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Yanomami na Imprensa
Data: 1 - Janeiro - 2003
Titulo: Alice, o gato risonho e os Yanomami
Fonte:
Folha de Boa Vista – Luis Fernando Pereira
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Correndo o risco de me tornar desatualizado, retomo uma polêmica. Se bem
que, na verdade, assuntos polêmicos, quando bem dissecados e analisados
a uma certa distância de seu ponto de origem, podem gerar boas reflexões.
E polêmicas implicam em uma comoção generalizada, algo que
atinge um rezoável número de indivíduos dotados de um mínimo
de capacidade crítica para absorção, reflexão e
questionamento de informações. Algo que parece não ter
ocorrido até o momento. Pelo menos não aqui em Boa Vista.
Na verdade a resposta mais contundente, bem pensada e fundamentada veio do próprio
alvo de uma pequena nota estampada na seção de classificados desta
ilustre publicação, em cinco de novembro de 2002. E é justamente
por eu ter presenciado o processo de reflexão de alguns Yanomami sobre
o anúncio publicado que compartilho a reflexão.
Para muitos, creio eu, o fato passou sem ser notado. Entre várias ofertas
e mensagens, estava o classificado. “Achados e perdidos: ANIMAIS. Vendem-se
filhotes de Yanomami com 1 ano e seis meses. R$ 1.000,00”.
Para alguns, não passou de uma piada, um gracejo inofensivo. Provavelmente
o mesmo tipo de humor grosseiro e escatológico dos garotos de Brasília
que encharcaram o índio Galdino e o incendiaram em seguida. Para outros,
apenas uma nota não seria motivo para tanto alarde. Teriam razão,
se o anúncio não fosse parte de um quadro mais perverso, pintado
com as cores fortes do preconceito, cujo caldo se torna mais grosso com a ajuda
de indivíduos que vêem suas pretensões de riqueza desaparecerem
com o gradativo aumento da autonomia dos povos indígenas de Roraima.
É interessante notar que esses mesmos grupos acusam organizações
não-governamentais, missionários e outros preocupados com a questão
indígena no Estado (misturando-os no mesmo saco ideológico) como
representantes dos interesses de potências estrangeiras. Ora, se tal acusação,
resquício de argumentos mais do que ultrapassados, fosse de fato verdadeira,
ela serviria como uma luva nos próprios detratores. Quando sub-classificam
os Yanomami ou outros povos indígenas, menosprezam seus costumes e suas
posições políticas, suas formas de expressão, apenas
engrossam o caldo de pretensos pesquisadores norte-americanos e ingleses, como
Napoleon Chagnon e Dirk Wittenbom , além de seu séquito, que enxergam
a riquíssima cultura das populações nativas como exóticas,
próximas ao animalesco, de tão selvagens que seriam.
Quem são os selvagens, de fato? Segundo os mitos dos Yanomami, no princípio
dos tempos, os primeiros homens metamorfosearam-se em animais, devido ao seu
comportamento desvairado. Desde então, uma série de condutas e
formas viver foi estabelecida para uma vida equilibrada, onde natureza e ser
humano não se excluem, mas se complementam; não há sentido
isolado em apenas um dos aspectos.
Mas, de qualquer forma, os Yanomami entenderam a metáfora, e o pensamento
que lhe deu origem, pois não é agora o primeiro momento que escutam
ou vêem essa representação distorcida. E demonstrando esse
bom entendimento de nosso mundo, respondem na mesma moeda. “Vocês,
napë pë (estrangeiros, os que não são Yanomami), nos
ofenderam, mas nós não somos animais. Nós não somos
antas, nós não somos macacos, nós não somos tatus.
Vocês nos chamaram de animais mas vocês, napë pë, estão
mentindo. Vocês, sim, se assemelham a bois, porque destroem rapidamente
sua floresta, e querem destruir a nossa. Vocês parecem cavalos, que querem
acabar rapidamente com as águas. Vocês se parecem com o vento forte,
porque querem derrubar todas as árvores. Se nós fôssemos,
de fato, animais, não estaríamos agora respondendo a vocês”.
É apenas um trecho de uma longa carta, elaborada por lideranças,
professores e agentes de saúde Yanomami, na sua própria língua.
Sim, apesar do que dizem, em alguns poucos anos, os Yanomami se apropriaram
da escrita como instrumento para registrar sua cultura, tornaram-se microscopistas
reconhecidos oficialmente após passarem por provas nas quais muitos representantes
de nossa “superior sociedade” não obtêm igual êxito.
Também já dominam a tecnologia da informática, produzindo
jornais e materiais didáticos em computadores, treinam com aparelhos
de GPS e discutem profundas questões políticas, cujos conteúdos
não chegam aos ouvidos de muitos de nós. E, paralelamente a tudo
isso, preservam sua forma ancestral de vida. Seus objetivos claros, o de proteger
sua floresta, seus costumes, entender a sociedade envolvente e absorver, seletivamente,
conhecimentos que os auxiliem, impedem-nos de se perderem nesse extenso caminho.
O que me lembra o clássico “Alice no país das maravilhas”,
de Lewis Carroll (na verdade, o matemático inglês Charles Dodgson).
Para muitos, uma simples obra infantil, talvez por influência da adaptação
de Walt Disney em forma de desenho animado. Trata-se, na verdade, do relato
do mergulho na psique do ser humano, conhecendo os diversos aspectos que o compõem.
Há um momento em que Alice, totalmente confusa naquele novo e velho mundo,
encontra-se com o gato risonho, cujos membros nunca aparecem totalmente. Ao
pedir ajuda ao estranho ser, ela pergunta para onde segue uma grande estrada.
Ele, por sua vez, a questiona: “para onde você deseja ir?”.
“Eu não sei, estou perdida”. Ao que ele responde: “ora,
para quem está perdida, qualquer caminho serve”. Será esse
o destino de Roraima, seguir por caminhos aleatoriamente, confirmando a condição
de perdidos, apontada por muitos? Ou depender de gatos risonhos, cuja totalidade
e integridade nunca são totalmente reveladas, indicando as trilhas de
acordo com seu bel-prazer?
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Coordenação Editorial:
Bruce Albert (Assessor Antropológico CCPY) e Luis Fernando Pereira (Jornalista CCPY)
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