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Notícias CCPY Urgente
Data: 1 - Março - 2002
Titulo: As corajosas mulheres Yanomami
Fonte:
Portal Starmedia - Luis Fernando Pereir
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O dia para Kanima se inicia bem antes do alvorecer. Enquanto os filhos, o marido
Neoso e demais homens Ianomâmis ressonam tranqüilamente nas redes
ao seu lado, ela e as outras mulheres da comunidade dos Raharapiwei teri pë
passam a madrugada despertas mantendo acesas as fogueiras que aquecem as famílias
na noite fria da floresta. Uma função importante, já que
o fogo ocupa posição central nos espaços que dividem a
grande casa comunal, yahi ou yano. Importante, porém cansativa, ainda
mais naquelas circunstâncias.
Grávida já há oito meses, ela sente fortes dores. Após
pegar mais lenha para alimentar o fogo, deixa-se cair com fortes contrações.
Geme, mas ninguém vem acudí-la. Todos já estão despertos
pelos seus gritos, porém permanecem impassíveis em suas redes.
Nem poderiam fazer nada: quando a mulher está em trabalho de parto, os
homens não podem sequer fitá-la. Tentando disfarçar a dor,
Kanima começa a cantar compulsivamente.
Apenas quando o choro do recém-nascido é ouvido, Roomea, a mais
idosa da comunidade dos Raharapiwei teri pë, se levanta e vai ajudá-la.
Cabe a ela cortar o cordão umbilical, com uma fina palha. Kanima permanece
sentada, exaurida, segurando a criança até os raios do sol nascente
incidirem no interior da casa. Enquanto as outras mulheres embrulham a placenta
em folhas e a enterram fora da casa, Neoso volta a dormir.
No dia seguinte, nada de descanso. A única tarefa cotidiana que ela não
realiza é cortar lenha na floresta, já que ainda está debilitada.
Mesmo assim, é obrigada e pedí-la a outras mulheres, para assegurar
o calor que acalentará sua família à noite. Visivelmente
fraca, prepara bananas assadas para o marido, que agora pode retornar a comer
uma série de alimentos até então proibidos, como a carne
do inambú e alguns tipos de peixe. Ela precisa continuar, como já
fez antes com suas duas outras filhas, como fez sua mãe, sua avó
e tantas outras. Não há como a mulher parar na praticidade do
dia-a-dia Ianomâmi.
Entretanto, essa aparente imobilidade social das mulheres ianomâmis é
ilusória. Disfarçados por uma conduta que em determinados momentos
remete à passividade total, existem mecanismos sutilmente criados para
permitir sua participação. Durante as noites, os wãro pata
pë (grandes homens) praticam o hereamou, prática cotidiana do discurso,
da qual só podem participar os Ianomâmis que realmente provaram
seu valor como “seres humanos”; seja através da caça,
do duro trabalho diário na roça, da valentia demonstrada em situações
extremas e, principalmente, do domínio da arte da argumentação.
Com
tais requisitos excludentes, não é surpresa constatar que as mulheres
não podem falar nesses momentos. Entretanto, alojados em suas casas e
abrigados pela escuridão noturna, os homens só conseguem enfrentar
as idéias dos outros guiados pelos murmúrios das mulheres. Atentas
ao cotidiano da comunidade, elas sabem exatamente quem foi ou não trabalhar,
os que roubaram comida, aqueles que seduziram as mulheres dos outros. São
fontes importantes de informações, manipulados segundo sua própria
lógica de interesses.
Em alguns casos, as mulheres conseguem se afirmar como lideranças de
fato. Como ocorre com Carlita, da comunidade dos Wanapiu teri pë, residentes
junto a um posto de atendimento. Principal esposa do falecido wãro pata
Roberto, é consultada hoje antes de qualquer decisão importante
ser tomada. O fato de ser viúva de uma respeitada liderança não
aumentaria, automaticamente, seu status. Mas sua postura firme e decisiva, principalmente
no tocante à criação de suas filhas, garantiu papel de
destaque.
Uma de suas filhas é Dalvina, hoje casada com Renato, da comunidade dos
Parawau teri pë, e mãe de três filhos. Como Carlita, mesmo
após se separar do primeiro marido, investiu contra as convenções
ao insistir em criá-los sem a ajuda de homem algum. Mesmo sendo freqüentadora
assídua da escola, com destacado interesse, encontrou tempo para trabalhar
e garantir a alimentação dos filhos e a família.
Entretanto, a luta pela plena participação das mulheres nas escolas
não está inacabada. Os preconceitos iniciais quanto à formação
de turmas mistas foram vencidos quando as estudantes provaram absorver e entender
mais rapidamente dos que os homens os conceitos levados pelos napë pë
(estrangeiros), incluindo o próprio mistério da escrita: të
ã oni (os desenhos que representam o sons). Sem a presença de
suas esposas, filhas ou conhecidas, os Ianomâmis muitas vezes se perderam
num emaranhado de novas idéias, totalmente estranhos ao seu processo
de aprendizagem. Foi só quando Lúcia, a segunda esposa de Marcelo,
começou a estudar que ele compreendeu os princípios da nossa matemática.
Essa condição de Lúcia, aliás, não a agrada
nem um pouco: foi prometida pelo pai e, quando estava prestes a tornar-se professora,
engravidou.
O passo mais importante nessa batalha foi dado recentemente. Lena, uma pequena
Ianomâmi, com apenas 13 anos de idade, tornou-se professora na sua comunidade,
a dos Uxiximapiu teri pë. Alfabetizada inicialmente por missionários
protestantes do Novo Demini (região à margem do rio Demini, afluente
do Rio Negro), ajudava no andamento da escola durante a atuação
como professor de Romeu,filho do wãro pata local. Seu interesse a fez
tomar o comando das aulas, cada vez mais deixadas de lado pelo desinteressado
Romeu. A primeira professora Ianomâmi do Parawa u, entretanto, não
singrou águas calmas para chegar ao seu destino.
O fato de ser mulher e ainda jovem foi uma barreira inicial, não só
pelos comuns argumentos preconceituosos, mas pelas dificuldades inerentes. Quando
uma mulher Ianomâmi jovem tem a menstruação, ela se recolhe,
algumas vezes fica incomunicável. Não pode comer uma série
de alimentos, apenas banana. Nem ao menos se sentar diretamente ao chão
é permitido. Na primeira vez que ocorre a menstruação,
a menina é colocada dentro de um abrigo, construído com paus e
ramos, e se deita apenas em redes de cipó, nunca de algodão.
Como conciliar então um calendário escolar, com encontros periódicos
de professores e cursos constantes, com momentos como esse? A resposta, correta
ou não, vem da atitude corajosa da própria Lena que, em mais de
uma ocasião, desafiou os costumes e fez questão de participar
de um curso. Sozinha entre vários homens, teve seu corrimento do mês
quando estava de pé, escrevendo na lousa. Sem se abalar, só após
terminar o problema matemático retirou-se da sala.
Mais do que qualquer outro professor, sabe a importância de sua imagem.
Por isso, diariamente se prepara para aula. Coloca talos compridos e finos de
madeira nos orifícios em seu nariz e logo abaixo os lábios inferiores.
Nas orelhas, flores horehore ou brincos de bacaba, Com urucu, desenha sinuosidades
no rosto e no corpo. As miçangas adornam os braços e se cruzam
no peito. Antes desse cerimonial, não há escola.
Enquanto ministra a aula, suas irmãs Lola e Teosa se esforçam
para cozinhar as batatas. As duas são esposas de Akriyo que passou o
dia na roça trabalhando, e que chegaria faminto mais tarde. Elas também
só comeriam quando ele retornasse. Apesar de Lena estar desobrigada quanto
aos deveres diários, as outras mulheres, mesmo as interessadas na escola,
partem para a floresta, buscando satisfazer as necessidades básicas das
suas famílias. Enterrar as mãos no lodo das beiras do igarapé
buscando os caranguejos oko pë, puxando pequenos peixes yuri pë, e
identificando os locais onde há pupunha (raxa si) e açaí
(mai ma si).
Começa a anoitecer. Os casais de arara começam a gritar, voando
sempre juntos ao seus abrigos. As mulheres começam a retornar apressada,
trazendo ora água, ora lenha, mas sempre com as crianças a tiracolo.
Os homens, já todos deitados, comentam o dia. As mulheres retornam aos
seus deveres e preparam o fogo, sem nunca ter a esperança que o dia vá
começar apenas com o alvorecer. Afinal, como pode haver um dia se elas
desconhecem a noite?
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Coordenação Editorial:
Bruce Albert (Assessor Antropológico CCPY) e Luis Fernando Pereira (Jornalista CCPY)
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