ANEXO
1
O
massacre dos Yanomami de Haximu
Bruce Albert
Para quem achou que 16 mortos reduziam a gravidade do caso; para quem
temeu que "apenas" 16 mortos esvaziavam a atenção
sobre ele, deixo este relato à guisa de reflexão.
A armadilha garimpeira
Na origem
do massacre de Haximu está uma situação crônica de conflito
interétnico criada na área Yanomami pela presença predatória
das atividades garimpeiras. Desde o início da grande corrida
do ouro em Roraima, em agosto de 1987, vários assassinatos
de índios ocorreram e outros poderão ocorrer novamente devido
às mesmas causas. Portanto, antes de mais nada, é preciso
tornar claro o contexto social e econômico capaz de gerar
tais violências.
Ao instalar-se
num novo sítio dentro da área Yanomami, os garimpeiros vêm
primeiro em pequenos grupos. Sendo poucos, sentem-se vulneráveis
perante a população indígena. Temendo uma reação negativa
dos índios, tentam comprar a sua anuência com farta distribuição
de bens e comida. Por sua vez, os índios têm pouca ou nenhuma
experiência com brancos e tomam essa atitude como uma demonstração
de generosidade que se espera de qualquer grupo que quer estabelecer
laços de alianças intercomunitárias. Enquanto se desenrola
esse mal-entendido cultural, os índios ainda não sentem o
impacto sanitário e ecológico das atividades de garimpo. Aos
seus olhos, o trabalho dos garimpeiros parece ainda algo enigmático
e irrelevante. Com ironia e condescendência, chamam-os de
"comedores de terra" ao compará-los a um bando de
queixadas fuçando na lama.
Num segundo
momento, o número de garimpeiros aumenta substancialmente
e já não é preciso manter aquela generosidade inicial. Os
índios passam de ameaça a estorvo com suas insistentes demandas
pelos bens que se acostumaram a receber. Os garimpeiros irritam-se
e tentam afastá-los dos garimpos com falsas promessas de presentes
futuros e com atitudes impacientes ou agressivas.
A essa
altura, os índios já começam a sentir uma rápida deterioração
em sua saúde e meios de subsistência. Os rios ficam poluídos,
a caça foge e muita gente morre em constantes epidemias de
malária, gripe, etc., desestruturando a vida econômica e social
das comunidades. Desse modo, os índios passam a ver os bens
e a comida que vem dos garimpeiros como uma compensação vital
e inquestionável pela destruição causada. Negada tal compensação,
cria-se no seu entender uma situação de hostilidade explícita.
Surge assim
um impasse: os índios se tornam dependentes dos garimpeiros
no exato momento em que estes se dispensam de comprar a boa
vontade indígena. Essa contradição está na raiz de todos os
conflitos envolvendo índios e garimpeiros na área Yanomami.
Com ela abre-se a possibilidade para que o menor incidente
degenere em conflito aberto. Como a disparidade de forças
entre garimpeiros e índios é enorme, a balança da violência
pende sempre contra os Yanomami. Esse tipo de situação mostra
claramente até que ponto a lógica da economia garimpeira repele
a participação dos índios e até a sua simples presença. Garimpeiros
que utilizam técnicas mecanizadas não têm qualquer interesse
nos índios, nem sequer como mão-de-obra. Na melhor das hipóteses,
são inconvenientes; na pior, são uma ameaça à sua segurança.
Se com brindes e promessas não conseguem afastá-los, então
a solução é intimidá-los ou exterminá-los.
Assassinatos no rio Orinoco
Em meados
de 1993, as relações entre os garimpeiros brasileiros do "rio
Taboca" (alto Orinoco, na Venezuela) e os Yanomami de
Haximu já haviam chegado a esse impasse. Eram cada vez mais
freqüentes as visitas dos índios aos garimpos em busca de
comida e objetos. Numa ocasião, dois donos de balsa prometeram
rede, roupa e munição a um jovem líder da comunidade. Mais
uma vez a promessa não foi cumprida e este foi tomar satisfações
no barracão de um desses empresários. Discutiu com um empregado
e acabou por afugentá-lo com um tiro de espingarda. Com o
barracão vazio, o índio e seus companheiros cortaram os punhos
das redes, jogaram lona e cobertores no mato e levaram rádio
e panelas. Depois deste incidente, os garimpeiros decidiram
matar os índios se estes voltassem a incomodá-los. Em atritos
anteriores, por medida de segurança, já haviam se reapossado
de uma espingarda que tinham dado aos índios.
A partir
do dia 15 de julho os fatos se precipitam. Um grupo de seis
rapazes de Haximu chega a um outro barracão na área para pedir
comida, bens de troca e, quem sabe, levar de volta a espingarda,
conforme recomendação de seus parentes mais velhos. Recebem
apenas alguma comida e um bilhete para ser entregue em outro
barracão rio acima, com a promessa de que lá eles obteriam
mais coisas.
No barracão
seguinte, encontram uma turma de garimpeiros jogando dominó.
São recebidos por uma cozinheira que lê o bilhete, joga-o
no fogo e bruscamente manda-os embora com mais alguns mantimentos
e roupa. O bilhete dizia: "Faça bom proveito desses otários".
Com esse sinal e estimulados por ela, os garimpeiros desse
barracão chegam a cogitar de matar os seis rapazes ali mesmo,
mas desistem temendo que outros índios estivessem escondidos
nas redondezas. Decidem então atacá-los já na trilha de volta
às malocas.
Depois
de caminhar menos de uma hora, os rapazes Yanomami param para
comer o que receberam nos barracões. Chegam então cinco ou
seis garimpeiros armados que os convidam para ir caçar anta
e visitar um outro barracão. Os índios estranham o convite,
primeiro recusam, mas acabam aceitando diante de tanta insistência.
Forma-se uma fila indiana tendo na frente um Yanomami seguido
de garimpeiros e índios alternadamente.
Um pouco
adiante, o último Yanomami sai da fila para defecar; passa
sua espingarda - a única dos rapazes - para outro Yanomami,
e se embrenha no mato dizendo aos outros para seguir adiante.
Mas os garimpeiros ficam parados. Bruscamente, um deles imobiliza
o braço do índio que segura a arma e atira à queima-roupa
em seu ventre com uma espingarda de dois canos serrados. Mais
três índios são a seguir fulminados pelos outros garimpeiros.
Um dos assassinos contará depois a um companheiro que um dos
rapazes se agachou com as mãos no rosto e, tentando escapar
da morte, suplicou: "garimpeiro amigo!". Foi sumariamente
executado com um tiro no rosto.
O Yanomami
que estava no mato, ao escutar os tiros, joga-se no rio Orinoco
ali perto e consegue fugir. O jovem de 18 anos que encabeçava
a fila também tenta escapar, mas vê-se encurralado entre três
garimpeiros que, dispostos em triângulo, se revezam em atirar
no rapaz como se fosse tiro ao alvo. Graças à sua agilidade
e ao emaranhado da mata naquele local, o rapaz consegue desviar-se
dos dois primeiros tiros, mas é ferido pelo terceiro. Enquanto
os garimpeiros recarregam as armas, ele escapa e se joga também
no rio Orinoco. Atordoado, tenta se esconder, ficando submerso
até o nariz. Dessa posição ele vê os garimpeiros enterrar
três dos mortos (a quarta vítima nunca chegou a aparecer;
mortalmente ferido, provavelmente caiu no rio e foi levado
pela correnteza). De repente, à procura de corpos, um garimpeiro
desce até o rio e o vê escondido; volta para buscar uma arma,
mas o jovem consegue finalmente fugir.
Enquanto
isso, o outro sobrevivente chega às malocas do Haximu com
a notícia dos assassinatos. Cerca de dois dias depois, volta
com um grupo de homens e mulheres ao local onde ficaram os
corpos de seus parentes. A meio caminho, encontram o adolescente
ferido que lhes relata o que viu, inclusive o local onde os
cadáveres foram enterrados (essa prática, aliás, é considerada
pelos Yanomami como uma profanação). Desenterram os três corpos,
procuram o quarto em vão, e levam os despojos para serem cremados
a cerca de uma hora e meia de caminhada, mata a dentro. Coletam
os ossos carbonizados necessários para oficiar os seus ritos
funerários e voltam para casa.
Nos dias
que se seguem, organizam a caçada ritual que precede a cerimônia
de preparação das cinzas mortuárias (os ossos são pulverizados
e guardados em cabaças lacradas com cera de abelha). Depois
da caçada (que dura de uma semana a dez dias), são convidadas
três aldeias aliadas: Homoxi, Makayu (maloca do Simão) e Toumahi.
Terminada a preparação das cinzas, forma-se um grupo de guerreiros
para levar a cabo a tradicional incursão de vingança contra
os assassinos. Deve-se enfatizar que a tradição Yanomami exige
que mortes violentas sejam vingadas com ataques guerreiros
onde os alvos são os homens, de preferência os mesmos que
perpetraram as mortes anteriores. Nunca se mata mulheres e
crianças.
A 26 de
julho, depois de dois dias de caminhada, o grupo de guerreiros
acampa nas imediações do garimpo. às dez horas da manhã seguinte,
embaixo de chuva, chegam à cozinha de um barracão onde avistam
apenas dois homens que conversavam em volta do fogo. Um dos
Yanomami esgueira-se por detrás de uma árvore e atira. Acerta
um dos garimpeiros com um tiro de espingarda na cabeça, matando-o
na hora; o outro foge, mas é ferido nas costas e nas nádegas.
Os guerreiros continuam sua vingança partindo a cabeça do
morto com golpes de machado, atiram flechas no cadáver e,
antes de fugir, apanham tudo que encontram no barracão, inclusive
cartuchos e a espingarda do morto.
Preparando o ataque
O ataque
dos índios enfurece os garimpeiros. Enterram o morto na cozinha
do barracão que é então abandonado, levam o ferido para uma
pista de pouso a dois dias de caminhada e começam a planejar
a retaliação. Fazem duas reuniões onde decidem pôr fim ao
assédio dos índios, matando todos os moradores das duas malocas
que constituem a comunidade de Haximu, num total de 85 pessoas.
Recrutam homens de vários barracões e juntam armas e dez caixas
de cartucho. Toda essa operação foi patrocinada, se não encomendada,
pelos quatro principais empresários dos garimpos daquela região.
Para isso liberaram seus empregados, forneceram munição, armas
e abrigaram as reuniões preparatórias para o ataque. Esses
quatro empresários de garimpo, alguns deles bem conhecidos
no Estado de Roraima, são: João Neto, proprietário rural;
seu cunhado Chico Ceará; Eliezio, também dono de uma cantina;
e Pedro Prancheta, o autor do bilhete que, como todos os demais,
é dono de balsa. Quatorze garimpeiros, fortemente armados
(espingardas de calibre 12 e 20, revólveres 38, terçados e
facões) põem-se a caminho para executar o plano. Entre eles
estão vários que participaram do assassinato dos rapazes de
Haximu, além de quatro pistoleiros que haviam sido contratados
para garantir a segurança dos empresários.
Enquanto
isso, os habitantes de Haximu deixam as malocas e acampam
na mata a uma distância segura de contra-ataques. Ficam aí
uns cinco dias. Como esperam o convite da comunidade de Makayu
(maloca do Simão) para uma festa, eles iniciam a viagem em
direção àquela maloca. No caminho pernoitam em suas duas malocas.
Na manhã seguinte, a maioria continua a caminhada até uma
roça velha entre Haximu e Makayu. Aí ficarão aguardando, como
de praxe, o convite formal trazido por mensageiros de seus
anfitriões, enquanto três jovens guerreiros voltam para atacar
de novo os garimpeiros, por estarem insatisfeitos com a tentativa
anterior de vingança. O irmão do morto desaparecido, líder
dos três rapazes, tinha especial empenho em vingar a morte
do irmão precisamente porque o corpo nunca fora encontrado,
impossibilitando a realização de um funeral apropriado. Chegam
a um barranco de garimpo e, protegidos pelo barulho das máquinas,
esgueiram-se até um garimpeiro que estava trabalhando e atiram.
O homem pressente-os e consegue proteger a cabeça; sai ferido
apenas no braço que lhe serviu de escudo. Os três razapes
fogem e juntam-se aos seus parentes de Haximu na roça velha.
Esse ataque
ocorre ao mesmo tempo em que os quatorze garimpeiros estão
a caminho das malocas de Haximu, a dois dias a pé de seus
barracões. Índios e garimpeiros só não se cruzam porque em
expedições de guerra os Yanomami evitam as trilhas, andando
pela mata fechada. Chegando a Haximu, os garimpeiros encontram
as malocas vazias. Amontoam os utensílios domésticos que ficaram
e despejam sobre eles uma grande quantidade de tiros de revólver
e espingarda. Incendeiam as duas malocas, encontram a trilha
que leva à roça velha, e prosseguem no encalço dos índios.
Entrementes,
no dia anterior, os habitantes de Haximu acampados na roça
velha já haviam recebido o convite formal de Makayu. Por estarem
em pé de guerra, querem abreviar ao máximo a sua estada naquela
maloca. Resolvem que apenas os homens e algumas mulheres sem
filhos seguirão para lá imediatamente em companhia dos mensageiros,
deixando na roça velha todas as mulheres com crianças, além
de três homens já velhos e pouco ágeis. Por duas razões essas
pessoas ficam no acampamento: por seu ritmo lento de viagem
e pelo fato de que mulheres e crianças têm sempre salvo conduto
em incursões guerreiras. Pela lógica social Yanomami, elas
estariam perfeitamente seguras, mesmo em caso de ataques inimigos.
Ficam também no acampamento os três jovens guerreiros recém-chegados
que descansam de sua incursão ao garimpo.
O massacre
Na manhã
do dia seguinte, a maioria das mulheres no acampamento sai
para coletar frutas (ingá) a várias horas a pé da roça velha.
Junto com elas vão quase todas as crianças e o líder de uma
das duas malocas. No acampamento permanecem cerca de dezenove
pessoas, incluindo os três guerreiros que ainda se recuperam.
Poucas
horas depois, por volta do meio-dia, os garimpeiros chegam
ao acampamento e o cercam de um lado. Crianças brincavam,
mulheres cortavam lenha e os demais estavam deitados nas redes.
Um garimpeiro dispara um tiro e todos os outros o seguem,
abrindo fogo cerrado, ao mesmo tempo em que avançam para as
vítimas. Em meio ao tiroteio, conseguem escapar os três guerreiros,
um homem e uma mulher de meia idade, duas meninas de seis
e sete anos e uma menina de cerca de 10 anos, graças à complexa
disposição dos abrigos e ao emaranhado da vegetação típica
das roças velhas. As duas meninas pequenas e um dos guerreiros
saem feridos com chumbo espalhado pelo rosto, pescoço, costas
e braços; a menina maior recebe um ferimento muito mais grave
na cabeça do qual viria a falecer mais tarde. Do esconderijo,
os fugitivos continuam a ouvir gritos abafados pelo estrondo
dos tiros. Longos minutos depois, os garimpeiros interrompem
o tiroteio e entram nos abrigos para terminar de matar quem
ainda está vivo. A golpe de facão matam não só os feridos
mas os poucos que não haviam sido atingidos; por fim, mutilam
ou esquartejam todos os cadáveres crivados de balas e chumbo.
Ao todo
morreram doze pessoas: um homem e duas mulheres idosos, uma
jovem de Homoxi que estava de visita, três meninas adolescentes,
uma menina de um ano e outra de três e três meninos entre
seis e oito anos; três dessas crianças eram órfãs de pais
mortos pela malária. A mulher de Homoxi, de cerca de 18 anos,
foi atingida por um tiro de espingarda disparado a menos de
dez metros e imediatamente por outro a menos de dois. Uma
mulher idosa e cega foi morta a pontapés e um bebê deitado
numa rede foi embrulhado num pano e trespassado com faca.
Os garimpeiros
dão-se conta de que não exterminaram todos os habitantes de
Haximu. Por isso, levam duas espingardas que estavam nos abrigos,
disparam um foguete para dissuadir possíveis perseguidores,
e correm de volta ao garimpo. Semanas mais tarde, ouvem pela
Rádio Nacional a notícia do massacre. Caminham por dois ou
três dias até à pista de Raimundo Nenê. Ameaçam de morte a
quem os delatar, dizendo aos demais garimpeiros que se estes
falassem "fariam a mesma coisa que fizeram aos índios".
Retornam então para Boa Vista de onde a maioria se dispersa
pelo país.
As cremações
Quando
finalmente cessa o tiroteio, um dos três guerreiros que escapou
ileso do massacre corre até onde as mulheres coletavam ingá,
relata o que aconteceu, manda todos se esconderem, retorna
ao acampamento, procura sua espingarda e não a encontra. Chama
então as mulheres e manda três a Makayu avisar os demais.
Elas caminham em disparada durante várias horas. Chegam aos
prantos e em meio a grande comoção, contam a tragédia e descrevem
de forma intensamente dramática como mulheres e crianças haviam
sido mutiladas ou esquartejadas.
Os homens
de Haximu partem imediatamente para o local do massacre em
marcha forçada e ainda conseguem chegar no começo da noite.
Juntam-se aos feridos e demais sobreviventes num clima de
choro e terror misturado aos exaltados discursos de revolta
dos líderes. A escuridão impede que tratem imediatamente dos
cadáveres. O forte cheiro de sangue força-os a passar a noite
um pouco afastados da cena do massacre. A cerca de meia hora
do local, abrem uma clareira e levantam abrigos improvisados.
Ao amanhecer, começam a cremação que seus ritos funerários
impõem. Nem o alto risco de serem novamente atacados pelos
garimpeiros suplanta o imperativo de dar um funeral apropriado
a seus parentes.
Assim que
começam a juntar os corpos destroçados, surge do matagal ao
seu encontro a menina com o crânio aberto a bala, uivando
de dores e pavor, enquanto a mãe desesperada corre para ela
aos gritos.
Começa a cremação dos corpos,
dispostos em posição fetal nas piras crematórias individuais.
Os adultos são imediatamente cremados no acampamento; os cadáveres
dos mais jovens são levados para o abrigo onde haviam passado
a noite e lá também cremados. Mal o fogo acabara de consumir
os corpos, os sobreviventes retiram das fogueiras os ossos
carbonizados ainda escaldantes e os recolhem em cestas e até
em panelas. Inúmeros fragmentos de ossos e alguns dentes ainda
ficam entre as cinzas, alguns com sinais de impacto de projéteis
de armas de fogo.
A pressa
em terminar logo as cremações deve-se à convicção dos índios
de que os garimpeiros voltariam para tentar matar os homens.
É-lhes inconcebível que a morte daquelas mulheres e crianças
fosse considerada pelos brancos como vingança apropriada.
A urgência de fugir é tão grande que deixam sem cremar o cadáver
esquartejado da visitante de Homoxi, que não tinha ali nenhum
parente próximo. Uma cabaça contendo as cinzas de um dos rapazes
assassinados no primeiro ataque havia sido quebrada pelos
garimpeiros e as cinzas espalhadas pelo chão. A mãe do rapaz
tenta juntá-las, mas com a pressa deixa para trás alguns embrulhos
de folhas com as cinzas mortuárias que havia recuperado. As
cinzas dos mortos são o bem mais precioso dos Yanomami; elas
ficam sempre aos cuidados das mulheres, que as levam consigo
mesmo quando viajam.
A fuga
Terminadas as cremações, os
habitantes de Haximu coletam todos os pertences dos mortos
para serem depois destruídos durante os ritos funerários.
Começam então uma fuga de várias semanas pela mata fechada,
num imenso desvio para despistar os garimpeiros, andando muitas
vezes à noite, sem comer, carregando as três meninas feridas.
Depois de uns oito dias de caminhada, param numa aldeia amiga,
Tomokoxibiú. Nessa noite, morre a menina com o crânio aberto.
Seus pais carregam o cadáver pela mata mais um dia antes de
cremá-lo no local onde irão acampar.
Sem se
deter, os fugitivos cruzam mais tarde os caminhos de duas
outras aldeias, Ayaobe e Warakeú. Param numa quarta aldeia,
Maamabi. Já haviam cruzado o Orinoco e, rumo ao sul, aproximam-se
da fronteira com o Brasil junto ao alto Toototobi, no estado
do Amazonas. Chegam finalmente à maloca do Marcos no alto
Paxotoú, afluente do Toototobi. Era o dia 24 de agosto de
1993, cerca de um mês depois da chacina.
Os sobreviventes
de Haximu escolheram o alto Toototobi como refúgio por várias
razões: é uma área livre de garimpeiros, seus habitantes são
gente amiga a quem visitavam com alguma freqüência, e há também
um posto de saúde ao qual já haviam recorrido várias vezes
para se tratar de malária nos últimos três anos.
Ritos funerários
Quando
pararam nas duas malocas amigas do lado venezuelano e depois,
já na maloca do Marcos, os índios de Haximu foram pulverizando
os ossos dos parentes mortos, guardando-os em cabaças lacradas
e acondicionadas em cestas de trama aberta ou embrulhadas
em panos.
Nas grandes
cerimônias funerárias intercomunitárias que irão organizar
em homenagem aos mortos, as cinzas dos adultos serão enterradas
junto às fogueiras domésticas de seus parentes e as das crianças
serão tomadas com mingau de banana. Nessa ocasião, as cabaças,
as cestas e todos os objetos que pertenciam aos mortos serão
queimados ou destruídos.
A destruição
dos pertences dos mortos, a obliteração de seus nomes pessoais
e o enterramento ou ingestão de suas cinzas nos rituais funerários
Yanomami têm por objetivo garantir que o espectro possa viajar
definitivamente para o mundo dos mortos nas "costas do
Céu" sem a possibilidade de voltar e atormentar os vivos.
Para que isso aconteça, é necessário que estes comemorem os
seus mortos até que todas as cinzas acabem, durante sucessivas
cerimônias mortuárias.
É por isso
que o povo de Haximu teve que resgatar os despojos de seus
mortos, mesmo sob a forte ameaça de ataques garimpeiros. Não
fazê-lo seria condenar os espectros a errar entre dois mundos,
assombrando os vivos com uma interminável melancolia, pior
que a própria morte.
Os 69 sobreviventes
de Haximu, refugiados na maloca do Marcos, tentam agora reconstruir
a vida, com planos de abrir novas roças e construir novas
casas. Entretanto, nos próximos meses, e durante uma boa parte
do próximo ano, sua existência estará voltada à organização
dos funerais de seus parentes mortos na chacina, e de vários
outros que morreram recentemente por malária contraída dos
garimpeiros. O seu luto durará até as cinzas terminarem, quando
então voltarão à normalidade. Mesmo assim, nunca esquecerão
que os brancos são capazes de esquartejar mulheres e crianças,
"como espíritos comedores de gente". Os guerreiros
de Haximu afirmam que desistiram de se vingar dos garimpeiros.
Poderiam até fazê-lo quando ainda pensavam que esses brancos
eram seres humanos com senso de honra. Agora duvidam. Os garimpeiros
não são sequer dignos de ser considerados inimigos. Só esperam
que os assassinos sejam "trancados" pelos outros
brancos para nunca mais voltar às suas terras. (Brasília, 27/09/93)