Untitled Document
Na sociedade Yanomami quem é xapori exerce uma função vital
na manutenção da existência. Mas o que é um xapori?
Seria simplista demais denominá-lo um pajé. Seu papel é
tão bem definido que se torna impossível resumi-lo em algumas
poucas palavras. Mas vamos tentar.
O xapori é aquele que mantém contato com o mundo espiritual. O
que já não é tarefa para qualquer um, considerando a ferocidade
dos espíritos que vagam entre nós. São espíritos
animais, que desempenham funções mais ou menos análogas
às suas contrapartes físicas.
Praticando sua arte, os xapori mantêm esse mundo. Como? De acordo com
sua história, no início dos tempos havia um outro mundo.
Mas o céu então desabou, matando boa parte dos seus habitantes,
soterrando outros. Esses tornaram-se os Amahiri, uma raça de seres calvos
e medonhos que freqüêntemente vêm ao nosso plano para roubar
a saúde, o sopro vital, dos Yanomami. Outra ameaça que constantemente
os xapori são obrigados a combater.
Para que a história não se repita, os xapori hoje sustentam o
firmamento. Abrigando os espíritos no peito, chamando-os corretamente
por meio de cânticos, passados de geração a geração,
eles garantem a continuidade de tudo.
A própria construção da casa comunitária, o xapono,
é reflexo dessa particular visão do universo. O pátio central,
descoberto, com as pontas da construção apontadas para o céu,
representa os níveis superiores. É lá onde residem os antepassados,
os que já morreram. Segundo dizem os Yanomami, lá também
possuem uma casa, roça e rios. Alimentam-se da mesma comida e utilizam
tabaco.
Os sítios laterais do xapono, onde moram as pessoas, simbolizam esse
plano de existência. Já as extremidades, as parede, são
as regiões obscuras, os subterrâneos, onde encontram-se os temíveis
Amahiri.
Respeitando essa disposição do espaço, os xapori, após
inalarem pelo nariz um poderoso alucinógeno, epena, através de
um grande canudo de madeira, o mokohiro, viajam espiritualmente por todos os
níveis de existência. Não é de estranhar vê-los
pendurados pelos postes, pensando em subir à casa dos mortos, ou brandindo
varas contra sombras nas laterais do xapono.
Não são todos os que podem tornar-se xapori. É uma tarefa
complicada, reservada a alguns que tenham predisposição para tal.
O treinamento leva tempo. Os mais experientes passam meses, anos até,
conduzindo os xapori novatos pelo mundo espiritual, ajudando-o a conclamar os
espíritos, a cantar corretamente, a não se assustar com sua aparência
aterroradora, que faz com que muitos desistam.
Os candidatos ao cargo passam por privações diversas. Não
podem aproximar-se de mulheres, pois seu aroma afugenta as formas espirituais.
Determinados tipos de alimento lhes são proibidos. Participar de caças
idem. Nem é difícil imaginar que há muitas desistências
ao longo do caminho.
Durante o aprendizado são guiados em viagens para sítios distantes,
a grandes pedras onde residem os espíritos animais, cachoeiras gigantescas
e comunidades inimigas. Conhecendo onde estão os adversários é
possível depois realizar ataques espirituais, que podem causar até
a morte dos desafetos. Todo falecimento de Yanomami por razões mal esclarecidos
é credito à ação de um xapori inimigo.
O temor à nossa tecnologia faz parte dessa visão de mundo. Para
os Yanomami, nós, napë pë, perdemos o contato com o plano espiritual,
ao contrário deles. Por isso necessitamos das “máquinas”,
uma forma de realizar o que eles podem fazer sem uma quantidade considerável
de recursos. Praticando o xapori, podem voar, visitar locais longínquos,
conhecer pessoas diferentes, transmutar a própria aparência.
Aos poucos, a medicina dos xapori é complementada ou suplantada pelas
práticas dos napë. Paralelamente ao tratamento espiritual de uma
dor de cabeça, os Yanomami já utilizam a Dipirona. Alguns já
se acomodam e é possível constatar o surgimento de hipocondríacos
pela área, que não podem passar um dia sem tomar algo.
Mas, para o bem de todos nós, é bom que a prática do xapori
não seja esquecida. Predizem que quando o último xapori se for,
novamente o céu irá cair. Sobre todos nós, Yanomami e napë.
E não haverá ciência ou “máquina” que
nos ajudará.