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Esta seção apresenta um conjunto de documentos de referência sobre diversos aspectos da ação da entidade na defesa dos direitos Yanomami (Terra Indígena Yanomami, direitos humanos, saúde, educação e preservação do meio-ambiente). Trata-se de documentos recentes ou " históricos ", de documentos produzidos pela Pró-Yanomami (CCPY) ou de documentos oficiais.


 
 

Documentos Pró-Yanomami / N. 01 - 2001


ANEXO 1

O massacre dos Yanomami de Haximu
Bruce Albert

Para quem achou que 16 mortos reduziam a gravidade do caso; para quem temeu que "apenas" 16 mortos esvaziavam a atenção sobre ele, deixo este relato à guisa de reflexão.

Texto publicado sob o título “Antropólogo revela os detalhes da chacina dos Indios Ianomâmis” na  Folha de São Paulo de 3 de outubro de 1993 e em El Nacional da Venezuela  nos dias 10 e 11 de outubro de 1993.

A armadilha garimpeira

Na origem do massacre de Haximu está uma situação crônica de conflito interétnico criada na área Yanomami pela presença predatória das atividades garimpeiras. Desde o início da grande corrida do ouro em Roraima, em agosto de 1987, vários assassinatos de índios ocorreram e outros poderão ocorrer novamente devido às mesmas causas. Portanto, antes de mais nada, é preciso tornar claro o contexto social e econômico capaz de gerar tais violências.

Ao instalar-se num novo sítio dentro da área Yanomami, os garimpeiros vêm primeiro em pequenos grupos. Sendo poucos, sentem-se vulneráveis perante a população indígena. Temendo uma reação negativa dos índios, tentam comprar a sua anuência com farta distribuição de bens e comida. Por sua vez, os índios têm pouca ou nenhuma experiência com brancos e tomam essa atitude como uma demonstração de generosidade que se espera de qualquer grupo que quer estabelecer laços de alianças intercomunitárias. Enquanto se desenrola esse mal-entendido cultural, os índios ainda não sentem o impacto sanitário e ecológico das atividades de garimpo. Aos seus olhos, o trabalho dos garimpeiros parece ainda algo enigmático e irrelevante. Com ironia e condescendência, chamam-os de "comedores de terra" ao compará-los a um bando de queixadas fuçando na lama.

Num segundo momento, o número de garimpeiros aumenta substancialmente e já não é preciso manter aquela generosidade inicial. Os índios passam de ameaça a estorvo com suas insistentes demandas pelos bens que se acostumaram a receber. Os garimpeiros irritam-se e tentam afastá-los dos garimpos com falsas promessas de presentes futuros e com atitudes impacientes ou agressivas.

A essa altura, os índios já começam a sentir uma rápida deterioração em sua saúde e meios de subsistência. Os rios ficam poluídos, a caça foge e muita gente morre em constantes epidemias de malária, gripe, etc., desestruturando a vida econômica e social das comunidades. Desse modo, os índios passam a ver os bens e a comida que vem dos garimpeiros como uma compensação vital e inquestionável pela destruição causada. Negada tal compensação, cria-se no seu entender uma situação de hostilidade explícita.

Surge assim um impasse: os índios se tornam dependentes dos garimpeiros no exato momento em que estes se dispensam de comprar a boa vontade indígena. Essa contradição está na raiz de todos os conflitos envolvendo índios e garimpeiros na área Yanomami. Com ela abre-se a possibilidade para que o menor incidente degenere em conflito aberto. Como a disparidade de forças entre garimpeiros e índios é enorme, a balança da violência pende sempre contra os Yanomami. Esse tipo de situação mostra claramente até que ponto a lógica da economia garimpeira repele a participação dos índios e até a sua simples presença. Garimpeiros que utilizam técnicas mecanizadas não têm qualquer interesse nos índios, nem sequer como mão-de-obra. Na melhor das hipóteses, são inconvenientes; na pior, são uma ameaça à sua segurança. Se com brindes e promessas não conseguem afastá-los, então a solução é intimidá-los ou exterminá-los.

Assassinatos no rio Orinoco

Em meados de 1993, as relações entre os garimpeiros brasileiros do "rio Taboca" (alto Orinoco, na Venezuela) e os Yanomami de Haximu já haviam chegado a esse impasse. Eram cada vez mais freqüentes as visitas dos índios aos garimpos em busca de comida e objetos. Numa ocasião, dois donos de balsa prometeram rede, roupa e munição a um jovem líder da comunidade. Mais uma vez a promessa não foi cumprida e este foi tomar satisfações no barracão de um desses empresários. Discutiu com um empregado e acabou por afugentá-lo com um tiro de espingarda. Com o barracão vazio, o índio e seus companheiros cortaram os punhos das redes, jogaram lona e cobertores no mato e levaram rádio e panelas. Depois deste incidente, os garimpeiros decidiram matar os índios se estes voltassem a incomodá-los. Em atritos anteriores, por medida de segurança, já haviam se reapossado de uma espingarda que tinham dado aos índios.

A partir do dia 15 de julho os fatos se precipitam. Um grupo de seis rapazes de Haximu chega a um outro barracão na área para pedir comida, bens de troca e, quem sabe, levar de volta a espingarda, conforme recomendação de seus parentes mais velhos. Recebem apenas alguma comida e um bilhete para ser entregue em outro barracão rio acima, com a promessa de que lá eles obteriam mais coisas.

No barracão seguinte, encontram uma turma de garimpeiros jogando dominó. São recebidos por uma cozinheira que lê o bilhete, joga-o no fogo e bruscamente manda-os embora com mais alguns mantimentos e roupa. O bilhete dizia: "Faça bom proveito desses otários". Com esse sinal e estimulados por ela, os garimpeiros desse barracão chegam a cogitar de matar os seis rapazes ali mesmo, mas desistem temendo que outros índios estivessem escondidos nas redondezas. Decidem então atacá-los já na trilha de volta às malocas.

Depois de caminhar menos de uma hora, os rapazes Yanomami param para comer o que receberam nos barracões. Chegam então cinco ou seis garimpeiros armados que os convidam para ir caçar anta e visitar um outro barracão. Os índios estranham o convite, primeiro recusam, mas acabam aceitando diante de tanta insistência. Forma-se uma fila indiana tendo na frente um Yanomami seguido de garimpeiros e índios alternadamente.

Um pouco adiante, o último Yanomami sai da fila para defecar; passa sua espingarda - a única dos rapazes - para outro Yanomami, e se embrenha no mato dizendo aos outros para seguir adiante. Mas os garimpeiros ficam parados. Bruscamente, um deles imobiliza o braço do índio que segura a arma e atira à queima-roupa em seu ventre com uma espingarda de dois canos serrados. Mais três índios são a seguir fulminados pelos outros garimpeiros. Um dos assassinos contará depois a um companheiro que um dos rapazes se agachou com as mãos no rosto e, tentando escapar da morte, suplicou: "garimpeiro amigo!". Foi sumariamente executado com um tiro no rosto.

O Yanomami que estava no mato, ao escutar os tiros, joga-se no rio Orinoco ali perto e consegue fugir. O jovem de 18 anos que encabeçava a fila também tenta escapar, mas vê-se encurralado entre três garimpeiros que, dispostos em triângulo, se revezam em atirar no rapaz como se fosse tiro ao alvo. Graças à sua agilidade e ao emaranhado da mata naquele local, o rapaz consegue desviar-se dos dois primeiros tiros, mas é ferido pelo terceiro. Enquanto os garimpeiros recarregam as armas, ele escapa e se joga também no rio Orinoco. Atordoado, tenta se esconder, ficando submerso até o nariz. Dessa posição ele vê os garimpeiros enterrar três dos mortos (a quarta vítima nunca chegou a aparecer; mortalmente ferido, provavelmente caiu no rio e foi levado pela correnteza). De repente, à procura de corpos, um garimpeiro desce até o rio e o vê escondido; volta para buscar uma arma, mas o jovem consegue finalmente fugir.

Enquanto isso, o outro sobrevivente chega às malocas do Haximu com a notícia dos assassinatos. Cerca de dois dias depois, volta com um grupo de homens e mulheres ao local onde ficaram os corpos de seus parentes. A meio caminho, encontram o adolescente ferido que lhes relata o que viu, inclusive o local onde os cadáveres foram enterrados (essa prática, aliás, é considerada pelos Yanomami como uma profanação). Desenterram os três corpos, procuram o quarto em vão, e levam os despojos para serem cremados a cerca de uma hora e meia de caminhada, mata a dentro. Coletam os ossos carbonizados necessários para oficiar os seus ritos funerários e voltam para casa.

Nos dias que se seguem, organizam a caçada ritual que precede a cerimônia de preparação das cinzas mortuárias (os ossos são pulverizados e guardados em cabaças lacradas com cera de abelha). Depois da caçada (que dura de uma semana a dez dias), são convidadas três aldeias aliadas: Homoxi, Makayu (maloca do Simão) e Toumahi. Terminada a preparação das cinzas, forma-se um grupo de guerreiros para levar a cabo a tradicional incursão de vingança contra os assassinos. Deve-se enfatizar que a tradição Yanomami exige que mortes violentas sejam vingadas com ataques guerreiros onde os alvos são os homens, de preferência os mesmos que perpetraram as mortes anteriores. Nunca se mata mulheres e crianças.

A 26 de julho, depois de dois dias de caminhada, o grupo de guerreiros acampa nas imediações do garimpo. às dez horas da manhã seguinte, embaixo de chuva, chegam à cozinha de um barracão onde avistam apenas dois homens que conversavam em volta do fogo. Um dos Yanomami esgueira-se por detrás de uma árvore e atira. Acerta um dos garimpeiros com um tiro de espingarda na cabeça, matando-o na hora; o outro foge, mas é ferido nas costas e nas nádegas. Os guerreiros continuam sua vingança partindo a cabeça do morto com golpes de machado, atiram flechas no cadáver e, antes de fugir, apanham tudo que encontram no barracão, inclusive cartuchos e a espingarda do morto.

Preparando o ataque

O ataque dos índios enfurece os garimpeiros. Enterram o morto na cozinha do barracão que é então abandonado, levam o ferido para uma pista de pouso a dois dias de caminhada e começam a planejar a retaliação. Fazem duas reuniões onde decidem pôr fim ao assédio dos índios, matando todos os moradores das duas malocas que constituem a comunidade de Haximu, num total de 85 pessoas. Recrutam homens de vários barracões e juntam armas e dez caixas de cartucho. Toda essa operação foi patrocinada, se não encomendada, pelos quatro principais empresários dos garimpos daquela região. Para isso liberaram seus empregados, forneceram munição, armas e abrigaram as reuniões preparatórias para o ataque. Esses quatro empresários de garimpo, alguns deles bem conhecidos no Estado de Roraima, são: João Neto, proprietário rural; seu cunhado Chico Ceará; Eliezio, também dono de uma cantina; e Pedro Prancheta, o autor do bilhete que, como todos os demais, é dono de balsa. Quatorze garimpeiros, fortemente armados (espingardas de calibre 12 e 20, revólveres 38, terçados e facões) põem-se a caminho para executar o plano. Entre eles estão vários que participaram do assassinato dos rapazes de Haximu, além de quatro pistoleiros que haviam sido contratados para garantir a segurança dos empresários.

Enquanto isso, os habitantes de Haximu deixam as malocas e acampam na mata a uma distância segura de contra-ataques. Ficam aí uns cinco dias. Como esperam o convite da comunidade de Makayu (maloca do Simão) para uma festa, eles iniciam a viagem em direção àquela maloca. No caminho pernoitam em suas duas malocas. Na manhã seguinte, a maioria continua a caminhada até uma roça velha entre Haximu e Makayu. Aí ficarão aguardando, como de praxe, o convite formal trazido por mensageiros de seus anfitriões, enquanto três jovens guerreiros voltam para atacar de novo os garimpeiros, por estarem insatisfeitos com a tentativa anterior de vingança. O irmão do morto desaparecido, líder dos três rapazes, tinha especial empenho em vingar a morte do irmão precisamente porque o corpo nunca fora encontrado, impossibilitando a realização de um funeral apropriado. Chegam a um barranco de garimpo e, protegidos pelo barulho das máquinas, esgueiram-se até um garimpeiro que estava trabalhando e atiram. O homem pressente-os e consegue proteger a cabeça; sai ferido apenas no braço que lhe serviu de escudo. Os três razapes fogem e juntam-se aos seus parentes de Haximu na roça velha.

Esse ataque ocorre ao mesmo tempo em que os quatorze garimpeiros estão a caminho das malocas de Haximu, a dois dias a pé de seus barracões. Índios e garimpeiros só não se cruzam porque em expedições de guerra os Yanomami evitam as trilhas, andando pela mata fechada. Chegando a Haximu, os garimpeiros encontram as malocas vazias. Amontoam os utensílios domésticos que ficaram e despejam sobre eles uma grande quantidade de tiros de revólver e espingarda. Incendeiam as duas malocas, encontram a trilha que leva à roça velha, e prosseguem no encalço dos índios.

Entrementes, no dia anterior, os habitantes de Haximu acampados na roça velha já haviam recebido o convite formal de Makayu. Por estarem em pé de guerra, querem abreviar ao máximo a sua estada naquela maloca. Resolvem que apenas os homens e algumas mulheres sem filhos seguirão para lá imediatamente em companhia dos mensageiros, deixando na roça velha todas as mulheres com crianças, além de três homens já velhos e pouco ágeis. Por duas razões essas pessoas ficam no acampamento: por seu ritmo lento de viagem e pelo fato de que mulheres e crianças têm sempre salvo conduto em incursões guerreiras. Pela lógica social Yanomami, elas estariam perfeitamente seguras, mesmo em caso de ataques inimigos. Ficam também no acampamento os três jovens guerreiros recém-chegados que descansam de sua incursão ao garimpo.

O massacre

Na manhã do dia seguinte, a maioria das mulheres no acampamento sai para coletar frutas (ingá) a várias horas a pé da roça velha. Junto com elas vão quase todas as crianças e o líder de uma das duas malocas. No acampamento permanecem cerca de dezenove pessoas, incluindo os três guerreiros que ainda se recuperam.

Poucas horas depois, por volta do meio-dia, os garimpeiros chegam ao acampamento e o cercam de um lado. Crianças brincavam, mulheres cortavam lenha e os demais estavam deitados nas redes. Um garimpeiro dispara um tiro e todos os outros o seguem, abrindo fogo cerrado, ao mesmo tempo em que avançam para as vítimas. Em meio ao tiroteio, conseguem escapar os três guerreiros, um homem e uma mulher de meia idade, duas meninas de seis e sete anos e uma menina de cerca de 10 anos, graças à complexa disposição dos abrigos e ao emaranhado da vegetação típica das roças velhas. As duas meninas pequenas e um dos guerreiros saem feridos com chumbo espalhado pelo rosto, pescoço, costas e braços; a menina maior recebe um ferimento muito mais grave na cabeça do qual viria a falecer mais tarde. Do esconderijo, os fugitivos continuam a ouvir gritos abafados pelo estrondo dos tiros. Longos minutos depois, os garimpeiros interrompem o tiroteio e entram nos abrigos para terminar de matar quem ainda está vivo. A golpe de facão matam não só os feridos mas os poucos que não haviam sido atingidos; por fim, mutilam ou esquartejam todos os cadáveres crivados de balas e chumbo.

Ao todo morreram doze pessoas: um homem e duas mulheres idosos, uma jovem de Homoxi que estava de visita, três meninas adolescentes, uma menina de um ano e outra de três e três meninos entre seis e oito anos; três dessas crianças eram órfãs de pais mortos pela malária. A mulher de Homoxi, de cerca de 18 anos, foi atingida por um tiro de espingarda disparado a menos de dez metros e imediatamente por outro a menos de dois. Uma mulher idosa e cega foi morta a pontapés e um bebê deitado numa rede foi embrulhado num pano e trespassado com faca.

Os garimpeiros dão-se conta de que não exterminaram todos os habitantes de Haximu. Por isso, levam duas espingardas que estavam nos abrigos, disparam um foguete para dissuadir possíveis perseguidores, e correm de volta ao garimpo. Semanas mais tarde, ouvem pela Rádio Nacional a notícia do massacre. Caminham por dois ou três dias até à pista de Raimundo Nenê. Ameaçam de morte a quem os delatar, dizendo aos demais garimpeiros que se estes falassem "fariam a mesma coisa que fizeram aos índios". Retornam então para Boa Vista de onde a maioria se dispersa pelo país.

As cremações

Quando finalmente cessa o tiroteio, um dos três guerreiros que escapou ileso do massacre corre até onde as mulheres coletavam ingá, relata o que aconteceu, manda todos se esconderem, retorna ao acampamento, procura sua espingarda e não a encontra. Chama então as mulheres e manda três a Makayu avisar os demais. Elas caminham em disparada durante várias horas. Chegam aos prantos e em meio a grande comoção, contam a tragédia e descrevem de forma intensamente dramática como mulheres e crianças haviam sido mutiladas ou esquartejadas.

Os homens de Haximu partem imediatamente para o local do massacre em marcha forçada e ainda conseguem chegar no começo da noite. Juntam-se aos feridos e demais sobreviventes num clima de choro e terror misturado aos exaltados discursos de revolta dos líderes. A escuridão impede que tratem imediatamente dos cadáveres. O forte cheiro de sangue força-os a passar a noite um pouco afastados da cena do massacre. A cerca de meia hora do local, abrem uma clareira e levantam abrigos improvisados. Ao amanhecer, começam a cremação que seus ritos funerários impõem. Nem o alto risco de serem novamente atacados pelos garimpeiros suplanta o imperativo de dar um funeral apropriado a seus parentes.

Assim que começam a juntar os corpos destroçados, surge do matagal ao seu encontro a menina com o crânio aberto a bala, uivando de dores e pavor, enquanto a mãe desesperada corre para ela aos gritos.

Começa a cremação dos corpos, dispostos em posição fetal nas piras crematórias individuais. Os adultos são imediatamente cremados no acampamento; os cadáveres dos mais jovens são levados para o abrigo onde haviam passado a noite e lá também cremados. Mal o fogo acabara de consumir os corpos, os sobreviventes retiram das fogueiras os ossos carbonizados ainda escaldantes e os recolhem em cestas e até em panelas. Inúmeros fragmentos de ossos e alguns dentes ainda ficam entre as cinzas, alguns com sinais de impacto de projéteis de armas de fogo.

A pressa em terminar logo as cremações deve-se à convicção dos índios de que os garimpeiros voltariam para tentar matar os homens. É-lhes inconcebível que a morte daquelas mulheres e crianças fosse considerada pelos brancos como vingança apropriada. A urgência de fugir é tão grande que deixam sem cremar o cadáver esquartejado da visitante de Homoxi, que não tinha ali nenhum parente próximo. Uma cabaça contendo as cinzas de um dos rapazes assassinados no primeiro ataque havia sido quebrada pelos garimpeiros e as cinzas espalhadas pelo chão. A mãe do rapaz tenta juntá-las, mas com a pressa deixa para trás alguns embrulhos de folhas com as cinzas mortuárias que havia recuperado. As cinzas dos mortos são o bem mais precioso dos Yanomami; elas ficam sempre aos cuidados das mulheres, que as levam consigo mesmo quando viajam.

A fuga

Terminadas as cremações, os habitantes de Haximu coletam todos os pertences dos mortos para serem depois destruídos durante os ritos funerários. Começam então uma fuga de várias semanas pela mata fechada, num imenso desvio para despistar os garimpeiros, andando muitas vezes à noite, sem comer, carregando as três meninas feridas. Depois de uns oito dias de caminhada, param numa aldeia amiga, Tomokoxibiú. Nessa noite, morre a menina com o crânio aberto. Seus pais carregam o cadáver pela mata mais um dia antes de cremá-lo no local onde irão acampar.

Sem se deter, os fugitivos cruzam mais tarde os caminhos de duas outras aldeias, Ayaobe e Warakeú. Param numa quarta aldeia, Maamabi. Já haviam cruzado o Orinoco e, rumo ao sul, aproximam-se da fronteira com o Brasil junto ao alto Toototobi, no estado do Amazonas. Chegam finalmente à maloca do Marcos no alto Paxotoú, afluente do Toototobi. Era o dia 24 de agosto de 1993, cerca de um mês depois da chacina.

Os sobreviventes de Haximu escolheram o alto Toototobi como refúgio por várias razões: é uma área livre de garimpeiros, seus habitantes são gente amiga a quem visitavam com alguma freqüência, e há também um posto de saúde ao qual já haviam recorrido várias vezes para se tratar de malária nos últimos três anos.

Ritos funerários

Quando pararam nas duas malocas amigas do lado venezuelano e depois, já na maloca do Marcos, os índios de Haximu foram pulverizando os ossos dos parentes mortos, guardando-os em cabaças lacradas e acondicionadas em cestas de trama aberta ou embrulhadas em panos.

Nas grandes cerimônias funerárias intercomunitárias que irão organizar em homenagem aos mortos, as cinzas dos adultos serão enterradas junto às fogueiras domésticas de seus parentes e as das crianças serão tomadas com mingau de banana. Nessa ocasião, as cabaças, as cestas e todos os objetos que pertenciam aos mortos serão queimados ou destruídos.

A destruição dos pertences dos mortos, a obliteração de seus nomes pessoais e o enterramento ou ingestão de suas cinzas nos rituais funerários Yanomami têm por objetivo garantir que o espectro possa viajar definitivamente para o mundo dos mortos nas "costas do Céu" sem a possibilidade de voltar e atormentar os vivos. Para que isso aconteça, é necessário que estes comemorem os seus mortos até que todas as cinzas acabem, durante sucessivas cerimônias mortuárias.

É por isso que o povo de Haximu teve que resgatar os despojos de seus mortos, mesmo sob a forte ameaça de ataques garimpeiros. Não fazê-lo seria condenar os espectros a errar entre dois mundos, assombrando os vivos com uma interminável melancolia, pior que a própria morte.

Os 69 sobreviventes de Haximu, refugiados na maloca do Marcos, tentam agora reconstruir a vida, com planos de abrir novas roças e construir novas casas. Entretanto, nos próximos meses, e durante uma boa parte do próximo ano, sua existência estará voltada à organização dos funerais de seus parentes mortos na chacina, e de vários outros que morreram recentemente por malária contraída dos garimpeiros. O seu luto durará até as cinzas terminarem, quando então voltarão à normalidade. Mesmo assim, nunca esquecerão que os brancos são capazes de esquartejar mulheres e crianças, "como espíritos comedores de gente". Os guerreiros de Haximu afirmam que desistiram de se vingar dos garimpeiros. Poderiam até fazê-lo quando ainda pensavam que esses brancos eram seres humanos com senso de honra. Agora duvidam. Os garimpeiros não são sequer dignos de ser considerados inimigos. Só esperam que os assassinos sejam "trancados" pelos outros brancos para nunca mais voltar às suas terras. (Brasília, 27/09/93)

 
 



Coordenação Editorial: Alcida Rita Ramos, Bruce Albert, Jô Cardoso de Oliveira


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