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A primeira
expedição à região amazônica foi de impacto. Até então habituado a esmiuçar
absolutamente todos os detalhes estéticos de uma futura imagem, o fotógrafo
Valdir Cruz acalentava a idéia de retratar povos da Amazônia. Pensava em todos
os elementos que deve analisar um fotógrafo na hora de compor bela imagem, mas
sentiu certo ar de fracasso quando se deparou com as tribos Yanomami localizadas
na fronteira com a Venezuela.
Fotos: Valdir Cruz/Reprodução
Acompanhava
Valdir o cacique Davi Kopenawa Yanomami, que conhecera em Nova York, em 1995,
durante pronunciamento na ONU sobre o perigo de extinção da etnia, e visitava
a comunidade no norte da Amazônia. ‘‘Queria criar fotografias, criar imagens.
Mas, durante as três semanas que fiquei com Davi, percebi que era um erro e
que tinha de estudar uma forma de trabalho que pudesse contribuir com eles’’,
conta o fotógrafo.
A preocupação
apenas com aspecto estético deu lugar a projeto mais amplo: Valdir queria não
só sensibilizar os espectadores para os problemas que atingem os Yanomami, mas
também dar a esse povo algum retorno social. ‘‘Me associei a elementos que trabalham
com a saúde e consegui doações de remédios nos Estados Unidos. Aí, percebi a
situação: tenho o poder de criar as imagens, o poder da fotografia e podia usar
isso na área social’’, explica. As comunidades Yanomami sofrem com as conseqüências
do contato com os brancos. A aproximação, especialmente com garimpeiros, há
mais de 20 anos, trouxe doenças às quais os indígenas não têm resistência. Segundo
levantamento publicado pelo Instituto Socioambiental, metade dos Yanomami mortos
em 2000 padeceram de malária e gripe.
Durante oito anos, o fotógrafo registrou
cenas do cotidiano dos índios Yanomami:
“quero preservar a memória”, diz.
Radicado
em Nova York há 18 anos, o fotógrafo paranaense dava os primeiros passos em
território novo. Até então, Valdir trazia no currículo trabalhos de peso — realizou
ensaios com Henry Kissinger, Miles Davis, Tom Jobim, Octavio Paz e trabalhou
com o diretor Spike Lee —, mas nada cujo enfoque fosse tão humanitário quanto
o registro de comunidades isoladas.
À viagem
com Davi, em 1995, seguiram-se muitas outras. No total, foram oito anos entre
idas e vindas a mais de 18 aldeias localizadas no norte da Amazônia, a maioria
em território venezuelano. Em 1996, o fotógrafo foi contemplado com bolsa da
Fundação Guggenheim, com a qual custeou boa parte das expedições. O resultado
plástico está no livro Faces of the Rainforest, também financiado pela Guggenheim
e publicado no ano passado pela editora norte-americana Power House.
Nesta semana,
Valdir desembarcou no Brasil para divulgar o livro e visitar instituições interessadas
em receber a exposição Faces da Amazônia. Em Brasília, o projeto foi apresentado
à Caixa e ao Instituto Takano, interessado em editar a publicação. As 87 imagens
de Faces of the Rainforest são fruto de um minimalismo do qual Valdir não abriu
mão nem quando trafegava por regiões de difícil acesso e totalmente isoladas.
Com sofisticado tratamento gráfico, prefácio do ativista Trudie Styler, posfácio
de Vicki Goldberg, crítica do jornal The New York Times, e ensaio do antropólogo
Kenneth Good, o livro causou impacto nos Estados Unidos, país sempre atento
às questões ‘‘amazônicas’’.
Compromisso
Mas Valdir
não teme ser acusado de oportunista. Ao contrário, está aliviado com o documento.
Também não encara o trabalho como antropológico, como rotularam muitos críticos
norte-americanos. ‘‘Desde que assumi esse compromisso de trabalhar na Amazônia
com comunidades indígenas, decidi fazer uma série de livros para preservar a
memória. O que vai restar será a memória. Não venham me contar histórias de
que os Yanomami vão existir em 100 anos da mesma forma que hoje. Esse documento
será referencial para nós e para o próprio Yanomami, que em 100 anos poderá
olhar esse livro e reconhecer como viviam seus antepassados’’, diz.
O mais
importante, e talvez o acerto maior da lente de Valdir, é manter a espontaneidade
dos rostos captados. Faces of the Rainforest pode ser documento visual antropológico,
mas antes disso é homenagem às comunidades visitadas pelo fotógrafo. Não se
pode ignorar a dignidade captada nos olhares diretos dos personagens nem a cumplicidade
do fotógrafo com os índios. Nem mesmo quando os sujeitos são uma criança deformada
de nascença por conta do mercúrio despejado nos rios pelos garimpeiros e um
velho doente nu, de cócoras, confortavelmente acomodado na terra onde nasceu.
Valdir
parece gostar das pessoas fotografadas. Num gesto de reciprocidade, é recebido
com generosidade. Algumas imagens, como a cena de uma caçada, revelam a participação
do fotógrafo em atividades vitais da tribo. Há humildade também em certos registros
que nada têm de extraordinário no quesito composição, como a foto em que jovens
e crianças posam para ‘‘álbum de família’’, embora passem por tratamento laboratorial
para ressaltar tonalidades e contrastes.
A mesma
preocupação acompanha Valdir nos projetos surgidos de Faces da Amazônia. As
comunidades Macuxi, Kaxinawa, Matis, Yawakanawa estão no roteiro do fotógrafo
e devem virar livros semelhantes aos dos Yanomami.