Abreu de Souza, baleado e desaparecido,
e acusa Davi Yanomami de ter comandado o ataque. No entanto,
a acusação é falsa, pois Davi encontrava-se em Boa Vista.
Esse crime levou a uma operação militar
na área, envolvendo a Força Aérea Brasileira e o Batalhão
Especial de Fronteira do Exército, que, após 3 meses de trabalho
árduo na selva tropical, retirou ,mais de 500 garimpeiros.
A Polícia Federal faz nova tentativa para
suspender os lançamentos de alimentos na área Yanomami. Mas
em 19 de setembro o Juiz de Direito José Machado de Oliveira
restabelece a liminar anteriormente concedida e revogada,
permitindo assim que as empresas aéreas abasteçam os garimpos,
não se incluindo o transporte de novos garimpeiros para as
áreas indígenas. Alega-se "que aquelas pessoas estão
famintas e desprovidas de medicamentos, correndo risco de
morrerem de inanição". Apesar do sentimento "cristão
e de justiça" do juiz ao restabelecer a liminar, mais
uma vez desconsiderou-se um possível genocídio dos Yanomami
com a permanência de garimpeiros na área, nem o Estatuto do
Índio, que proíbe garimpagem por terceiros em território indígena.
Com os lançamentos de víveres assegurados,
os garimpeiros ameaçam não sair da área nem com ordem policial.
A Funai abre diálogo com o governador,
pede seu apoio e negocia. Na mesma noite, Getúlio Cruz declara
pela TV que o Governo de Roraima reconhece que o local do
conflito é área indígena:
"Como área indígena nós não podemos
permitir naquele lugar a permanência de garimpeiros já que
resultou na morte de índios e garimpeiros. Por outro lado,
nós também apoiamos a retirada de todos 'os estrangeiros,
quer sejam eles religiosos 'ou antropólogos da região. Eu
acho que chegou a hora de nós colocarmos um ponto final na
questão do Parque Yanomami. Mantermos o nosso exército, mantermos
certas áreas para garimpagem e retirarmos os estrangeiros
de nossas fronteiras. A fronteira brasileira é para ser ocupada
por brasileiros, nesse primeiro momento, brasileiros fardados."
Com a ordem de retirada da equipe da CCPY,
a Dra Ivone A. Menegola e o Dr. Marcos pellegrini, na área
de Surucucus (onde vivem cerca de 3.500 Yanomami isolados),
tomam conhecimento da suspensão das suas atividades na área
Yanomami. Os dois médicos se retiram, deixando atrás uma epidemia
de gripe que se alastra nas áreas de paapiú, Mucajaí e Surucucus,
com graves complicações pulmonares. O chefe de Posto, Francisco
Bezerra, avisa a ADR da urgência de se ter um médico em Surucucus,
mas a mesma não tem condições de substituir a equipe da CCPY.
O Dr. Marcos, médico da CCPY, adverte a
Funai sobre a gravidade da situação. Entre 12 e 22 de agosto,
os médicos constataram o princípio de um surto de gripe que
representou 41,6% dos atendimentos feitos; destes, 63% com
complicações pulmonares e otites.
No
dia 26 de agosto, a dra Gorete Selau e seu marido Ricardo
Verdum, assessor de campo, ambos da equipe de saúde da CCPY,
cumprem ordem da Funai e regressam da região do Mucajaí para
Boa Vista. Ambos contraíram malária. No seu relatório de viagem
(9.9.87), a dra Gorete anota:
"Nossa viagem ao Paapiú (região do
conflito) foi adiada a pedido do administrador da Funai, Sr.
Esmeraldino Neves,' que nos informou da existência de conflito
nessa região, gerado pela invasão dos garimpeiros. Em termos
de vigilância epidemiológica é a área prioritária no momento,
devido ao contato desordenado que vem sofrendo. Dados coletados
nos levam à hipótese de que a atual epidemia de gripe que
se alastra pelo Território Yanomami tenha como porta de entrada
o Paapiú (região do conflito), segundo o Sr. João Abel Cicconete,
chefe de posto, causando três óbitos, entre 15.6 e 15.7: o
Tuchaua do Boimopitheri, a filha de Xiapa do Heroutheri e
uma criança procedente do rio Mucajaí-MEVA- em visita aos
Waakysipiutheri. Na segunda quinzena de julho, atingiu o Mucajaí,
tendo sido registrados três óbitos nos Sikeimapiutheri: Tuchaua
João Mukareisi, Santana e Macaca. Em agosto há ocorrência
de gripe em Surucucus."
A malária nos garimpos de Cambalacho, Rio
Novo, Novo Cruzado e da Cabeça, todos em área Yanomami, é
calamitosa, e os índios que vivem próximos aos garimpos estão
diminuindo rapidamente em número. Há mortalidade infantil
de 28% na faixa de até 4 anos, e a anemia da população do
PIN Ericó, nas proximidades do garimpo Santa Rosa e Cabeça,
é de 90% em 1986 - informa o Relatório de Saúde da CCPY de
1987.
Ainda em agosto, também foram retirados
da área Yanomami os missionários da missão do Catrimani e
da missão do Mucajaí os missionários das Missões Evangélicas
da Amazônia (MEVA).
A Gazeta, de Boa vista, em sua edição de 21 de agosto publica
que os garimpeiros apelam para a solução aplicada no garimpo
Maria bonita, no Pará, onde os Kaiapó e garimpeiros convivem
"pacificamente", dizem estes; os índios recebendo
royalties por todo minério extraído do subsolo de suas terras.
O Correio Braziliense (25.9) noticia urna
nova operação militar para a retirada dos garimpeiros da área
Yanomami. A evacuação teria início a partir da nascente do
rio Catrimani, expandindo-se para os garimpos do rio Novo,
Apiaú e da Grota da Cabeça. O presidente da Funai aproveita
e anuncia ao jornal que será possível "devolver a tranquilidade
aos índios e evitar a depredação do meio ambiente".
A operação fracassou e apenas um helicóptero
operou durante dez dias. E com a retirada, em outubro, do
helicóptero conseguido pela Funai para efetuar a evacuação
dos garimpeiros (alegou-se pane no aparelho), foram escancaradas
as portas para o assalto à área e a situação ficou fora do
controle do pequeno dispositivo policial- militar federal.
Aliás, a pressão exercida pelo Exército para a tal operação
surtiu efeito contrário- atraiu ainda mais a atenção dos aventureiros
de todos os rincões.
Durante todo o mês de dezembro, é sugestivo
e tendencioso, como de hábito, o noticiário da imprensa roraimense,
verdadeiro termômetro do desca1abro da situação criada. Tribuna
de Roraima (4.12): mais de 4 mil homens garimpam na região
do paapiú. são aventureiros vindos de outras regiões do país,
apoiados por táxis aéreos clandestinos e portando armas de
grosso calibre (até uma metralhadora), que tentam dominar
a região a qualquer custo, inclusive assaltando, roubando
e matando garimpeiros.
Folha de Boa Vista (1.12): a malária ataca
os garimpeiros no meio da mata. Apenas em um final de semana,
60 garimpeiros (de um total de 300 doentes), foram removidos
para hospitais em Boa Vista. Os principais locais de ocorrência
são os garimpos de Cambalacho, Rio Novo, Cruzado Novo e Paapiú.
- O presidente da Associação dos Garimpeiros, José Peixoto,
mantém audiência com o governador do Território Federal de
RR, general Roberto K1ein, sugerindo-lhe que o governo pode
contribuir para melhorar as coisas se estabelecer uma agência
da Caixa Econômica Federal nos garimpos, para comprar o ouro
dos garimpeiros, a instalação de mercados e de uma delegacia
da Sucam para ajudar no combate à malária.
- Cerca de 5 mil homens trabalham na região
do rio Couto de Magalhães, inclusive no mesmo local em que
morreram, meses atrás, quatro índios e três garimpeiros.
- Somente na área do "Cruzado Novo",
oito homens trabalham dia e noite na cata de ouro, obtendo
uma média diária de 2,3 kg de ouro.
- O governo de Roraima em exercício, general Roberto Klein,
acompanha tudo com tranquilidade, pois para ele "é um
problema social, e não de polícia e repressão".
- Aponta-se o envolvimento de empresários
do ramo de vendas de motores e material de garimpo na pista
do rio Couto de Magalhães, garimpo do Novo Cruzado, que recebem
a colaboração de pilotos vindos de fora e que operam em pistas
da periferia de Boa Vista. A intenção é transportar máquinas
para a região com o objetivo de mecanizar a produção de ouro,
pois a lavra manual já chega ao fim.
- O diretor da Sucam informa sobre a alta
incidência de malária em. regiões do território que não apresentavam
nenhum caso.
- As autoridades de Brasília e de Boa Vista
consideram a presença maciça de garimpeiros na região do rio
Couto de Magalhães como um fato social de características
irreversíveis, sujeito entretanto a pequenos ajustes.
- Cerca de 700 homens se encontram em estado
desesperador nos garimpos de "Novo Cruzado" e Garimpo
dos Brados", devido a grandes surtos de malária, hepatite,
tétano e outras sequelas provocadas por acidentes de trabalho.
A Funai teme. que uma crise epidemiológica atinja as comunidades
indígenas.
- 80% dos garimpeiros de "Novo Cruzado"
e "Garimpo dos Brados" são colonos e agricultores
que, sem dinheiro para investir na roça, foram para o mato
arriscar a sorte. Mas também há vereadores, oficiais da polícia
e até prefeitos. Nos últimos meses, têm chegado à região 12
garimpeiros/dia, que se utilizam de qualquer meio de transporte:
ônibus, avião, balsas e até a pé.
- A Folha de Boa Vista comunica que a corrida não terá mais
fim até a legalidade e liberação total. A região é riquíssima
e já se calcula em 130 kg o total do ouro vendido por mês
em Boa Vista; ou 130 milhões de cruzados.
Em fins de dezembro, o presidente da Funai
e o governador do Território de RR anunciam, para "espanto
geral, que as áreas Yanomami serão reservadas para atividades
de garimpo, contrariando dispositivo constitucional e legislação
ordinária, bem como portaria da própria Funai que destina
aquelas áreas aos Yanomami.
MORTE E OURO NO NOVO ELDORADO
A situação pouco se altera no mês de 1988.
A Coordenadora da CCPY in: Folha de S.Paulo que numa maloca
mais ao norte do Paapiú (na área administrativa do PIN Surucucus),
dos 320 indivíduo foram acometidos de gripe, entre ele: complicações
pulmonares. Numa terceira maloca, as 12 mortes registradas
em 1986 subiram para 19 no primeiro semestre de 87. Com a
expulsão dos médicos da CCPY, as mortes deixaram de ser computadas.
A perspectiva de demarcação das terras
Yanomami, até fins de 88, bem como a definição das atividades
que ali serão incrementadas com recursos do Projeto Calha
Norte, oferecem alguma esperança para a solução dos conflitos
que se avolumam nas áreas indígenas. Contudo, os Decretos
de demarcação (Portaria Interministerial 160, de 13.09.88,
reformulada pela Nº 250, de 18.11.88), anunciados no fim de
88, são inconstitucionais e frontalmente contrários ao processo
de reprodução e sobrevivência dos Yanomami, pois criação do
chamado "arquipélago Yanomami": 19 áreas separadas
e distribuídas por duas florestas nacionais e um Parque Nacional.
Além se providenciará uma legislação que inclusive a exploração
mineral dentro florestas nacionais ("Proposta de regulamento
das Florestas Nacionais”, Memorial 107/88 IBDF/DE de julho
de 1988, encaminhado em 6.9 pelo Diretor do Departamento de
Economia Florestal ao Presidente do IBDF).
O empresário e garimpeiro Altino Machado
mantém contato com o ministro Bayma Denys, levando-lhe mapas
sobre as regiões auríferas, informações sobre o número de
homens trabalhando, etc. Referindo-se ao decreto do ex-ministro
Mário Andreazza, o líder garimpeiro garante à imprensa que
as áreas indígenas jamais serão contínuas como antes.
O ministro do Interior, João Alves, declara
para a revista Isto É (27.1) que o maior interessado no fim
do garimpo é o capital multinaciona1, por temer que a entrada
do produto brasileiro no mercado possa provocar uma queda
nos preços. Na matéria, a revista enfatiza que o Território
Federal de Roraima atrai uma das mais rápidas levas de migrantes
registradas na história recente da Amazônia. Em menos de seis
meses, 10 mil garimpeiros forçaram a entrada "de uma
região tão rica como controvertida". O diretor -geral
do DNPM declara para a reportagem que o território possui
praticamente todos os minerais econômicos do planeta, como
ouro, diamante e terras- raras - o que falta é apenas a infra-estrutura
adequada para viabi1izar a produção.
O presidente da Funai declara a O Estado
de S.Paulo (3.1.88) que "a área Yanomami é uma área síntese
do problema de demarcação em faixa de fronteira, e tornou-se
uma questão histórica pelos problemas internacionais que a
envolvem". Assim, foi nomeada uma comissão de 12 técnicos
para fazer o levantamento com vistas à demarcação.
Enquanto isso, Paapiú, a cerca de uma hora
e vinte minutos de vôo de Boa Vista, na radial 280, funciona
como suporte para as operações de garimpo. O DAC, que antes
computava 18 aviões baseados em Boa Vista, que realizavam
uma média de quatro a cinco decolagens por dia, vê esse número
saltar para 130 aeronaves, que elevam em mais de 10 vezes
a média do número de decolagens só no aeroporto de Boa Vista.
Há também grande número de pistas clandestinas, com estoques
de combustível vindo inclusive de outros Estados, patrocinadas
por políticos de Roraima. .
No mês de abril, o confronto entre índios
e garimpeiros no garimpo do Paapiú volta a ganhar destaque
na imprensa local: O jornal A Crítica de Roraima (20.4) anuncia
" Índios tomam ouro e armas de garimpeiros". A matéria
conta que quatro garimpeiros foram atacados por índios a caminho
do referido garimpo, distante sete dias de viagem de Boa Vista.
Segundo ela, nove índios teriam conquistado a simpatia dos
garimpeiros para depois atacarem os exploradores com pedaços
de pau.
No dia 29 de abril, a Tribuna de Roraima
noticia a morte de pelo menos dois garimpeiros e o desaparecimento
de outros quatro desde o dia 7, data do conflito entre índios
e garimpeiros na região da cabeceira do rio Mucajaí, a 200km
de Boa vista. A versão conta que um grupo de garimpeiros,
ignorando os avisos anteriores dos índios da região, incomodou
algumas índias que trabalhavam no roçado no meio da mata,
e foram surpreendidos pelos índios, que investiram contra
os intrusos.
A vingança dos garimpeiros veio no dia
seguinte. Atraídos por sons estranhos aos rumores da selva,
os garimpeiros teriam descoberto urna tocaia preparada pelos
índios (da tribo Urubu-Teré) e assim "caíram de pau"
(A Crítica, 30.4). oito Yanomami foram mortos.
Alarmada com a situação, a CCPY envia,
em Iº de maio, telegramas urgentes ao Presidente José Sarney
e ao Ministro da Justiça, Paulo Brossard, informando-os também
sobre as notícias de que outros 60 garimpeiros estariam rumando
em direção à área do Demini, dispostos a chacinar os Yanomami.
Os senadores Severo Gomes, Fernando Henrique Cardoso, Jarbas
Passarinho, Virgílio Távora, Mário Covas, Nelson Wedekin e
Luís Viana enviam carta ao presidente Sarney, solicitando
urgentíssima intervenção em defesa dos 9 mil Yanomami, vítimas
de sucessivas violências pelos invasores de suas terras.
Em 9 de maio, a CCPY recebe mensagem de
rádio do PIN Surucucus comunicando que índios haviam sofrido
ataque à mão armada dos garimpeiros. Um encontrava-se no Posto
Indígena em estado grave, ferido por bala à queima roupa no
braço direito; sua filha, que estava em seus braços, foi atingida
e morreu de imediato. A mensagem narra ainda que os índios
tiveram pés e mãos amarrados e foram muito maltratados até
perderem os sentidos. Um outro índio também foi baleado, atingido
na costela. Na tarde do dia 18, seria a vez do índio Yanomami
Júlio Góes, baleado por um garimpeiro conhecido por "paraná",
na cidade de são Gabriel da Cachoeira. Góes, tradicional líder
dos Yanomami, ficara conhecido por combater a permanência
de garimpeiros na região do Maturacá, habitada por 5 mil indígenas.
Numa discussão com paraná, Júlio Góes foi alvejado no braço
direito e na costela, pelo mesmo projétil, recebendo atendimento
médico em Manaus.
A escalada da violência, principalmente
em áreas de índios isolados, fez com que a CCPY, em 20 de
maio, enviasse telegrama ao Ministro da Justiça, Paulo Brossard,
e ao Secretário- Geral do Conselho de Defesa dos Direitos
da Pessoa Humana do Ministério da Justiça, José Fernando C.L.
Eichenberg. Solicitou-se urgente abertura de inquérito para
apurar a tentativa de homicídio sofrida por Júlio Góes e os
demais crimes desencadeados no coração da área Yanomami no
mês de abril. A CCPY reivindica abertura de inquérito imediato
e apuração rigorosa dos fatos.
O Correio Braziliense (24.5) noticia a
ida ao Ministério da Justiça de representante: de 27 tribos
de várias regiões do País, COI o objetivo de denunciar a violência
de que estão sendo alvo as comunidades indígenas.
A deterioração da situação dos Yanomami
não tem limites, levando a crer mesmo que foi estrategicamente
criada para preparar um assalto ainda maior às riquezas de
suas áreas, dessa vez pelas empresas de mineração. O governo
federal, com sua política de "preservação e valorização
da Amazônia", não tem interesse, por ora, em solucionar
as invasões garimpeiras, e faz vista grossa para as reservas
que saem ilegalmente do país. Na verdade, os fatos demonstram
a incoerência alimentada pelo gigantesco jogo de interesses
que agem em Roraima, da classe dominante local às empresas
privadas, passando pelas estruturas de órgãos (como a própria
Funai) e pela mentalidade militarista implantada nessas regiões
de "segurança nacional".
Falar de interdição, de reserva indígena
na área Yanomami, agora parece coisa do passado. As estatísticas
registram 4 mil quilos de ouro ao mês, e o brilho desse tipo
de sensacionalismo parece apagar o etnocídio e a devastação
ambiental levados para Roraima. O Projeto Calha Norte está
atrasado, embora prossiga intenso o esforço para militarizar
a administração das áreas. Alias, é do tal projeto que saem
60% do orçamento da Funai.
Importantes nomeações, no ano de 88, falam
por si da nova história que se prepara para o recém- criado
Estado de Roraima. Romero Jucá é indicado para o governo de
Roraima, pelo próprio general Rubens Bayma Denis, e o ex-presidente
do Grupo Executivo das Terras do Araguaia e Tocantins -GETAT,
Íris Pedro de Oliveira, passa à direção da Funai. O general
ainda indica Raimundo Nonato da Silva para o cargo de delegado
regional da Funai em Roraima, que já fora prefeito nomeado
do município de Jaru, tido como área de segurança nacional.
O novo governador de Roraima, e ex-presidente
da Funai, não se intimida em suas declarações: "Em todo
lugar onde o índio tentou barrar a locomotiva do progresso,
ele foi atropelado, massacrado e dizimado". Uma advertência?
Talvez. Outra sugestiva colocação:. "A força da necessidade
é sempre maior que a força da lei".
Em matéria de corrupção institucional,
o folclórico empresário e autoproclamado líder dos garimpeiros,
José Altino Machado, também não economizou a sua experiência:
"Em Serra Pelada, os agentes da polícia Federal, inicialmente,
eram trocados a cada 30 dias, depois passaram a ser substituídos
a cada vinte dias, dez dias e, finalmente, uma vez por semana.
Como a Amazõnia não é Volta Redonda e Urutu não anda sobre
árvores, vai
continuar tudo como está."
De fato, em setembro de 88, os agentes
do SNI, da polícia Federal e do serviço de espionagem do Exército
em Boa Vista comunicaram aos seus superiores a existência
de uma "caixinha" de garimpeiros destinada ao
comandante da polícia Militar, tenente-coronel césar Augusto
dos Santos Rosa, de 11,5 kg de ouro. Mas as
acusações de corrupção envolvendo autoridades do governo de
RR, da Funai, do Exército, e da Aeronáutica não
são novas nos relatórios formulados pelos referidos órgãos,
e tratam de autorizações de ingresso em áreas
interditadas, liberação de aviões em situação irregular, venda
de armas e munições ilegalmente e até mesmo o
envolvimento, direto ou indireto, de autoridades na garimpagem,
inclusive daquelas que deveriam impedir a
atividade na reserva indígena.
O próprio secretário de Segurança Pública
de Roraima, Pedro Coelho, é acusado de manter quatro balsas
de exploração de ouro no rio Urariquera. Nos relatórios de
serviços de informação, .Coelho é descrito como "cocainômano",
sendo que sua primeira medida, ao tomar posse como secretário,
foi a extinção da Delegacia de Entorpecentes.
No segundo semestre de 88, o empresariado
paulista se deixa contagiar pela febre do ouro no Norte do
país, e faz desembarcar no Parque Nacional do pico da Neblina
(interditado à exploração econômica desde 1979, por decreto
presidencial) conjuntos completos de garimpo. De .acordo com
informações passadas à Secretaria de Assessoramento da Defesa
Nacional, são eles: Rafael Hasson, da Metagal, e Azis Nader,
da Rakam. Sem arriscar-se tanto, o mega-investidor Nagi Nahas
entra no empreendimento associando-se a Goldamazon, empresa
já instalada na região, na qual aplica uma injeção de recursos
de US$ 1 milhão.
No
dia 14 de dezembro, o Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente),
baixa resolução proibindo a utilização de mercúrio na garimpagem.
É o chamado "azougue", largamente empregado nos
garimpos e de alto teor de contaminação, pois se instala facilmente
nas cadeias biológicas, de onde penetra no organismo humano.
Mas não se sabe quem cumprirá a determinação.
A fim de socorrer os Yanomami acossados,
os Estados Unidos pretendem juntar-se aos países europeus
numa ação conjunta, o que será exposto no relatório sobre
a situação dos direitos humanos no Brasil, a ser divulgado
em fevereiro de 89.
No "Relatório de Viagem de Avaliação
preliminar da situação Sanitária nas Áreas de Garimpo no Território
Yanomami em Roraima" (do período de 18 de agosto a 9
de setembro de 1988), a cargo do Dr. István Van Deursen Varga
e realizado a pedido da CCPY, constam muitas informações tanto
sobre a saúde dos índios e garimpeiros como sobre a invasão
perpretada no Território, apesar da inexistência de estatística
organizada:
- dados fornecidos pela Associação dos
Garimpeiros de Roraima avaliam em mais de 30 mil o número
de garimpeiros na área;
- a área do Pico Redondo é um dos pontos
de entrada na região do Surucucus, passando de 30 o número
de pistas de pouso construídas na área, e de 1.000 o número
de "clareiras" de lançamento e pouso de helicóptero.
- existem cerca de 100 pequenos aviões
no pátio do aeroporto de Boa Vista (e nas "fazendas de
manutenção" próximas à cidade), que operam no e para
o garimpo; espera-se grande leva de aparelhos e pilotos da
cidade de Itaituba, no Pará;
- os garimpeiros estão armados, sendo continuamente
munidos de armas e
munições, e não apenas com rifles de caça,
mas com armas automáticas e semi-automáticas; não há controle
de entrada de armas, álcool ou mulheres pela polícia militar
na pista do paapiú;
- o uso de mercúrio ("azougue")
é constante na fase de "limpeza" do ouro recém-
extraído, sendo mais intenso nos locais de garimpo "de
mergulho"; e tanto o azougue quanto a lama cinzenta,
chamada - de "lagresa", além da imensa quantidade
de barro produzido pelo trabalho dos jatos d'água, são lançados,
direta ou indiretamente, à correnteza dos rios;
- as doenças mais encontradas no garimpo
são: leishmaniose, malária (com inúmeros casos autóctones,
além dos "importados"), hepatite;
- há possivelmente uma epidemia de malária
instalando-se entre os Yanomami do Heroú, situação esta certamente
bastante próxima às de outras áreas, em que se registram (segundo
informações do funcionário da Funai no Paapiú) vários casos
de tuberculose, pneumonia e desnutrição;
- de modo geral, os garimpeiros não se
mostram muito preocupados com sua
prática de invasão de territórios Yanomami;
fazem questão de manter uma política de boa vizinhança com
os índios, fornecendo-lhes brindes diversos (arroz, feijão,
jabá, enlatados, medicamentos, pilhas, gravadores e rádios,
fitas cassette, roupas, ouro e, em casos excepcionais, até
espingardas de caça, com pouca munição); há um sentido de
promover a identificação do garimpo com um novo pólo aglutinador
dos Yanomami;
- está confirmado que, ao menos na região
do Paapiú, "lideranças" indígenas comprometidas
com a Funai estão promovendo o aliciamento de seus parentes
Yanomami para integrar turmas de garimpeiros, além de indicarem
jazidas auríferas até então desconhecidas.
INÍCIO DA “LEGALIZAÇÃO” DOS GARIMPOS EM RORAIMA
No início de março de 89, o governador
Romero Jucá anuncia que seu governo comandará o processo de
reorganização das áreas de garimpo (A Crítica, de Boa Vista,
de 12.3.89). A comissão criada pelo governo para estudar a
ordenação da questão garimpeira concluiu que a atividade é
viável, envolvendo já 66 mil pessoas. De acordo com as estatísticas
levantadas por essa comissão, baseadas em dados oficiais colhidos
da Receita Federal, a produção de ouro em Roraima é a seguinte:
1988- a sorna de 369 kg em novembro, 466 em dezembro; 1989-
758 kg em janeiro e 789 kg em fevereiro. Mas dados extra-oficiais
apontam urna produção bem maior, estimada entre 2.500 e 3
mil kg/mês em média.
Jucá esclarece que o relatório fornecido
pela comissão servirá de apoio à CODESAIMA, que trabalhará
pela "legalização" da atividade garimpe ira. Assim,
os garimpeiros passariam a atuar "legalmente" na
área, sob o controle da estatal de Roraima.
Em matéria publicada no dia 13 de maio
pelo Correio Braziliense, sob o título "Garimpeiro ilegal
será expulso", informa-se que o Exército e a Polícia
Federal planejam retirar os 50 mil garimpeiros que exploram
"ilegalmente" áreas minerais do país - ou seja,
sem recolher tributos e não organizados em empresa nacional.
Novamente não é feita qualquer referência à área tradicional
Yanomami, onde se dará a "legalização" desses garimpos,
e nem às consequências da atividade para a sobrevivência dos
índios. No mês anterior, o administrador local da Funai, Raimundo
Nonato da Silva, já declarara que considera justo o deslocamento
dos garimpeiros para as florestas nacionais, localizadas nos
corredores entre as 19 ilhas estabelecidas pela recente demarcação.
Em abril descobre-se a presença de cerca
de três mil garimpeiros brasileiros trabalhando às margens
do rio Orinoco e seus afluentes, no extremo sul da Venezuela.
A guarda Nacional venezuelana ocupou a área e deu um prazo
de 48 horas para os invasores se retirarem, agindo com rigidez.
A situação estabeleceu um clima diplomático de tensão entre
os dois países, com, o governo brasileiro concordando que
a Guarda Nacional retirasse "de qualquer jeito, matando
se fosse preciso" os garimpeiros que há um ano ocupavam
as nascentes do rio Orinoco, com o apoio de quatro empresas
brasileiras. Apesar da denúncia da comissão encarregada de
assuntos ecológicos do Congresso venezuelano, de que cerca
de 50 km das cabeceiras do rio Orinoco estavam totalmente
secos pela ação dos garimpeiros brasileiros, sem falar da
desconsideração sobre os direitos do povo Yanomami, o ocorrido
teve um desfecho tranquilo. A embaixada da Venezuela, em Brasília,
divulgou nota ressaltando que esses problemas de fronteira
não perturbaram "a harmonia e o excelente estado das
relações bilaterais que se tem alcançado nos últimos anos".
Entre 9 e 12 de junho, o movimento Ação pela Cidadania enviou
uma comitiva a Roraima, acompanhada por representantes do
Ministério da Justiça e da Procuradoria Geral da República.
Também integraram a missão um delegado da polícia Federal,
profissionais I da imprensa, parlamentares e representantes
de entidades que lutam pelos direitos indígenas, inclusive
da CCPY.
A Comitiva constatou pessoalmente a gravidade
da situação que atinge os Yanomami de Roraima, pelo contágio
descontrolado com os garimpeiros - invasores, bem como os
diversos tipos de violações que atingem as demais populações
indígenas. (Macuxi, Wapixana, Taurepang e Ingaricó) dos pontos
visitados. Verificou a falta de assistência médica, colheu
depoimentos dramáticos dos próprios índios, constatou a ausência
de policiamento nos garimpos, os conflitos de terra ou a precariedade
da atuação da Funai. No dia 27 de julho, o Grupo Parlamentar
e as entidades participantes da Ação pela Cidadania, reunidos
em Brasília para discutir o relatório da viagem a Roraima,
decidiram adotar uma série de medidas. Deputados e senadores
participantes do movimento comprometeram-se a interceder junto
aos ministros da Aeronáutica, do Interior e da Justiça, acompanhados
por representantes da OAB, CNBB, ABI e da SBPC; com a assessoria
da CCPY, seria proposto, através do grupo Parlamentar, um
convênio a nível de saúde entre a Funai e o Ministério da
Saúde, com a máxima urgência; o Ministério Público Federal,
através do Dr. Claudio Fontelles, secretário da Coordenação
da Defesa dos Direitos Individuais e Interesses Difusos desse
ministério, entraria em juízo para fazer valer a proibição
de pousos em pistas clandestinas e irregulares de Roraima,
feita anteriormente, entre outras medidas a serem executadas
pela sua Secretaria; entidades como o CIMI, CEDI e CCPY atuariam
na divulgação e mobilização junto às universidades, ao movimento
estudantil, sindicatos e meios intelectuais e artísticos,
procurando despertar a opinião pública em prol do cumprimento
dos preceitos legais que protegem os índios. Para isso, providenciaram
a edição e publicação do relatório de viagem ("Roraima:
o aviso da morte", 15 mil exemplares) e a edição de um
vídeo - instrumentos essenciais para a divulgação da atual
realidade que se impõe à sobrevivência dos Yanomami.