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A
memória do mundo está em crise. Verdades absolutas são
criadas com a mesma velocidade (e facilidade) com a qual tentamos despistar
os intrigantes questionamentos das crianças sobre vida, morte e sexo.
Inimigos mortais, gatos e ratos, repentinamente se declaram amigos fraternos,
ressaltando que sempre os foram.
Essa falha de memória é reincidente em tempos de eleições.
É visível entre os sedentos em galgar as escadas da administração
pública, na forma como aguçamos os nossos próprios pobres
ouvidos crédulos, ávidos por quaisquer palavras de esperança
e, muito claramente, nas artimanhas daqueles que, prestes a abandonar seus cargos,
tratam de garantir a concretização de interesses. É a hora
do pagamento por favores prestados.
Há outra forma para enxergar os meios com que certas decisões
são tomadas no limiar dos atuais mandatos? Vejamos um caso próximo.
Após uma série de manobras que nós, pobres mortais, não
pudemos acompanhar, realizadas no Olimpo (ou no Hades) das grandes figuras públicas,
o polêmico projeto de lei que permite a mineração em terras
indígenas pode ser aprovado em caráter terminativo e de urgência.
O exaustivo trabalho de vários parlamentares para garantir que a proposta
fosse atrelada ao estatuto do índio, assegurando os direitos mínimos
às populações atingidas, foi desconsiderado pois, segundo
seu autor, “funcionará como uma grande alavanca ao nosso desenvolvimento,
tendo ainda o mérito de eliminar as causas dos graves conflitos geradores
de maléficos resultados para os nossos irmãos índios”.
Com que facilidade proclama-se agora a irmandade entre nós e as sociedades
indígenas! Entretanto, será que é o suficiente para esquecermos
que os arautos de tal discurso foram justamente os que garantiram a atuação
de madereiras e o funcionamento de garimpos em terras indígenas ?
Os Yanomami podem atestar isso. Relatório do projeto Radam Brasil, divulgado
em 1975, revelou a existência de metais preciosos no subsolo das terras
Yanomami, como cassiterita e ouro. Isso causou uma grande corrida de garimpeiros
à região. Mais de 100 pistas de garimpo clandestinas chegaram
a operar no curso superior dos principais afluentes do Rio Branco, como o Catrimani,
Mucajaí, Uraricoera e Parima. Os anos de 1986 a 1989 assistiram à
explosão do garimpo. Cerca de 40 mil garimpeiros, 5 vezes a população
Yanomami de Roraima, estavam ilegalmente dentro da área. Entre 1986 e
fevereiro de 1990 aproximadamente 1.800 Yanomami morreram, levando ao desaparecimento
de comunidades inteiras e ao completo desmoronamento da estrutura sócio-cultural,
ao depender dos cuidados da sociedade envolvente, dos napë pë (os
não-Yanomami), eles próprios os culpados em levar as epidemias
xawara. A despeito disso, ainda hoje buscam recuperar o que foi perdido e preservar
um modo de vida ímpar.
E são os Yanomami que agora podem pagar novamente um alto preço.
Objetivo claro e praticamente declarado do projeto é permitir a entrada
de grandes empresas em sua região. No Departamento Nacional de Produção
Mineral existem 554 requerimentos de pesquisa só em suas terras, o que
totaliza quase 60% de toda a área demarcada. Neste ranking, segue a região
do Alto Rio Negro, com 320 requerimentos.
Quem ganhará com esse projeto? Certamente não as populações
indígenas, às quais serão destinados 2,5% dos recursos
obtidos, gerenciados não por eles, mas pela FUNAI e pelo Ministério
Público, que verão a degradação progressiva e inexorável
de sua floresta e de suas fontes de sobrevivência. É ilusão
imaginarmos que empresas mineradoras de grande porte terão preocupações
sociais ou ambientais, em detrimento de seus lucros. Ou que se preocuparão
com o bem estar dos seus trabalhadores e o desenvolvimento das cidades ou estados
que as abrigarão. Aí não se trata mais somente de crise
da memória, mas também de um caso mais grave, digno de internação:
delírio. Segue a mesma linha de raciocínio (se é que existe
algo de racional) que dirigentes como o presidente norte-americano adotam para
justificar ações como a de se recusar a protocolar o tratado para
a diminuição da emissão de gases poluentes, por achá-lo
prejudicial à economia local.
O
que faremos quando o passado é esquecido, o futuro ignorado? Quando o
real bate contra o discurso ?
O escritor Ítalo Calvino já nos forneceu a triste resposta. Em
seu conto homônimo, o impasse, a contradição entre o que
de fato ocorreu e o que seria interessante estar registrado para a posteridade.
No caso da fantasia suplantar a história, a solução é
simplesmente destruir a verdade.