Saúde
Yanomami: “Novo Modelo” ou Retrocesso ?
(English
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Com centralismo
burocrático e memória curta, a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), através
de reforma precipitada e mal concebida, desestabiliza o Distrito Sanitário
Yanomami que tinha se consolidado, desde a reforma da saúde indígena de 1999,
como um modelo de assistência eficiente.
Diante deste
quadro, a organização não-governamental URIHI, responsável
pelo atendimento a 53% da população Yanomami no Brasil (Roraima
e Amazonas) encontra-se na obrigação de encerrar sua parceria
com a FUNASA.
Diante do fato consumado: o “novo
modelo” de gestão da saúde indígena
Foi recentemente organizada em
Brasília (dias 02 e 06 de fevereiro de 2004) a Primeira Oficina Integrada
da Saúde Indígena, durante a qual a FUNASA e o Ministério da Saúde anunciaram
e explicaram suas novas diretrizes para a saúde indígena, editadas anteriormente
em duas Portarias de 20 de janeiro de 2004 (N° 69 e 70).
Do dia 02 ao dia 04 a Oficina contou
apenas com técnicos do governo para a ratificação das mudanças no quadro da
reforma da saúde indígena de 1999 e as organizações não-governamentais e lideranças
indígenas foram convocadas apenas nos últimos dois dias do encontro, para
meramente tomar conhecimento do “novo modelo” e, eventualmente,
manifestar as suas opiniões no tempo limitado reservado ao final das palestras.
O breve encontro com as organizações
conveniadas foi aberto com o discurso do Secretário Executivo do Ministério
da Saúde, Gastão Wagner S. Campos, garantindo a prioridade do governo
para a saúde indígena, o fortalecimento da capacidade gestora do Estado, a
criação de um Comitê Consultivo da Política de Atenção à Saúde dos
Povos Indígenas e anunciando, ainda, o aumento
de 30% no orçamento de 2004 para a assistência às populações indígenas. Em
seguida, o presidente da FUNASA, Dr. Valdi Camarcio Bezerra, enfatizou a importância
da saúde indígena e da necessidade de mudanças uma vez que, segundo ele, governo
e sociedade não estão satisfeitos com a situação atual, em que organizações
indígenas, organizações indigenistas e alguns municípios conveniados executam
juntos quase a totalidade das ações de saúde nos 34 Distritos de Saúde Especiais
Indígenas (DSEIs) da FUNASA.
No mesmo dia, representantes da
FUNASA evocaram análises jurídicas relativas às responsabilidades do Estado
na gestão e na execução da atenção à saúde para os povos indígenas, concluindo
que a participação das organizações conveniadas na execução só poderá ser
“complementar”, ainda que a natureza de tal “complementaridade”
não tenha nenhuma definição na legislação vigente.
O dia final do encontro ficou reservado
para a comunicação às conveniadas das atribuições do Ministério da Saúde e
da FUNASA na gestão e execução das atividades, bem como da possível ação “complementar”
reservada às organizações indígenas e indigenistas e aos municípios:
“ -
contratação de pessoal
-
atenção nas aldeias com insumos
-
deslocamento de índios da aldeia
-
combustível para o deslocamento
das aldeias “
A saga das reformas da saúde indígena
(1967-1999)
A
fim de melhor entender o modelo vigente de gestão da saúde indígena e o contexto
no qual se integra o “novo modelo” imposto pela FUNASA a partir
do dia 1 de abril de 2004, é preciso aqui relembrar a cronologia dos modelos
de gestão da saúde indígena no pais até a chamada “Reestruturação da
Saúde Indígena” de 1999 e a caótica história institucional do Distrito
Sanitário Yanomami (DSY), primeiro distrito sanitário implementado no pais
em 1991.
1967 – Criação
da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Ações de saúde esporádicas através
das equipes volantes criadas em cada Delegacia regional da FUNAI. O Ministério
da Saúde colaborava com o controle das principais endemias e a FUNAI assinou,
ao longo dos anos, convênios com entidades governamentais e não governamentais
de modo a remediar a falta de estrutura adequada. No entanto, em escala e
capacidades operacional e administrativa insuficientes, esta atividade foi se atrofiando até a sua paralisação.
1986
– I Conferência Nacional
de Proteção à Saúde do Índio. Afirmou: a) a necessidade urgente de implantação
de um modelo de atenção que garanta aos índios o direito universal e integral
à saúde; b) a importância de respeitar as especificidades étnicas e sócio-culturais
e as práticas terapêuticas de cada grupo; c) a necessidade de garantir a participação
indígena nas políticas de saúde; d) e a criação de uma agência de saúde específica
para assuntos indígenas. Primeira proposição do modelo dos Distritos Sanitários
Especiais Indígenas (DSEIs) sob a gerência do Ministério da Saúde.
1988
- Promulgação da Constituição Federal que estabeleceu em seu artigo 198 as
regras gerais do Sistema Único de Saúde/SUS (regulamentado pelas leis n° 8.142/90 e 8.080/90): No âmbito da União, a gestão
será exercida pelo Ministério da Saúde. Os direitos indígenas são de competência
federal.
1991
– Criação da Coordenação
da Saúde do Índio (COSAI), subordinada ao Departamento de Operações da Fundação
Nacional de Saúde (DEOPE/FNS) para atender ao Decreto nº 23/91 que transfere
da FUNAI para o Ministério da Saúde (MS) a responsabilidade pela coordenação
das ações de saúde para as populações indígenas. Criação do Distrito Sanitário
Yanomami pela FNS.
1992
– Criação da Comissão Intersetorial de Saúde do Índio (CISI) pela Resolução
n° 11 de 13/10/1992. A CISI, formada por representantes do Governo Federal
(Ministérios da Saúde e da Justiça), de Universidades e de organizações não-governamentais
(ONGs) e por representantes indígenas, tem por atribuição assessorar o Conselho
Nacional de Saúde/CNS na elaboração de princípios e diretrizes de políticas
governamentais no campo da saúde indígena.
1993
– II Conferência Nacional
de Saúde para os Povos Indígenas: reitera a defesa do modelo dos DSEIs como
base operacional, no nível do SUS, para o modelo de atenção à saúde das populações
indígenas, os quais deveriam ser ligados diretamente ao MS e administrados
por Conselhos de Saúde com participação indígena. Definiu o Governo Federal
como instância responsável pela saúde indígena do país, não sendo excluídas
as contribuições complementares dos estados, dos municípios ou de outras instituições
governamentais ou não governamentais. Defende a criação de uma secretaria
especial do MS para a gestão da política de atenção à saúde para os povos
indígenas.
1994
– Decreto nº 1.141/94.
Revoga o Decreto n° 23/1991. Constitui a Comissão Intersetorial de Saúde e
devolve, na prática, a coordenação da saúde indígena para a FUNAI, que fica
responsável pela recuperação dos índios doentes enquanto o MS se encarrega
das ações de prevenção.
1999 – Decreto nº 3156/99 e “Lei
Arouca” (n° 9.836). A saúde volta a ficar a cargo do MS: “O Ministério
da Saúde estabelecerá as políticas e diretrizes para a promoção, prevenção
e recuperação da saúde do índio, cujas ações serão executadas pela FUNASA.”
Lições esquecidas: a história do
Distrito Sanitário Yanomami (1990-2003)
A partir de 1999 a saúde indígena
ascende ao nível de departamento na FUNASA que inicia uma nova política sob
o rótulo de “Reestruturação da Saúde Indígena”. São, nesse contexto,
definidos e implantados 34 DSEIs em todo Brasil, cujos serviços de atenção
básica à saúde e prevenção são executados através da estratégia de descentralização
via convênios firmados com organizações da sociedade civil - associações indígenas
e indigenistas - e alguns municípios.
As justificativas da reforma de
1999 foram em grande parte fundamentadas na experiência pioneira do Distrito
Sanitário Yanomami (DSY), criado pela FUNASA (então FNS) em 1991, e, particularmente,
na questão crucial da gestão de recursos humanos para atuarem no campo nas
condições operacionais extremamente difíceis que caracterizam a Terra Indígena
Yanomami.
Assim, a fim de enfrentar a grave
situação dos Yanomami, ameaçados de extinção pela situação epidemiológica
desastrosa deixada nas suas terras pela invasão garimpeira do fim dos anos
oitenta, a FUNASA experimentou no DSY, de 1991 a 1998, todas as formas possíveis
de contratação de pessoal de saúde, sem resultados satisfatórios.
O fracasso da execução direta
Em 1990 e 1991 a
FUNASA começou a sua intervenção direta na Terra Indígena Yanomami contratando
profissionais de saúde pagos como “colaboradores eventuais”
em campanhas emergenciais.
Em 1992, em caráter de urgência,
foi realizado o primeiro processo seletivo simplificado para a contratação
temporária por um período de 6 meses. Ao final dos contratos o expediente
foi utilizado por mais duas vezes até o final de 1993. O curto período
das contratações gerava previsíveis problemas operacionais e administrativos,
além da interrupção da assistência entre o fim dos contratos e o começo dos
novos.
Por este motivo, a FUNASA optou
por um novo processo seletivo simplificado em fins de 1994,
desta vez para contratos de 4 anos.
A precariedade da situação trabalhista,
a insuficiência do quadro de pessoal e suas conseqüências negativas sobre
a qualidade da assistência sanitária aos Yanomami levaram a FUNASA a recorrer
à modalidade de concurso público para a contratação de servidores efetivos,
que acabou sendo realizado no ano de 1996. Por força das leis que regem
o concurso público, os candidatos foram aprovados mediante prova escrita sem
que fosse possível avaliar aspectos como a experiência profissional e as condições
pessoais e a vocação necessárias para as peculiares e complexas características
do trabalho na área Yanomami. As vagas foram parcialmente preenchidas e, por
esta razão, os contratos temporários de 4 anos, que seriam encerrados em 1998,
foram prorrogados por mais um ano.
A coexistência de funcionários
da mesma categoria com regimes de contrato e salários diferentes causaram
esperados conflitos e brechas na legislação foram encontradas para a evasão
da maioria dos profissionais do trabalho na área Yanomami, principalmente
dos servidores concursados.
Finalmente, em 1999, após quase
uma década de DSY, dos 120 servidores concursados e dos 90 funcionários temporários
recrutados, havia apenas cerca de 30 profissionais de saúde trabalhando efetivamente
no campo, onde o descalabro da situação
sanitária Yanomami tinha chegado a proporções catastróficas.
Durante toda a década de 1990 os
Yanomami sofreram, assim, com uma incidência anual média de um caso de malária
para cada dois habitantes, índice considerado gravíssimo pela Organização
Mundial de Saúde, sendo esta doença a principal causa de morte durante
o período. A tuberculose progredia de forma epidêmica e os diagnósticos só
ocorriam nas formas já avançadas da doença. A assistência - precária ou ausente
- das comunidades mais isoladas permitia que muitos óbitos não fossem notificados.
Ainda assim, o Coeficiente de Mortalidade Infantil (CMI) registrado nesse
período atingiu uma média de 160 mortes de crianças menores de um ano para
cada mil nascidos vivos, índice superior às piores regiões do Terceiro Mundo,
e a média do Coeficiente de Mortalidade Geral (22/mil) era quase 4 vezes maior
que a registrada na população brasileira em geral.
Aproximação com as organizações
da sociedade civil
Ainda em 1994, a FUNASA convidou a organização
indigenista Comissão Pró-Yanomami (CCPY, fundada em 1978), que
mantinha um programa de assistência à saúde para cerca de 700 Yanomami, para
desenvolver suas as atividades em parceria com o órgão governamental, através
do uso de recursos financeiros ociosos do Programa de Controle da Malária
na Amazônia (PCMAM). Foi então assinado, no mesmo ano, o primeiro convênio
da FUNASA com uma organização não-governamental para a assistência à saúde
indígena. Todas as metas pactuadas no quadro desta parceria foram atingidas,
proporcionado uma expressiva melhora da saúde da parcela da população Yanomami
atingida pelo programa e um exemplo feliz das potencialidades de parceria
entre o terceiro setor e a administração sanitária governamental.
A experiência bem sucedida do convênio
com a CCPY contrastava, na área Yanomami, com a ineficiência da execução direta
da FUNASA, incapaz de resolver a situação de calamidade epidemiológica nas
áreas Yanomami sob sua responsabilidade. O quadro sanitário lastimável nas
áreas sob execução direta da FUNASA, ampla e regularmente divulgado pela imprensa
nacional e internacional, chegou a despertar uma preocupação mundial quanto
à sobrevivência do Povo Yanomami. O Estado brasileiro, constrangido por esta
péssima publicidade, respondia às denúncias constantes sobre o “genocídio
Yanomami” com a liberação de importantes recursos financeiros que foram
desperdiçados pela FUNASA local (Roraima) num modelo de execução direta de
atendimento à saúde totalmente ineficiente e altamente prejudicado por irregularidades
e desvios financeiros, comprovados em sucessivas auditorias da própria FUNASA.
Em 1998, com o DSY contando
com 210 funcionários (efetivos e temporários), dos quais apenas 30 em média
estavam trabalhando no campo, e frente a uma situação sanitária catastrófica
na Terra Indígena Yanomami, a direção da FUNASA acabou propondo à Comissão
Pró-Yanomami (CCPY) que incluísse em seu próximo convênio a contratação
extra de profissionais de saúde para atuarem efetivamente nas regiões sob
execução direta do órgão governamental.
No entanto, antes mesmo que a CCPY
tomasse uma decisão sobre o assunto, a FUNASA informou que a proposta estava
sendo retirada em função de um parecer do seu departamento jurídico que, categoricamente,
declarou o procedimento ilegal. Segundo o parecer, o repasse de recursos públicos
para entidades privadas sem fins lucrativos com o objetivo de contratação
de pessoal, a serviço de uma política pública executada diretamente pelo Estado,
caracterizaria o que foi chamado de “triangulação”, violando
a legislação que rege a gestão de recursos humanos pelo governo federal.
Baseando-se nesta experiência acumulada
no DSY entre 1990 e 1998 e com a determinação de criar em todo o Brasil os
Distritos Sanitários Especiais Indígenas, o governo federal adotou, no final
de 1999, um modelo de descentralização através de parcerias, preferencialmente
com a sociedade civil organizada e, quando isto não fosse possível, com os
municípios.
A CCPY, assim como outras organizações
da sociedade civil trabalhando na Terra Indígena Yanomami, foi então convidada
insistentemente a ampliar o seu programa de saúde para as áreas do DSY antes
atendidas diretamente pela FUNASA e este desafio foi aceito pela entidade
para tentar acabar com a dizimação dos Yanomami. Membros da CCPY fundaram
então a URIHI-Saúde Yanomami, uma organização criada especificamente
com um perfil mais voltado para a assistência e a educação em saúde. A URIHI
iniciou suas atividades de campo em janeiro de 2000 para cerca de 50
% da população Yanomami residente no Brasil.
Ao longo dos seus 4 anos de atividades,
a URIHI alcançou importantes resultados que comprovaram a possível
eficiência de uma parceria efetiva entre a FUNASA e as organizações não-governamentais.
A incidência de malária nas áreas assistidas pela URIHI foi reduzida em
mais de 99% durante o período e desde 2001 não ocorreu nenhum
óbito por malária. A mortalidade infantil foi reduzida em 65 % e a
tuberculose começou a ser diagnosticada precocemente e sempre que possível
tratada na área indígena. A cobertura vacinal em crianças menores de um ano
atingiu as metas preconizadas pelo Ministério da Saúde e a oncocercose, doença
restrita no país à área yanomami e em relação à qual o Brasil tem um compromisso
internacional pela sua erradicação, está sendo tratada com uma das mais altas
coberturas das Américas. O estado nutricional das crianças menores de 5 anos
é acompanhado mensalmente, identificando a necessidade de intervenção nos
casos de desnutrição. Estas medidas estão permitindo um crescimento
demográfico de cerca de 4% ao ano e as lideranças Yanomami têm reiteradamente
manifestado a sua grande satisfação com a melhora da saúde em suas comunidades
em todas as reuniões dos Conselhos Locais e Distrital de Saúde.
FUNASA e organizações conveniadas: a surdez do
Estado
A partir da reestruturação
ocorrida em 1999, a FUNASA garantiu que as organizações da sociedade civil
convidadas para assinar convênios teriam todo o apoio técnico, político e
administrativo necessários ao desenvolvimento de suas atividades. Entretanto,
apesar desta promessa e dos grandes avanços alcançados no quadro das parcerias,
predominou no cotidiano das relações com as conveniadas uma atitude de hostilidade,
e mesmo de franca oposição, de certos setores da FUNASA, por motivações coorporativas
ou ideológicas e, eventualmente, por interesses econômicos infiltrados na
instituição.
Após as eleições presidenciais
de 2002, o movimento indígena e as organizações indigenistas, esperançosos
com os engajamentos progressistas da campanha eleitoral, se empenharam em
criar um espaço de diálogo ainda com o governo de transição, realizando uma
reunião com o Dr. Humberto Costa, futuro Ministro da Saúde, levando as preocupações
em relação à continuidade da assistência nos DSEIs.
Em abril de 2003, as organizações conveniadas promoveram
um encontro em Manaus que contou com a presença do Dr. Ricardo Chagas, então
assessor (e futuro Diretor) do Departamento de Saúde Indígena
(DESAI) da FUNASA, a fim de buscar soluções para os
problemas relativos à condução das parcerias, destacando a falta de apoio
político, técnico e administrativo na execução dos convênios por parte da
FUNASA até o momento e a omissão do Ministério da Saúde como órgão gestor.
Em
maio de 2003,
as entidades da sociedade civil foram convocadas para um seminário expositivo
em Brasília, cujo tema era a necessária qualificação das conveniadas sob forma
de “Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público” (OSCIPs),
como única forma a ser aceita pelo governo para a continuidade das parcerias.
Em
junho de
2003, uma comissão das organizações da sociedade civil conveniadas, em
audiência requerida junto ao Ministério da Saúde, expôs novamente as preocupações
levantadas na reunião de abril em Manaus para o Secretário Executivo, Dr.
Gastão Wagner. Nesse encontro a comissão tomou conhecimento de que o governo
havia abandonado a proposta das OSCIPs.
Finalmente, em novembro de 2003,
diante das indefinições e da supreendente interrupção do diálogo por parte
do novo governo, as organizações conveniadas tomaram a iniciativa de solicitar
uma nova audiência com o Ministério da Saúde.
Na ocasião, a comissão representante
das associações indígenas e indigenistas entregou ao Secretário Executivo
do Ministério da Saúde o documento “Os Povos Indígenas do Brasil,
através de suas organizações e lideranças, reivindicam que o Ministério da
Saúde assuma de forma direta, integral e definitiva a sua responsabilidade
pela gestão da saúde indígena”.
Esse
documento faz uma análise das sérias deficiências da gestão da FUNASA e de
seu impacto negativo sobre a execução das ações de saúde pelas conveniadas
nos diferentes DSEIs. Neste diagnóstico as organizações não-governamentais
foram, aliás, menos severas que a própria Procuradoria Jurídica da FUNASA
que em parecer de 2003 (501/PGF/FUNASA/GAB/2003) não hesita
em falar de “sucateamento do órgão”.
Em vista deste fato, o documento
das organizações indígenas e indigenistas solicitava ao Ministério da Saúde
que assuma, de fato e diretamente, a gestão da saúde indígena. A comissão
manifestou a sua insatisfação e perplexidade com a falta de interlocução com
o novo governo que, entretanto, inspirou a proposta de criação de um Comitê
Consultivo da Política de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas.
Obteve-se finalmente no encontro
a promessa de que haveria uma Oficina de Trabalho ainda em 2003, com
a presença de todas as organizações e lideranças indígenas que teriam então
a oportunidade de debater os problemas do seu relacionamento com a FUNASA
e influir nas futuras decisões sobre as mudanças que todos achavam necessárias.
A
partir deste encontro, iniciou-se por parte da atual direção do Departamento de Saúde Indígena
(DESAI) da FUNASA uma sistemática campanha de difamação
contra as organizações não-governamentais, imputando indevidamente para estas
todas as responsabilidades das falhas de gestão dos DSEIs em grande parte
devidas à ineficiência do próprio órgão governamental. Esta campanha culminou
com as declarações do Dr. Ricardo Chagas (Diretor do DESAI) à Folha de São
Paulo (20/10/2003) de que as entidades conveniadas constituem “um
poder paralelo que transgride a lei” e o adiamento intempestivo
da Oficina de Trabalho para fevereiro de 2004.
Neste
meio tempo foram divulgadas as Portarias Nº 69 e 70 determinando
as novas diretrizes da atenção à saúde indígena e, só então, realizou-se a
I Oficina Integrada da Saúde Indígena, nas condições antidemocráticas descritas
no início deste documento.
O “novo modelo”: uma
amnésica “reforma da reforma”?
A política de descentralização,
através de parcerias com entidades da sociedade civil organizada, que deu
origem à implantação dos DSEIs em todo o Brasil a partir de 1999, não foi
concebida, na época, em bases ideológicas.
Esta política, ao contrário, foi
fundamentada em experiências concretas de gestão de saúde pública específicas
conduzidas durante toda a década de 1990 no Distrito Sanitário Yanomami, que,
assim, constitui-se em experiência pioneira, às custas de muito sofrimento
humano e de pesados investimentos de recursos públicos.
Os obstáculos para uma gestão eficiente
de recursos humanos pelo Estado, nas peculiares e, muitas vezes, penosas condições
de trabalho nas áreas indígenas, pesaram na opção pelas parcerias não-governamentais
na reforma de 1999. Porém, isto não foi o único fator. A experiência social,
política e cultural das organizações indígenas e indigenistas no trato da
especificidade das questões de saúde indígena foram igualmente decisivas para
a criação, em cada distrito, de um sistema diferenciado de atenção básica
à saúde.
Ao
contrário do que vem sendo divulgado por razões corporativistas e ideológicas
pelo Departamento de Saúde Indígena
(DESAI) da FUNASA nos últimos meses, ainda que pesem
as dificuldades na condução de alguns distritos, o grande avanço em geral
na assistência e na qualidade da saúde dos índios nos últimos quatro anos
é absolutamente inegável.
A responsabilidade por falhas ocorridas
em certos distritos e com algumas organizações conveniadas dotadas de estruturas
administrativas ainda frágeis deve ser imputada antes de tudo à própria incompetência
da FUNASA, pelo não cumprimento de sua obrigação e compromisso em oferecer
o apoio técnico e administrativo prometido no início às conveniadas, acompanhando
o dia a dia dos convênios. Ao contrário, a omissão, e mesmo a oposição deliberada
ao modelo da reforma de 1999, foram o fio de condução de certos setores da
FUNASA.
Assim,
é motivo de perplexidade que, sob o pretexto de se ajustar à legalidade, a
FUNASA queira assumir, daqui a menos de 2 meses (01/04/04), a execução direta
das ações de saúde nos DSEIs, sem ter tido a responsabilidade de resolver,
de fato, o principal problema que é encontrar uma forma viável de contratação de pessoal.
Esta perplexidade torna-se extrema preocupação quando se lê o diagnóstico
sobre o estado do órgão de acordo com sua própria Procuradoria Jurídica (parecer
citado acima):
“... a FUNASA,
em face do sucateamento do órgão, não dispõe de quadros suficientes para exercer
a mínima ação de controle das atividades” (...) “caso a entidade
privada paralise as atividades, a FUNASA não tem como contratar diretamente
o pessoal e nem dispõe de estrutura logística para atender à população.”
Em vez de prover-se com novos meios
concretos e eficientes de conduzir sua reforma, tirando lições das experiências
passadas da instituição no que tange à execução direta da saúde indígena,
a direção atual da FUNASA – atingida de aparente amnésia social - propõe
hoje às organizações conveniadas um suposto “novo modelo” que,
à luz da história do DSY, não passa de uma mera regressão.
De
fato, a proposta de que as ONGs façam contratações de recursos humanos não
é mais do que a reedição de
uma antiga proposta da FUNASA de um procedimento administrativo de gestão
de recursos humanos já denunciado pela sua ilegalidade pelo Departamento Jurídico
do próprio órgão em 1998. Tal dispositivo de “triangulação”,
reduzindo as entidades da sociedade civil a meros departamentos “laranja”
de recursos humanos da FUNASA, para contornar a legislação relativa à contratação
no setor público, é tão inaceitável pelo Estado quanto pelas organizações
não-governamentais.
Por último, é preciso frisar a condução
antidemocrática e desleal da política de saúde indígena pela atual direção
da FUNASA, tão pouco condizente com as esperanças levantadas pela eleição
do Governo Lula. As organizações não-governamentais foram insistentemente
convidadas em 1999 pela FUNASA a colaborar na criação de um sistema de saúde
inovador, descentralizado e participativo para os povos indígenas. As organizações
aceitaram este desafio e, sem o prometido apoio administrativo e submetidas
a constantes resistências políticas locais, enfrentaram o caos sanitário que
há anos imperava na maioria das terras indígenas. Hoje, a FUNASA finge esquecer
este contexto, opta pelo congelamento do diálogo democrático com a sociedade
civil organizada e deslancha uma campanha de difamação de suas organizações,
procurando enfraquecer a sua legitimidade. Finalmente, num exercício de centralismo
burocrático arcaico, tenta impor mudanças desprovidas de perspectiva histórica,
de competência técnico-gerencial e do devido respaldo da legislação em vigor.
Para concluir, o que está na verdade
em questão hoje na crise da saúde indígena que a atual direção da FUNASA e
do DESAI assumiram a pesada responsabilidade de abrir, não é a questão teórico-burocrática
de discutir se o Estado deve voltar a uma execução direta da assistência à
saúde indígena em maior ou menor grau. A questão crucial que permanece é se
o poder público será efetivamente capaz, qualquer que seja o modelo da sua
intervenção, de assumir efetivamente sua obrigação de providenciar com responsabilidade
os meios necessários para oferecer aos povos indígenas uma assistência de
boa qualidade.
Como deixa claro a situação exposta
neste documento, as organizações não-governamentais vêem-se impossibilitadas
de participar do sistema público de atendimento à saúde indígena pela impropriedade
administrativa, jurídica e política dos termos da “reforma da reforma”
proposta pela
atual direção da FUNASA e do seu Departamento de Saúde Indígena (DESAI).
Face
a este lamentável e inesperado retrocesso no indigenismo brasileiro, a
URIHI informa à opinião pública que, após quatro anos de corajoso e
dedicado trabalho dos seus funcionários e depois de ter alcançado uma expressiva melhora na situação
de saúde dos Yanomami, se vê na obrigação de em breve interromper a parceria com a FUNASA e, portanto,
o seu trabalho de assistência à saúde na Terra Indígena Yanomami.
Entretanto, preocupada em primeiro
lugar com a saúde dos Yanomami, a URIHI se esforçará, na medida do possível,
em negociar com a FUNASA uma forma de transição que mantenha a qualidade
da assistência no Distrito Sanitário Yanomami até que o órgão público retome
efetivamente a responsabilidade pela execução direta da assistência sanitária
nesse distrito, conforme as suas novas diretrizes.
Hoje o futuro do atendimento à
saúde dos povos indígenas do Brasil é, no mínimo, incerto. A Urihi
permanecerá atenta frente às ações e resultados do “novo modelo”
e crítica ante uma eventual degradação da saúde dos Yanomami, coerente com
a sua missão de apoiar os Yanomami na defesa de seus direitos.
Boa Vista – RR, 16 de fevereiro de 2004.
URIHI-Saúde Yanomami