O Projeto de
Educação Intercultural (PEI) é uma resposta aos próprios Yanomami que, em sua
assembléia de 1993 realizada na região do Toototobi, demandaram a instalação de
escolas que lhes fornecessem os conhecimentos necessários sobre o mundo dos
brancos, de modo a equipá-los a evitar uma dependência sócio-econômica e
política face à sociedade majoritária.
Desde o
início, a idéia mestra que orientou os membros da CCPY envolvidos com a
organização do PEI foi criar um sistema de educação bicultural em que a
instrução formal que compõe o currículo nacional de educação estivesse acoplada
à promoção de saberes advindos da tradição yanomami.Instruídos em ambos os
sistemas de conhecimento (o nacional e o indígena) por meio do comando da
escrita, os próprios professores yanomami teriam, assim, condições ideais de
proceder à tradução lingüística e cultural plena entre ambos os universos de
conhecimento que escapasse ao processo de exotização e folclorização que por
vezes encontramos em algumas experiências de educação indígena “diferenciada”.
Instalado em
1995, inicialmente com o apoio da Unicef, o PEI cumpriu sua primeira fase com
um bem sucedido programa de alfabetização e formação inicial de professores
indígenas. Essa experiência escolar, iniciada na aldeia do Demini, no Estado do
Amazonas, onde vivem 101 Yanomami, espalhou-se para outras aldeias graças ao
efeito propagador deflagrado pelos próprios Yanomami que passavam seus novos
conhecimentos para as aldeias vizinhas.
Em 1998, com o
apoio financeiro da Rainforest Foundation da Noruega, o PEI pôde atender às
regiões do Toototobi (com 307 habitantes) e do Balawau (com 248 habitantes),
ambas no Estado do Amazonas. A partir daí, as demandas por educação têm crescido
sem cessar.
Face à
exigüidade de recursos, o PEI tem também prestado assessoria a escolas já
existentes, administradas por outras entidades que operam na Terra
IndígenaYanomami no âmbito do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami. Na
região do Catrimani, em Roraima, a CCPY presta assessoria às duas escolas
surgidas por iniciativa de um auxiliar de enfermagem da Fundação Nacional de
Saúde (Funasa). Para atender às regiões do Surucucus e Parafuri, a Urihi-Saúde
Yanomami, entidade conveniada com a Funasa, inaugurou escolas que contam com o
apoio de professores yanomami que estão sendo formados no PEI.
Cumprida a
primeira fase de alfabetização, o PEI prepara-se agora para a próxima etapa,
quando serão ministrados cursos que atendam às exigências do currículo
nacional, com a introdução de conhecimentos, por exemplo, de português,
geografia, história, direitos de cidadania e assim por diante. A entrevista
abaixo com o coordenador do PEI dá mais detalhes sobre essa experiência
didática.
Entrevista com
Marcos W. de Oliveira
Coordenador do
PEI-CCPY
Em 2000, o PEI
encerrou uma primeira etapa do processo de alfabetização, por meio do qual os
alunos, monolíngües, aprendem a ler e escrever em sua língua materna. Para
algumas turmas, principalmente de professores yanomami, foram ministrados
cursos de Português como segunda língua. Segundo o coordenador do programa,
Marcos Wesley de Oliveira, até o momento, 109 alunos yanomami foram
alfabetizados nas regiões do Demini, Toototobi, e Balawau, todas no Estado do
Amazonas. Alguns exercerão papéis diferenciados em suas comunidades, como
professores ou agentes indígenas de saúde.
Um dos
objetivos principais do PEI é que este processo de formação escolar seja
gerenciado pelos próprios Yanomami no futuro, fazendo eles mesmos os papéis de
professores e de assessores. Alguns alunos poderão nem vir a ter uma formação
específica depois, mas os conhecimentos sobre saúde, sobre a sociedade
envolvente, sobre matemática e a comercialização de produtos são necessários
para toda a comunidade”, explica Marcos nesta entrevista ao Boletim Yanomami.
Segundo ele, estão em atividade nas regiões onde o PEI atua 26 professores
indígenas e 9 microscopistas. Os microscopistas, depois de alfabetizados,
obtiveram a formação específica com a Urihi-Saúde Yanomami, entidade
não-govermental conveniada com a Funasa, submeteram-se a exames de cunho
nacional e foram aprovados. Abaixo, o coordenador do PEI nos dá mais
informações sobre o andamento desta experiência.
Após a
experiência do Demini, houve um vertiginoso crescimento do interesse dos
Yanomami pelas escolas do PEI. A que você atribui essa demanda?
“A
escola surgiu no Demini muito em função da necessidade de formar agentes de
saúde, embora não se limitasse a isso. E, através da alfabetização, a escola
possibilitou que alguns Yanomami se formassem para trabalhar como
microscopistas. Os Yanomami viram na escola um meio para defenderem seu
território, para contribuírem com sua comunidade e poderem receber um salário.
Mas havia expectativas muitos diferentes entre os Yanomami em relação às
escolas: alguns queriam aprender a escrever para atender a demandas
específicas, como escrever cartas para Boa Vista com os pedidos de mantimentos,
por exemplo. Eles tinham a idéia de que a carta escrita era um veículo oficial,
que o papel teria um poder maior do que a comunicação via rádio e, assim,
seriam atendidos.
Em seu
discurso, Davi (Kopenawa, líder yanomami do Demini) diz que é importante para
os Yanomami aprender a língua escrita para fortalecê-la e aprender português
para se relacionarem melhor com a sociedade envolvente. Desde o início, o
pedido de aprendizado da língua portuguesa tem sido muito grande, pois é ela
que permite a comunicação com a sociedade envolvente. Esse “boom” de pedidos
teve dois momentos: um, nas regiões com as quais o Demini mantém relações de
parentesco, e isso foi atendido em 1998; depois, quando o convênio da Urihi com
a Funasa foi assinado, e pudemos ouvir outras áreas nas quais não
trabalhávamos. Talvez esta demanda sempre tenha existido, mas não tínhamos como
saber.”
Qual a
maior dificuldade para atender todas estas solicitações?
“A
dificuldade maior é orçamento. A CCPY entende ser importante que esse processo
de educação escolar se difunda entre o maior número possível de comunidades
yanomami, porque existe necessidade de capacitação em outras áreas do
conhecimento para atender às demandas da saúde e de vigilância do território,
por exemplo. Fomos buscar recursos para expandir a escola para os locais onde a
CCPY tinha projetos de saúde, e isso foi viabilizado pelos estudantes
noruegueses (da campanha denominada Operasjon Dagsverk, “Um Dia de Trabalho”
cuja arrecadação é repassada à Rainforest Foundation). São regiões distantes, o
que implica ter recursos para horas de vôo até as malocas e pessoas contratadas
para iniciar o trabalho.
Temos
uma equipe de sete pessoas, me incluindo como coordenador, e nenhuma das
pessoas que chegaram, exceto uma, tinha experiência com educação indígena.
Colocar essas pessoas no circuito do projeto, incentivá-las e dar condições
para aprenderem a língua yanomami, estar fazendo sempre uma comunicação interna
entre a equipe tem possibilitado a formação desse grupo. Todos os projetos que
conheço têm dificuldades em encontrar pessoas. É um trabalho muito difícil,
fica-se muito tempo em campo, e para a relação intercultural é necessário um
certo preparo e sensibilidade também.
Um dos
pressupostos do PEI é o intercâmbio dos professores yanomami em formação com
outras experiências em educação indígena dentro e fora da Terra Indígena
Yanomami. Qual a função desse intercâmbio?
Estes
Yanomami têm poucas referências para poderem construir o seu ideal de escola:
há a da Missão Novas Tribos, a da CCPY e talvez alguma que visitaram na cidade.
Conhecer outras escolas, como a dos Waiãpi (povo indígena que vive no oeste do
Amapá)e outras experiências escolares proporciona a eles ter novas referências
para formar o seu ideal de escola. Isso ajuda a própria CCPY, pois aí eles
podem dizer que querem uma escola desta maneira e não daquela. Outra coisa é
que o intercâmbio permite aos Yanomami ter conhecimento sobre a luta de outros
professores indígenas e de outros povos indígenas no Brasil. Se a escola tem um
papel político – e tem mesmo -, essa identificação da luta dos Yanomami com a
luta de outros povos é muito importante. A Rainforest Foundation (organização
não-governamental da Noruega) financia o intercâmbio entre as experiências que
apóia, através da Rede de Cooperação Alternativa.
Da
Marcha dos 500 Anos participaram 12 Yanomami. Das duas coisas mais importantes
que eles falaram, uma foi a violência da polícia, e a outra foi a oportunidade
de conhecer tantas lideranças indígenas em Coroa Vermelha, vendo aqueles
depoimentos e poderem perceber quem são os Yanomami dentro do cenário da luta
indígena no Brasil. E ainda é uma oportunidade para aprenderem português e
coisas pontuais vinculadas aos próprios cursos visitados. Em cada viagem, vão
um assessor da CCPY e dois professores yanomami e é importante também para a
formação dos próprios assessores, que conhecem outras experiências.”
Como é
feito o acompanhamento do processo de formação dos professores yanomami pela
equipe da CCPY?
“Como os
assessores da CCPY vão para as malocas, recentemente elaboramos um guia de
acompanhamento. Por esse guia, podemos saber como está a escola e o trabalho do
professor yanomami através de três tipos de interlocutores: do próprio
professor, dos alunos e da comunidade. Deste modo, não ficamos numa relação
apenas entre o PEI e o professor, inserindo os alunos e a comunidade na
discussão sobre o andamento da escola. Esta assessoria em campo é muito
importante, pois a formação dos professores é contínua. Por exemplo, um
professor yanomami que em um mês de aulas teve sete dias de Geografia, é óbvio
que não conseguiu entender tudo que lhe foi passado nesse tempo. Quando vamos à
sua aula, podemos ver onde ele está tendo dificuldades e aí falar dessa
dificuldade de novo. É o que chamamos formação continuada.
Uma
outra questão é sobre o nosso material didático, que tem sido muito elogiado. A
diferença com outros materiais é sua linha editorial, mais simples, ágil e
voltada para o público das escolas. É ágil porque não é uma publicação
finalizada, podendo passar por mil revisões, sem rigidez no conteúdo, que não
precisa estar superelaborado. O que fazemos é pegar os textos de um curso,
produzir um material diretamente no computador, reproduzir e mandar para
a área. É rápido, barato e de qualidade. Isso não dispensa o outro material,
mais elaborado, requintado, editado em gráfica.”