HAXIMU: Foi Genocídio!
Luciano Mariz Maia
Antecedentes
É suficientemente
estudado que os Yanomami são grupo indígena de tradicional
ocupação da região montanhosa e de floresta na fronteira entre
o Brasil e a Venezuela. Seu habitat natural é a região das
cabeceiras dos rios Orinoco (Hwaraú,
em sua língua) e Casiquiare, na Venezuela, e dos Rio Branco
e parte da do Rio Negro, no Brasil.
Há informes
da existência de, aproximadamente, 22.500 índios, sendo que
9.636 são habitantes vivendo nas matas
situadas nos Estados do Amazonas (2.304) e Roraima (7.332),
no norte do Brasil.
São, em
suma, um grupo étnico, no sentido que ao termo empresta Fredrik
Barth.
Os Yanomami
têm enfrentado circunstâncias e situações extraordinariamente
penosas para si, especialmente a partir do contacto com um
grupo social que, iludido pela promessa de enriquecimento
rápido, e tangido pela pobreza em seus Estados de origem,
vem em busca do ouro,
ou de outros minérios que signifiquem atingir os mesmos objetivos
(cassiterita, por exemplo). São os garimpeiros. Estes provocaram
a invasão das terras Yanomami a partir de 1987. Com isto,
poluíram os rios, destruindo a fauna e a flora. Trouxeram
doenças (especialmente a malária) e mortes (por doenças, fome
e violência).
A demarcação
das terras, em 1991, resolveu o problema jurídico, mas não
afastou a agressão permanente dos invasores. Para se ter noção
da dimensão do problema, há dez anos atrás, narra o Delegado
Cutrim, o Governo Federal foi obrigado pela Justiça a realizar
a retirada de garimpeiros da área.
“Em decorrência disso, por determinação judicial, o Departamento
de Polícia Federal em apoio à FUNAI colocou em execução o
plano de "OPERAÇÃO SELVA LIVRE" iniciado no dia
04 de janeiro de 1990 e que se estendeu até o dia 20.12.90,
cumprindo ao longo desse período, um trabalho gigantesco e
complexo envolvendo vidas humanas, destruição de pistas e
toda uma problemática social.
A Operação Selva Livre foi dividida em várias etapas
e contou no seu projeto inicial com quase 300 Policiais.
Esse trabalho de janeiro a março abrangeu uma área de mais
de dois milhões de hectares, onde se achavam os maiores focos
de Garimpeiros, como em Surucucus, que abrigava a sua maioria.
A primeira preocupação da Polícia
Federal foi com a tensão social reinante na população de Boa
Vista e nas regiões de garimpo com a expectativa da ação policial
e, também, o clima de insegurança que os cidadãos de Boa Vista
deixavam transparecer ante a possibilidade de milhares de
Garimpeiros ficarem desalojados nas cercanias da cidade.
Transcorridos
72 dias após o início da operação, contabilizou-se a retirada
de 9.971 Garimpeiros. Estima-se que mais de 10.000 saíram
espontaneamente."
Início dos atritos
Tudo
resulta da convivência e aproximação entre índios e não-índios,
da chamada “fricção interétnica”. Dependendo da atividade
que move a frente de expansão econômica, o contacto com o
branco poderá significar o genocídio –sua forma extrema, com
a extinção do grupo enquanto unidade biológica–, ou o etnocídio–
extinção dos seus valores e padrões culturais.
O antropólogo francês Bruce
Albert explica a raiz e a causa fundamental que resultou na
chacina de Haximu (Hwaximëutheri). Sua análise é extremamente
lúcida e merece ser conhecida:
"Na origem do massacre de Haximu está uma situação crônica
de conflito interétnico criada na área yanomami pela presença
predatória das atividades garimpeiras. Desde o início da grande
corrida do ouro em Roraima, em agosto de 1987, vários assassinatos
de índios ocorreram e outros poderão ocorrer novamente devido
às mesmas causas. Portanto, é preciso primeiro tornar claro
o contexto social e econômico capaz de gerar tais violências.
Ao instalar-se num novo sítio dentro da área yanomami, os
garimpeiros vêm primeiro em pequenos grupos. Sendo poucos,
sentem-se vulneráveis perante a população indígena. Temendo
uma reação negativa dos índios, tentam comprar a sua anuência
com farta distribuição de bens e comida. Por sua vez, os índios
têm pouca ou nenhuma experiência com brancos e tomam essa
atitude como uma demonstração de generosidade que se espera
de qualquer grupo que quer estabelecer laços de alianças intercomunitárias.
Enquanto se desenrola esse mal-entendido cultural, os índios
ainda não sentem o impacto sanitário e ecológico das atividades
de garimpo. A seus olhos, o trabalho dos garimpeiros parece
ainda algo enigmático e irrelevante. Com ironia e condescendência,
chamam-nos de "comedores de terra" ao compará-los
a um bando de queixadas (porcos selvagens) fuçando na lama.
Num segundo momento, o número de garimpeiros aumenta substancialmente
e já não é preciso manter aquela generosidade inicial. Os
índios passam de ameaça a estorvo com suas insistentes demandas
pelos bens que se acostumaram a receber. Os garimpeiros irritam-se
e tentam afastá-los dos garimpos com falsas promessas de presentes
e com atitudes impacientes ou agressivas.
A essa altura, os índios já começam a sentir uma rápida
deterioração em sua saúde e meios de subsistência. Os rios
ficam poluídos, a caça foge e muita gente morre em constantes
epidemias de malária, gripe, etc., desestruturando a vida
econômica e social das comunidades. Desse modo, os índios
passam a ver os bens e a comida que vêm dos garimpeiros como
uma compensação vital e inquestionável pela destruição causada.
Negada tal compensação, cria-se no seu entender uma situação
de hostilidade explícita.
Surge assim um impasse: os índios se tornam dependentes dos
garimpeiros no exato momento em que estes se dispensam de
comprar a boa vontade indígena. Essa contradição está na raiz
de todos os conflitos envolvendo índios e garimpeiros na área
yanomami. Com ela abre-se a possibilidade para que o menor
incidente degenere em conflito aberto. Como a disparidade
de forças entre garimpeiros e índios é enorme, a balança da
violência pende sempre contra os yanomami. Esse tipo de situação
mostra claramente até que ponto a lógica da economia garimpeira
repele a participação dos índios e até a sua simples presença.
Garimpeiros que utilizam técnicas mecanizadas não têm qualquer
interesse nos índios, nem sequer como mão-de-obra. Na melhor
das hipóteses, são inconvenientes, na pior, são uma ameaça
à sua segurança. Se com brindes e promessas não conseguem
afastá-los, então a solução é intimidá-los ou exterminá-los."
A promessa
descumprida
A prova
dos autos dá razão à linha de raciocínio seguida pelo antropólogo.
João Neto
e seu cunhado Chico Ceará estabeleceram balsas no Rio Taboca,
afluente do Rio Orinoco, na Venezuela, e iniciaram atividade
garimpeira, tendo sob sua orientação e dependência alguns
garimpeiros, todos de origem e nacionalidade brasileira. Logo
estabeleceram relações de contacto com os Hwaximèutheri (então
habitantes de Haximu, e antigos Bokarahutumëtheri), que habitavam a região. Ocasionalmente
freqüentavam os índios os barracos, quando em algumas vezes
receberam gêneros alimentícios. Em razão de alguns presentes
e de muitas promessas, aqueles garimpeiros gozavam da amizade
dos índios. Uma das vezes, João Neto e Chico
Ceará fizeram promessas ao Tuxaua Kerrero de que lhe trariam
roupas e uma rede.
No dia
aprazado, final de maio de 1993, Tuxaua Kerrero foi, juntamente com
um índio Davi, visitar João Neto, levando-lhe um presente.
Deslocou-se até a pista Saddan Hussein (na Venezuela) e, acompanhado
de Pedro Emiliano Garcia (Pedro Prancheta), o irmão deste,
Adriano, e Barbacena (garimpeiro a serviço de Pedro Prancheta),
aguardou a chegada do rancho e demais gêneros necessários
à manutenção da atividade.
Foram desembarcados
doze carotes de óleo diesel, com 60 litros cada, mas não vieram
as roupas nem a rede. O Tuxaua Kerrero irritou-se e, juntamente
com o índio que lhe fazia companhia, foi direto ao barraco
de João Neto. Não o encontrando (pois estava em Boa Vista),
disparou um tiro na direção do garimpeiro Goiano Doido, que
desabou incólume em desenfreada carreira. Kerrero e seu amigo
Davi apanharam no barraco um rádio e cortaram uma rede que
ali havia.
Genocídio:
primeiro ato
O
ocorrido no barraco de João Neto fez crescer o sentimento
de hostilidade e rejeição aos índios, por parte dos garimpeiros.
Em razão disso é que, passados 20 (vinte) dias daquela visita,
e no dia 15 de junho, chegaram outros índios ao barraco. Vinham todos desarmados,
inclusive sem lanças ou flechas. Apenas Paulo Yanomami portava
uma espingarda.
Dirigiram-se
ao barraco de Pedro Prancheta. Este os recebeu com fingida
amizade e, para ganhar tempo, escreveu um bilhete , remetendo-os ao barraco de Eliézer.
Os garimpeiros
foram ao barraco de Pedro Prancheta, e confirmaram a orientação
de extermínio do grupo.
Os 6 índios
seguiam seu caminho de volta à maloca, quando pararam para
comer um pouco de farinha. Não tardou e chegaram 7 garimpeiros
que convidaram os índios a caçar anta.
Após alguns
minutos de caminhada, Paulo Yanomami parou, entregou a espingarda
a Geraldo (ou Bauxi), e pediu que continuassem, porque ele
iria fazer suas necessidades. Os garimpeiros não quiseram
continuar. Aproveitaram o momento como propício e um deles
segurou a espingarda de Geraldo (ou Bauxi) com uma das mãos,
enquanto com a outra disparava um tiro em Geraldo, com a espingarda
que ele garimpeiro portava, atingindo-o um pouco abaixo do
peito. É de Paulo Yanomami, que sobreviveu para contar, a
seguinte narrativa:
"...um garimpeiro pegou no braço de Geraldo que estava
com a espingarda, com uma espingarda deu um tiro em Geraldo
entre o tórax e o abdômen do lado direito; que a espingarda
utilizada para dar o tiro em Geraldo tinha dois canos serrados,
que outro garimpeiro deu um tiro também nas costas de Geraldo
e um terceiro tiro dado pelo garimpeiro que estava com a espingarda
com o cano serrado, tendo nessa oportunidade Geraldo caído
e os garimpeiros pegaram a espingarda de Geraldo e o informante
se jogou de costas para o rio e saiu pelo outro lado do rio
e nesse ínterim ouviu muitos tiros..."
Nessa emboscada
morreram os índios Geraldo (ou Bauxi), Makuama (ou Makoam),
o filho de Waythereoma e Kaperiano (ou Caperiano ou Kaperão,
filho de Jacó). Reikim escapou com vida e foi encontrado no
dia seguinte por Paulo Yanomami e outros índios por este convocados.
Estava ferido e foi orientado a voltar à maloca.
Caporal
voltou para o barraco de João Neto à tarde desse dia, trazendo
a notícia da morte dos índios. Os demais garimpeiros participantes
da chacina cuidaram de providenciar o enterro dos índios mortos.
Reikim, antes
de seguir seu caminho de volta à maloca, descreveu para Paulo
Yanomami e para os demais índios das duas malocas de Hwaximëutheri
onde os garimpeiros tinham enterrado os índios mortos. Embora
enfrentando grande perigo, os índios seguiram em busca dos
seus parentes para chorar suas mortes e realizar suas cerimônias
funerárias, que incluem a cremação dos corpos, pilação dos
ossos e guarda das cinzas em cabaças.
Índios: contabilizando as perdas
Paulo Yanomami, juntamente com alguns índios e índias
da maloca Hwaximëú, cuidou de desenterrar os mortos, fazer
fogueiras e realizar as cremações, levando os ossos de Geraldo,
Makuama e do filho de Waythereoma para a maloca de Hwaximëú.
Preparando
a retaliação
Realizando
cerimônia funerária intercomunitária, cuidaram os Hwaximëutheri
de convidar guerreiros de outras malocas para expedição de
retaliação. Acolheram o convite e enviaram guerreiros como
representantes os Homoxitheri, os Makayutheri e os Toumahitheri.
Os índios
partiram e após dois dias de marcha, chegaram ao acampamento
dos garimpeiros. O garimpeiro Fininho caiu fatalmente atingido
por um tiro desferido pelo índio Macuxi. Os demais garimpeiros
que se encontravam no barraco fugiram.
Neguinho
foi atingido no ombro por novos disparos, mas conseguiu esconder-se
no mato até que os seus companheiros retornaram à noite e
o socorreu. Foi carregado, dentro de uma rede, até a pista
Raimundo Nenen velha, para apanhar um avião para Boa Vista.
Os índios
Hwaximëutheri retornaram para suas malocas. Mas perceberam
o risco que estariam correndo, se ali permanecessem. Deixaram-nas,
com todos os seus bens e utensílios, indo refugiar-se em uma
roça velha, onde construíram tapiris.
Já havia
se passado mais de uma semana que estavam nos tapiris, quando
vieram 2 índios da maloca do Simão (Makayutheri), convidando-os
para participar de uma festa. No mesmo dia, a quase totalidade
dos homens de Haximu seguiu para a festa, deixando nos tapiris
apenas algumas mulheres e as crianças.
Embora
os índios temessem ser atacados, não se preocuparam em deixar
sozinhas as mulheres e as crianças, porque estas nunca são
atacadas pelos seus inimigos. Imaginavam que também se passasse
o mesmo, ainda que dessa vez inimigos fossem os garimpeiros.
Genocídio:
segundo ato
A audácia
dos índios fez eclodir uma fúria indomável sobre o bando de
garimpeiros. Estes começaram a organizar uma operação com
o objetivo de varrer definitivamente do mapa seus desafetos.
João Neto e seu cunhado Chico Ceará contrataram alguns pistoleiros, e deram início às reuniões, para
definição do plano de extermínio dos Hwaximëutheri. Chico
Ceará, João Neto, Eliézer, Cururupu e Pedro Prancheta adquiriram
munição e distribuíram com os garimpeiros Goiano Doido, Pedão,
Neguinho, Parazinho, Ceará Perdido, Goiano Boiadeiro, Japão,
Boroca, Maranhão (Uriçado), Adriano, Paraná Aloprado, Barbacena,
Goiano Barbudo e Silva. Pernoitaram no
barraco de Cururupu e, no dia seguinte, Pedro Prancheta
e esses garimpeiros, todos firmemente determinados a matar
todos os índios, saíram em demanda de Haximu, portando 15
espingardas, 7 revólveres, alguns facões e facas.
O bando
varou 2 dias inteiros no mato, até alcançar a primeira maloca
de Haximu, já quando tinha caído a noite. Vazia. Não entenderam
porque. Suspeitaram que estivessem todos na segunda maloca.
Também vazia. Decidiram ocupá-la para o pernoite. Continuariam
a busca quando o sol raiasse. Amanheceria 23 de julho.
Nos tapiris
da roça velha, nem todos os Hwaximëutheri
se encontravam, vez que os homens, que tinham ido à
festa na maloca do Simão (Makayutheri) ainda não tinham regressado.
E boa parte das mulheres do grupo e algumas crianças tinham
ido, apanhar ingá. Estavam ali nos tapiris refugiadas
várias mulheres e crianças. Paulo Yanomami, que já tinha conseguido
escapar do primeiro massacre, e Simão Yanomami estavam entre
os poucos homens do grupo que permaneceram nos tapiris, onde
se encontravam quando os garimpeiros deflagraram o ataque.
Simão Yanomami conta
"Que ainda se encontrava deitado (buruoma), por volta
de 10:00 para 11:00 hs, ocasião em que foram surpreendidos
pelos ataques dos garimpeiros e o informante levou um tiro
do lado direito pegando vários caroços de chumbo na costela,
pescoço e três bem próximos uns dos outros na face, perto
da orelha do lado direito e os caroços de chumbo ainda não
foram retirados, em seguida o informante correu para o mato".
Esse depoimento guarda absoluta
concordância com o prestado por Paulo Yanomami, também presente
no local do ataque e sobrevivente do mesmo:
"Que, no dia seguinte, por volta das 9:00 para 10:00
h, o informante estava deitado em uma rede de casca e no momento
ouviu alguns tiros e um garimpeiro atirou em sua direção e
ele conseguiu evitar que o tiro pegasse e no momento em que
o garimpeiro estava trocando o cartucho aproveitou para correr,
ficando ali à distância escondido dentro do mato, ainda na
roça velha e dali escutou gritos e muitos tiros e no final
ouviu os garimpeiros dizendo: "Embora, Embora, Embora";
que, em seguida o informante foi procurar as mulheres, ou
seja, chegou até o local onde se encontrava a maioria das
mulheres e crianças que tinham saído dos tapiris de manhã
para apanhar frutos, ingás, etc. ; que após os garimpeiros
terem saído o informante retornou ao local dos tapiris à procura
de sua espingarda e não mais encontrou pois os garimpeiros
a tinham levado e naquele momento gritou para a turma de indígenas
que estava apanhando ingá, para virem até o local, tendo observado que haviam muitos mortos com marcas de tiros e cortes de
terçado na maioria deles, inclusive mulheres e crianças; que
entre os corpos estava o de sua filha de três a quatro anos;"
Waythereoma Hwanxima, mulher
índia dos Hwaximëutheri, que se encontrava na festa na maloca
do Simão (Makayutheri), e foi avisada do ataque, conta o que
viu, quando chegou aos tapiris:
"Que, com a notícia de que os garimpeiros atacaram os
indígenas que ficaram nos tapiris onde, segundo as mesmas,
haviam muitos mortos, naquela oportunidade abandonaram a festa,
unicamente os Hwaximëutheri, que haviam deixado seus familiares
nos tapiris , inclusive a informante e ao anoitecer chegaram
próximo ao local e acamparam e não foram até o local dormir,
em vista que não queriam ficar olhando seus parentes mortos;
que no dia seguinte, foram até o local onde os corpos foram
todos identificados e em seguida cremados em diversas fogueiras;
"
Waythereoma
Hwanxima pode constatar, ainda, que "nos
corpos das vítimas havia perfurações de chumbo, balas de revólver,
golpes de "terçado" (facão) e que quase todos eles
estavam cortados por quase todo o corpo".
A
narração dos fatos, pelo lado dos índios, que foram vítimas,
é absolutamente fidedigna, tendo sido inteiramente confirmada
a partir do depoimento dos garimpeiros.
O próprio
Pedro Prancheta, que participou da chacina, revelou:
"Que, no dia seguinte, saíram por volta das 7:00 hs
e só retornaram após três dias e o reinquirido conversou pessoalmente
com "Japão" e este por sua vez lhe contou que saíram
em direção às malocas, que eram em número de duas, uma próxima
da outra e lá chegando não tinha nenhum índio, tendo então
eles dormido ali e no dia seguinte pela manhã saíram no rastro
dos índios e após três horas de caminhada encontraram umas
barraquinhas no meio da mata e ali estavam os índios, onde
haviam algumas crianças brincando, ocasião em que os garimpeiros
ficaram todos de um lado e atiraram por alguns minutos matando
todos que ali se encontravam, tendo também sabido, através
de "Japão", que "Goiano doido" meteu a
faca numa criancinha e ele só ouviu ela gritar e logo após
saíram todos correndo com medo dos
outros índios em direção às malocas e na ocasião atearam
fogo nas mesmas, antes porém deram vários tiros em panelas
e em tudo que viam pela frente e em seguida retornaram aos
seus barracos".
Silvânia Santos Menezes, conhecida
por Silvinha, cozinheira do garimpeiro João Neto, confirma
as palavras de Pedro Prancheta:
"Que, quando eles retornaram disseram aos demais garimpeiros,
bem como à declarante que eles teriam ido primeiro na chapona
e lá não haviam achado ninguém e saíram dali e encontraram
os índios e segundo eles mataram uns vinte, entre homens,
mulheres e crianças; que, segundo eles, quem começou a atirar
foi "Goiano Boiadeiro" e depois todos atiraram;
que, gostaria de esclarecer que ouviu os garimpeiros dizerem
que na chapona arrumaram as panelas, deram vários tiros e
depois atearam fogo nas mesmas e de lá saíram à procura dos
índios; que presenciou "Goiano Boiadeiro" dizer:
"que havia uma criança deitada numa rede e ele enrolou
a criança em um pano e meteu a faca de um lado para o outro";
Realizada a missão de extermínio
e destruídas e queimadas as 2 malocas, retornaram os garimpeiros
para os seus barracos, comunicando aos que os aguardavam o
"êxito" da incursão assassina.
Os Hwaximëutheri
retornaram da coleta de frutos e da festa na maloca do Simão
e cuidaram de identificar e chorar seus parentes mortos.
Não puderam,
mais uma vez, seguir o ritual completo de tratamento dispensado
aos que morrem, mas prepararam fogueiras e iniciaram os processos de cremação.
Segundo
narra Waythereoma Hwanxima
“.foram feitas duas fogueiras na área dos tapiris e foram
cremados um homem numa e uma mulher e sua filha em outra,
esclarecendo que a mulher era a idosa, cega, irmã da informante;
que recolheram o restante dos corpos e caminharam meia hora,
aproximadamente, a pé do local onde foram mortos e lá fizeram
outros tapiris, providenciaram lenha para fazer a cremação
dos corpos, sendo seis fogueiras, onde foram cremadas as crianças
e uma moça e outra fogueira próxima onde foi cremada uma moça
mais velha, esclarecendo que nas seis fogueiras foram cremadas
cinco crianças e uma moça; que, no local das duas primeiras
fogueiras, onde foram cremados o homem, a velha cega e a criança,
deixaram o corpo não cremado da índia dos Homoxitheri, que
não tinha parentes, entre os que ali se encontravam, razão
pela qual não foi cremada, recordando-se que haviam furos
de balas na cabeça e cortes nos braços, barriga, peito, cabeça
e pernas; havia também um corte profundo do lado direito da
face da mesma, tendo a cabeça ficado aberta";
Veremos
mais adiante que a índia esquecida se chamava Masena, era
irmã de Ruruá, e era membro da comunidade Yanomami dos Homoxitheri.
Sendo visitante dos Hwaximëutheri, sem parentes que lhe chorassem
a morte, tornou-se, com sua presença sem vida, a mais viva
lembrança do genocídio!
O
êxodo
Os
sobreviventes da chacina de Haximu cremaram alguns dos seus
mortos lá mesmo nos tapiris e iniciaram sua fuga. Sessenta
e nove sobreviventes chegaram, no dia 25 de agosto de 1993,
à maloca do Makos, próximo a Toototobi, em território do Brasil.
Contabilizaram
como mortos no segundo massacre: Homem adulto de idade avançada,
2 mulheres idosas, sendo uma cega, 3 moças, uma jovem mulher
adulta, identificada posteriormente como Masena, a visitante
dos Homoxitheri; 3 meninas (1, 7 e 8 anos); 2 meninos (7 e
8 anos); além de vários feridos (Simão, 20; 2 meninas de 6
e 7 anos).
A religiosa
Luzia Pereira Leite, conhecida pela designação de Irmã Aléssia,
do posto da FUNAI de Xidéia (Xitëtheri)) no dia 17 de agosto
de 1993, dirigiu correspondência ao Administrador da FUNASA,
Luis Eustorgio Pinheiro Borges, comunicando o relato feito
pelo Tuxaua Antônio, onde fez um registro preocupado, pedindo
fosse apurada a morte de sete crianças, cinco mulheres, dois
homens" e a destruição da maloca.
Garimpeiros
em fuga livre
Com o conhecimento
público da chacina somente a partir do dia 18 de agosto de
1993, houve transmissão de tal notícia por empresas de radiodifusão
no Estado do Amazonas e também Roraima, sendo certo que somente
quando os garimpeiros tomaram conhecimento, através da Rádio
Nacional da Amazônia, de que o fato fora descoberto, iniciaram
sua dispersão, fugindo a partir da pista clandestina Raimundo
Nenen velha e dali para a cidade de Boa Vista (RR). Chegando a Boa Vista, alguns garimpeiros logo
tomaram paradeiro desconhecido. Outros permaneceram na cidade
e terminaram sendo presos pela Polícia Federal. É o caso de
Pedro Prancheta e de Eliézer.
Da
tipificação da conduta de genocídio
A ação dos garimpeiros contra os Yanomami de Hwaximëutheri
configura o delito de genocídio. Quem usou por primeiro essa
expressão foi o jurista Raphael Lemkin, conceituando como:
" O crime de genocídio é um crime especial, consistente
em destruir intencionalmente grupos humanos, raciais, religiosos
ou nacionais, e, como o homicídio singular, pode ser cometido
tanto em tempo de paz como em tempo de guerra."
A Organização
das Nações Unidas fez aprovar Convenção para Prevenção e Repressão
do Crime de Genocídio em 1948, a qual foi ratificada pelo
Brasil e promulgada através do Decreto n° 30.822, de 6 de
maio de 1952.
Nesse ato
internacional, são definidos como genocídio os atos cometidos
com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo
nacional, étnico, racial ou religioso, aí compreendido: assassínio
de membros do grupo; dano grave à integridade física ou mental
de membros do grupo; submissão intencional do grupo a condições
de existência que lhe ocasionem a destruição física total
ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no
seio do grupo; e transferência forçada de menores do grupo
para outro grupo.
Nessa mesma
Convenção há previsão de punição para o genocídio; o conluio
para cometer genocídio; a incitação pública e direta a cometer
genocídio; a tentativa de genocídio e a cumplicidade no genocídio.
É importante
acentuar que a Convenção prevê sejam punidos pelo cometimento
de genocídio e dos demais atos ao mesmo equiparados tanto
governantes e funcionários, quanto particulares.
Ao lado da previsão na Convenção
da ONU, o Brasil editou norma legal interna, específica, criminalizando
tal conduta. É a Lei n° 2.889, de 1° de Outubro de 1956:
Art. 1º
- Quem,
com intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional,
étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do
grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental
de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo
a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição
física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir
os nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência
forçada de crianças do grupo para outro grupo. Será punido:
com as penas do art. 121, § 2º, do Código Penal, no caso da
letra a; com as penas do art. 129, § 2º, no caso da letra
b; com as penas do art. 270, no caso da letra
c; com as penas do art. 125, no caso da letra d; com as penas
do art. 148, no caso da letra e."
Observa
o Prof. Heleno Cláudio Fragoso que "todas as ações que configuram o crime
de genocídio não se dirigem, em primeira linha, contra a vida
do indivíduo, mas sim contra grupos de pessoas, na sua totalidade".
Dizendo de outro modo, o Prof. Byron Seabra Guimarães afirma:
"a tutela se faz em protegendo a vida em comum dos grupos de pessoas
de cada comunidade do povo".
O genocídio
costuma ser chamado de delito de intenção, em razão de se
distanciar das condutas típicas do homicídio ou da lesão corporal
precisamente pela impessoalidade que reveste a vítima da agressão
no genocídio, que é atingida pela única condição de fazer
parte do grupo étnico, religioso, etc.
Embora
seja sempre presente a idéia de que o genocídio seja praticado
por governantes ou funcionários públicos, é pacífico hoje
o entendimento de que qualquer pessoa pode ser sujeito ativo
do delito.
Já o sujeito passivo
"...pode ser qualquer
pessoa que integre determinado grupo nacional, étnico, racial
ou religioso e que seja atingida como tal.”
"Embora
a definição do delito se refira a "membros de um grupo",
pode configurar-se o crime ainda que um só seja vítima, desde
que atingido em caráter impessoal, como membro de um grupo
nacional, étnico, racial ou religioso.”
"A
pluralidade de vítimas é irrelevante para a configuração do
delito, devendo ser levado em conta na medida da pena", segundo
ainda observa Heleno Cláudio Fragoso, na obra já citada.
Mas a chave
do entendimento da conduta genocida está em analisar e examinar
o ambiente em que os grupos em conflito estão situados, qual
visão têm um do outro e como são vistos pela sociedade envolvente.
Formulando
algumas considerações criminológicas em torno do genocídio,
Javier Saenz Pipaon y Mengs aponta algumas atitudes coletivas
que costumam ser assumidas por grupos genocidas: um sentimento
de frustração real e efetivo, o medo ante a idéia de fracasso,
um grande ressentimento (que se vê instrumentalizado em expressa
hostilidade, com repressão de pretensões internas, mesmo um
orgulho não satisfeito com posição de inferioridade e, especialmente,
explosividade psíquica tanto maior quanto maiores forem as
diferenças entre o valor publicamente atribuído aos grupos
de maneira abstrata ou ambígua e as relações efetivas de poder).
Conclui
afirmando que atitudes coletivas de grupos genocidas costumam
assumir uma agressividade como válvula de segurança social,
uma consciência pseudo-justiceira e uma inafastável idéia
de retribuição e vingança.
Para esse
Professor da Universidade de Madrid,
"Um dano provocado e sofrido implica uma reação suficiente.
A idéia de retribuição supõe, dentro deste contexto, que o
mencionado prejuízo tenha sido infligido de maneira injusta
e é princípio fundamental que informa invariavelmente o comportamento
do homem primitivo em relação tanto com os membros de seu
grupo como com respeito aos das demais comunidades.
Assim, se tomamos o espírito justiceiro como elemento desencadeante
do fenômeno genocida, não parece haver nenhum inconveniente
em situar este no seio da teoria da retribuição.
Sem embargo, parece mais exato contemplá-lo no contexto
de um processo de vingança, que é um problema distinto.
Psicologicamente, a vingança, como assinala Steinmetz, consiste
no fato de que a sensação desagradável de ser lesado, ou de
crer haver sido lesado, acrescentamos nós, seja neutralizada
pela agradável [sensação] de lesar, ou de crer que se haja
lesado".
O modelo
teórico se enluva com rigor e precisão aos fatos acontecidos
em Haximu. Não se pode perder de vista que são apontados como
autores do genocídio garimpeiros brasileiros, atuando a partir
de pontos de apoio localizados no Estado de Roraima.
O garimpeiro
era tido como desbravador, pioneiro, corajoso, forte. O conceito
histórico da sociedade não-indígena era tão favorável que
o julgou merecedor, no Centro Cívico
de Boa Vista, coração da cidade e sede dos poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário, de uma homenagem marcante,
expressa em monumental estátua.
Os índios,
por outro lado, não passavam de "selvagens" - que
precisam ser civilizados - ou de "caboclos", que
perderam sua cultura tradicional e "deixaram de ser índios".
Enfim, mantém-se o mesmo estrabismo que desborda o preconceito
e ingressa na discriminação.
Ora, o
valor publicamente atribuído aos grupos de maneira abstrata e as relações efetivas de poder que cada um
tem consciência de ter se alteraram profundamente, em desfavor
dos garimpeiros. O sentimento de frustração real e efetivo
e o medo ante a idéia de fracasso, quer pela atuação dos órgãos
do Estado fiscalizando e impedindo o exercício de sua atividade,
quer pela determinação assumida pelos índios de defenderem
suas terras, ampliou o ressentimento existente.
Faltava
unicamente o fator desencadeante: a expedição de retaliação
dos índios, que veio dar vazão à agressividade como válvula
de segurança social, agora assumindo uma consciência pseudo-justiceira,
e sua inafastável idéia de retribuição e vingança.
Em ambas
as chacinas estão presentes os elementos que tipificam o delito
de genocídio. Garimpeiros - como que vistos genericamente
- atacam e matam índios - a quem não conhecem pessoalmente
pelos nomes, e de quem, individualmente, não têm razão de
ter hostilidade - pela só condição de serem índios, membros
da comunidade Yanomami dos Hwaximëutheri.
Nenhum
dos garimpeiros ouvidos, ou suas cozinheiras, ou os informantes,
sabia identificar qualquer índio pelo nome. Nenhum. A vingança
contra o Tuxaua Kerrero se deu sobre 6 índios distintos daquele,
que não participaram do ato de hostilidade praticado pelo
Tuxaua.
Mas, se
desde a primeira chacina já se evidenciava a presença da intenção
de destruir, no todo ou em parte, um grupo étnico, com a explosão
da indescritível brutalidade ocorrida em Hwaximëu, esses contornos
ficaram muito mais nitidamente delineados.
A partir
da preparação da expedição –contratação de pistoleiros profissionais,
tais como Pedão, Goiano Boiadeiro, Parazinho e Carequinha–
. não há dúvidas quanto à pretensão
visada com a presença desses pistoleiros profissionais. A
testemunha Manoel José Santos Soares revelou que "Chico
Ceará", João Neto e Cururupu levaram uma turma para fazer
a segurança deles e qualquer coisa matassem os índios todos
da maloca;"
Silvânia Santos Menezes, a
Silvinha, cozinheira do garimpeiro João Neto, em seu depoimento
no Inquérito Policial, é categórica: [os garimpeiros] tinham
como objetivo matar todos os índios daquela maloca.
Mais. Os
garimpeiros, ao chegarem aos tapiris, atiraram indistintamente
contra mulheres e crianças, desarmadas e indefesas, além de
colhidas de surpresa. A brutalidade atinge até mesmo uma criança
de colo, de apenas um ano de idade, que é trespassada por
uma faca, em um golpe desferido por Goiano Doido. Tudo isso
pela única condição de as vítimas serem Hwaximëutheri.
Aliás,
basta ver a relação das pessoas vitimadas para se perceber,
em um golpe de olhos, o ímpeto e a intenção genocidas: mulheres
idosas e crianças, em sua quase totalidade.
Da
materialidade dos fatos
O
caso do Genocídio de Haximu também é importante paradigma,
no sentido de contribuir para apontar os caminhos a serem
seguidos na obtenção e produção de provas em casos criminais.
As vítimas
do genocídio são índios Yanomami, quase sem contacto com a
sociedade envolvente, e que não têm registro civil de nascimento.
Além disso, têm, como tradição e costume, realizar a cremação
dos seus mortos, a pilação dos ossos e o acondicionamento
das cinzas funerárias em cabaças.
Por outro lado, apontou-se
que o art. 231 da Constituição Federal reconhece aos índios
sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições
competindo à União proteger e fazer respeitar todos os seus
bens. Têm os Yanomami, portanto, direito constitucionalmente
reconhecido a darem a seus mortos o tratamento que seus costumes
e tradições lhes recomendam e impõem.
Desaparecidos
parcialmente os corpos de delito, ainda assim, é exuberante
a prova da materialidade dos fatos narrados.
O Auto
de Apresentação e Apreensão
de fls. 21 indica que, no local dos tapiris, foi encontrada
uma ossada. Os índios esclareceram que deixaram nos tapiris
o corpo de uma índia sem ser cremada, por não haver ali um
seu parente que lhe chorasse a morte. A índia se chamava Masena,
era irmã do índio Ruruá, e morava em Homoxi. Waythereoma Hwanxima
explicou, dizendo que
"...deixaram o corpo não cremado da índia dos Homoxitheri,
que não tinha parentes, entre os que ali se encontravam, razão
pela qual não foi cremada, recordando-se que haviam furos
de balas na cabeça e cortes nos braços, barriga, peito, cabeça
e pernas; havia também um corte profundo do lado direito da
face da mesma, tendo a cabeça ficado aberta";
Waythereoma
Hwanxima viu o ser humano, a visitante amiga, caída e morta.
E descreveu as lesões pela mesma suportada, provocadas pelos
garimpeiros. Mencionou especialmente os furos de bala na cabeça
e o corte profundo da face, ficando com a cabeça aberta.
Os ossos
de Masena foram levados
ao Instituto de Criminalística do Departamento de Polícia
Federal, em Brasília, o qual produziu Laudo. O testemunho ocular de Waythereoma
Hwanxima guarda consonância com a descrição dos peritos.
Além do
crânio de Masena, foram examinados os ossos dos seus arcos
costais e da coluna vertebral, em razão do que o Laudo é categórico
ao examinar a causa mortis:
"Como bem ficou demonstrado na descrição, a coluna
vertebral encontrava-se inscrustrada na sua face ventral de
vários pequenos projéteis metálicos compatíveis com
carga de espingarda, cujo nível inferior se situava em L3
e o superior em T5. Havia também um projétil na epífese distal
da clavícula direita e um outro na face anterior do terço
antero-lateral do quinto arco costal direito, além de um orifício
produzido por projétil semelhante na pars zigomática da órbita
direita. Estes elementos permitem concluir por um disparo
de arma de fogo do tipo espingarda, com trajetória de diante
para trás e a uma distância que estima-se ter se situado entre
5 e 10 metros. No crânio, posteriormente, foram encontrados
vários orifícios localizados nos ossos parietal e temporal
esquerdos, produzidos por projéteis semelhantes, desta feita,
a uma distância estimada não superior a dois metros, com uma
trajetória de trás para diante e da esquerda para a direita.
Embora não dispondo de observações periciais do local do
evento, os achados permitem fazer suposições acerca da dinâmica
do mesmo. Levando-se em consideração que o disparo frontal
que atingiu o tórax, o abdômen e a órbita direita deu-se a
uma distância estimada de cinco a dez metros, este deve ter
sido o primeiro, quando a vítima encontrava-se provavelmente
de pé. Momentos após, em decorrência de provável perda sangüínea vultosa, a mesma
deve ter caído, no que o agressor se aproveitou, desta vez
de uma distância menor, para desferir o segundo disparo na
cabeça". (Laudo, fls. 356 do IP).
Sua conclusão,
de que a ossada pertencia a uma jovem índia, entre 18 e 22
anos, está em harmonia com o testemunho dos amigos de Masena.
Por outro lado, houve perícia
ainda sobre o material recolhido das fogueiras crematórias,
e houve formalização, através de Auto de Constatação, de que
os parentes que sobreviveram carregaram cabaças, contendo
cinzas acondicionadas dos seus parentes mortos.
Por fim,
do massacre houve sobreviventes feridos. Nestes foram realizados
exames de corpo de delito.
O genocídio
de Haximu perante a Justiça Federal
Vários
aspectos jurídicos relevantes foram abordados no Caso Haximu.
Ser genocídio, praticado por garimpeiros contra índios, quando
muitas das provas obtidas na fase policial não se renovaram
na esfera judicial; muitos corpos foram cremados; foi praticado
mediante a supressão da vida de alguns membros da comunidade,
o que gerou discussão acerca de se equiparar ou não a homicídio,
o que influenciaria quanto ao órgão judicial competente para
julgar.
Inicialmente,
observou-se que, nos crimes de autoria coletiva, forma-se
uma sociedade de delinqüentes. Isso significa que não se faz
imprescindível descrever meticulosamente a conduta de cada
um dos perpetradores. Acerca
do tema, o Colendo Supremo Tribunal Federal tem manifestado
o seguinte entendimento:
“Nos casos de autoria conjunta ou coletiva, e, em especial,
nos delitos praticados em sociedade, não se faz indispensável
a individualização da conduta específica de cada agente (HC
58802, RTJ 100.556 e HC 59.857,
RTJ 104.1002)”.
O Superior
Tribunal de Justiça vem aplicando esse entendimento, como
se pode verificar das decisões adiante referidas:
“O crime de autoria coletiva não obriga a denúncia a pormenorizar
o envolvimento de cada réu, bastando a narrativa genérica
do delito, sem que tolha, evidentemente, o exercício da defesa.”
Nos crimes societários ou de autoria coletiva não é imprescindível
que a denúncia descreva a participação individual de cada
acusado.”
Por outro
lado, foi possível obter, na instrução criminal na fase policial,
várias confissões. O presente processo penal revela o penoso
caminho seguido para que se faça justiça, rompendo o ciclo
de impunidade que envolve a atividade dos garimpeiros, vitimando
índios.
Os crimes
aconteceram em local remoto, às margens do Rio Taboca, Venezuela,
no meio da selva amazônica, com acesso feito por aviões (para
pistas clandestinas) e, posteriormente, por varações (caminhadas)
de alguns dias pela mata. Só vieram a ser do conhecimento
do grupo público, externo à comunidade de garimpeiros, mais
de um mês após os últimos acontecimentos.
Mas já
eram do conhecimento da comunidade de garimpeiros desde o
momento em que aconteceram. Isto porque, aparentemente perdidos
no meio da selva, encontrarem-se no ponto comum de entrada
e saída dos garimpos, que é exatamente a pista clandestina
que garante a presença de novos aventureiros, a saída de outros
e o abastecimento de todos.
Foi dando
batidas policiais sobre as pistas clandestinas, no meio da
selva e em fazendas nos arredores de Boa Vista, que a Polícia
Federal conseguiu identificar garimpeiros e cozinheiras de
garimpeiros que testemunharam e narraram os fatos constantes
da denúncia que instruem o presente processo.
Houve confissões
extrajudiciais dos acusados, e houve ricos depoimentos de
testemunhas, durante a fase policial, alguns porque tiveram
modificações no curso da instrução, ou porque pressionados
pelos acusados, ou porque o próprio tempo se encarregou de
retirar o brilho de suas cores.
O grande
argumento do Ministério Público foi no sentido de que as confissões
extrajudiciais deveriam ser levadas em consideração no exame
do conjunto probatório. Isto porque nenhuma versão veiculada
pelos réus teve consistência significante que retirasse a
verdade de suas culpabilidades.
Apontou-se que o Supremo Tribunal
Federal considerou em diversos momentos o valor das confissões
extrajudiciais. E, de modo extremamente significativo, assentou:
“As confissões judiciais ou extrajudiciais valem pela sinceridade
com que são feitas ou verdade nelas contida, desde que corroboradas
por outros elementos de prova inclusive circunstâncias.
O Inquérito Policial ou Militar pode conter provas, diretas
ou indiretas, que, não infirmadas por elementos colhidos na
instrução criminal, demonstrem procedência da acusação, justificando
a convicção livre do julgador (RTJ 75/ 46-50).”
“Confissão em inquérito policial, testemunhada e não contrariada
por outros elementos, tem valor probante.”
“Confissão na polícia que ostenta valor probante, vez que
se coaduna com os demais elementos do processo”.
No
que diz respeito à autoridade judicial competente, em se tratando
de violação a direitos indígenas, a matéria é de competência
da Justiça Federal.
Todos
esses argumentos jurídicos, até aqui, foram aceitos pelo Juiz
Federal em Roraima e pelo Tribunal Regional Federal da 1a
Região, em Brasília. Mas, houve divergência quanto ao órgão
competente para julgar.
O Ministério
Público Federal argumentou que o genocídio teve como vítimas
índios Yanomami, pela só condição de serem índios. O que se
estaria disputando, e protegendo, no caso, seria o direito
coletivo à vida e à segurança dos índios Yanomami, considerados
como um grupo étnico distinto da sociedade envolvente. O que
os genocidas desafiam é o direito daqueles Yanomami à existência,
daí porque sua conduta tipifica o genocídio, que é a intenção
de destruir, no todo ou em parte, grupo étnico. Com a criminalização
dessa conduta, "a tutela se faz em protegendo a vida
em comum dos grupos de pessoas de cada comunidade do povo". Procurou-se demonstrar que, no
delito de genocídio, o valor jurídico (ou o bem jurídico)
protegido é a etnia, assim considerada a sociedade comunitária
histórica, física e cultural formada pelos membros daquele
grupo étnico. Procurou-se demonstrar que, havendo vários modos
de se praticar genocídio, o homicídio sobre alguns dos membros
do grupo significava apenas o modo pelo qual o genocídio fora
praticado naquele caso concreto. Mas não podia ser reduzido
a equivaler ou equiparar genocídio a homicídio.
Os pronunciamentos da Justiça
A 19 de
Dezembro de 1996, o Juiz Federal em Roraima, Itagiba Catta
Preta, reconheceu que o genocídio era delito distinto do homicídio,
sendo crime contra a etnia, sendo competente o juiz singular
e não o tribunal do júri popular. Assim, proferiu julgamento,
considerando procedente em parte a denúncia, sendo condenados
Juvenal Silva (Cururupu), Francisco Alves Rodrigues (Chico
Ceará), João Pereira de Moraes (João Neto), Eliézio Monteiro
Néri (Eliézer) e Pedro Emiliano Garcia (Pedro Prancheta) pelo
crime de genocídio, sendo imposta pena de 19 anos e 6 meses
aos primeiros, e 20 anos e 6 meses a este último. Os réus
foram absolvidos de outros crimes. Houve recurso tanto dos
réus quanto do Ministério Público. Deste, para obter condenação
por outros delitos. Daqueles, para obter a absolvição, ou
a nulidade do julgamento, por entenderem que, tendo havido
mortes, a competência seria do Tribunal do Júri.
Perante o Tribunal Regional
Federal, houve uma reviravolta. O Tribunal Regional Federal,
examinando a Apelação Criminal 1997.01.00.017140-0 RR, decidiu,
por maioria, anular a sentença proferida pelo Juiz Itagiba
Catta Preta, por entender que, tendo havido morte, a competência
para julgar seria do Tribunal do Júri, e não do juiz singular.
Esclarecendo seu pronunciamento, o Tribunal confirmou que
houve genocídio. Mas, tal delito fora praticado mediante a
morte intencional de membros do grupo Yanomami de Haximu,
se equiparando, para fins de atribuição da competência para
julgar, ao delito de homicídio. O julgamento ocorreu em 30
de junho de 1998, e o Juiz Tourinho Neto, que havia preparado
um voto estudado e profundo, de mais de 100 laudas, foi vencido,
sendo que a tese vitoriosa foi apresentada com inacreditável
poder de síntese, em apenas uma lauda! O argumento vencedor
resumiu-se, na prática, em sustentar que houve genocídio,
mas o genocídio foi cometido com a morte de membros do grupo.
E, se houve morte, foi crime intencional contra a vida. Se
foi crime doloso contra a vida, a competência seria do júri.
O Ministério
Público Federal não se conformou com esse pronunciamento.
Foi muitíssimo importante obter do TRF o reconhecimento de
que houvera a prática de genocídio. Mas, havia a necessidade
de se modificar o entendimento de que genocídio equivalia
a crime doloso contra a vida. Era necessário fazer reconhecer
que o genocídio tinha como objeto (ou valor) protegido a etnia,
que é o conjunto das vidas humanas que formam uma realidade
distinta e além das existências individuais dos membros do
grupo.
Em 12 de
setembro de 2000, veio o novo pronunciamento, agora do STJ.
O caso foi registrado como RESP 222653-RR, sendo Relator o
Ministro Jorge Scartezzini. A 5a Turma desse Tribunal,
em julgamento unânime, decidiu que, no genocídio, o bem jurídico
protegido é a etnia. Genocídio é crime contra a etnia. Portanto,
a competência para julgar o delito é do juiz singular, e não
do Tribunal do Júri. Reformou a decisão do TRF da 1a
Região e restaurou a sentença condenatória do Juiz de Roraima.
Os garimpeiros devem continuar condenados e presos. Mas, o
TRF da 1a Região deve examinar o mérito das apelações,
ou seja, deve examinar se, em tendo havido genocídio, como
já admitido e proclamado, os garimpeiros apontados como culpados
efetivamente praticaram os atos que lhes foram atribuídos.
Ainda assim,
a decisão da 5a Turma do STJ é paradigmática e
um importantíssimo precedente. Acolhendo o entendimento de
que o genocídio é crime contra uma etnia, o tribunal não apenas
faz respeitar o grupo enquanto tal, como também, na prática,
planta a semente da esperança de que crimes cometidos contra
índios não fiquem impunes, já que o Tribunal do Júri é formado
por homens e mulheres da sociedade envolvente, majoritária,
a qual ordinariamente absorve o preconceito e a discriminação
contrários à justiça, e absolve garimpeiros, fazendeiros,
madeireiros e outros integrantes de grupos econômicos e sociais
que avançam contra os bens e as pessoas de índios e suas comunidades.
Foi genocídio.
O acerto de contas com a sociedade democrática e o Estado
de Direito chegou. Os mortos morreram. Os vivos, muito vivos,
não ficarão impunes. Esta é a lição de luta e esperança que
a decisão do Superior Tribunal de Justiça nos devolve.
Diante
da decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que lhes
foi desfavorável, os garimpeiros entraram com o recurso denominado
“embargos de declaração”, alegando que o Tribunal não havia
se manifestado sobre questões constitucionais referentes ao
julgamento do crime de genocídio.
Em
28/05/2001, a Quinta Turma do STJ rejeitou o referido recurso,
por unanimidade, entendendo que sua decisão “abordou por completo
o tema”. A decisão foi publicada no Diário da Justiça de 13
de agosto de 2001.
Nota do editor