Saúde
Yanomami: "novo modelo" ou retrocesso ?
Com
centralismo burocrático e memória curta, a Fundação
Nacional de Saúde (FUNASA), através de reforma precipitada
e mal concebida, desestabiliza o Distrito Sanitário Yanomami
que tinha se consolidado, desde a reforma da saúde indígena
de 1999, como um modelo de assistência eficiente.
Diante deste quadro, a organização não-governamental
URIHI, responsável pelo atendimento a 53% da população
Yanomami no Brasil (Roraima e Amazonas) encontra-se na obrigação
de encerrar sua parceria com a FUNASA.
Diante
do fato consumado: o “novo modelo” de gestão da saúde
indígena, foi recentemente organizada em Brasília (dias
02 e 06 de fevereiro de 2004) a Primeira Oficina Integrada da Saúde
Indígena, durante a qual a FUNASA e o Ministério da Saúde
anunciaram e explicaram suas novas diretrizes para a saúde indígena,
editadas anteriormente em duas Portarias de 20 de janeiro de 2004 (N°
69 e 70).
Do dia 02 ao dia 04 a Oficina contou apenas com técnicos do governo
para a ratificação das mudanças no quadro da reforma
da saúde indígena de 1999 e as organizações
não-governamentais e lideranças indígenas foram
convocadas apenas nos últimos dois dias do encontro, para meramente
tomar conhecimento do “novo modelo” e, eventualmente, manifestar
as suas opiniões no tempo limitado reservado ao final das palestras.
O breve encontro com as organizações conveniadas foi aberto
com o discurso do Secretário Executivo do Ministério da
Saúde, Gastão Wagner S. Campos, garantindo a prioridade
do governo para a saúde indígena, o fortalecimento da
capacidade gestora do Estado, a criação de um Comitê
Consultivo da Política de Atenção à Saúde
dos Povos Indígenas e anunciando, ainda, o aumento de 30% no
orçamento de 2004 para a assistência às populações
indígenas. Em seguida, o presidente da FUNASA, Dr. Valdi Camarcio
Bezerra, enfatizou a importância da saúde indígena
e da necessidade de mudanças uma vez que, segundo ele, governo
e sociedade não estão satisfeitos com a situação
atual, em que organizações indígenas, organizações
indigenistas e alguns municípios conveniados executam juntos
quase a totalidade das ações de saúde nos 34 Distritos
de Saúde Especiais Indígenas (DSEIs) da FUNASA.
No mesmo dia, representantes da FUNASA evocaram análises jurídicas
relativas às responsabilidades do Estado na gestão e na
execução da atenção à saúde
para os povos indígenas, concluindo que a participação
das organizações conveniadas na execução
só poderá ser “complementar”, ainda que a
natureza de tal “complementaridade” não tenha nenhuma
definição na legislação vigente.
O dia final do encontro ficou reservado para a comunicação
às conveniadas das atribuições do Ministério
da Saúde e da FUNASA na gestão e execução
das atividades, bem como da possível ação “complementar”
reservada às organizações indígenas e indigenistas
e aos municípios:
“ - contratação de pessoal
- atenção nas aldeias com insumos
- deslocamento de índios da aldeia
- combustível para o deslocamento das aldeias “
A
saga das reformas da saúde indígena (1967-1999)
A fim de melhor entender o modelo vigente de gestão da saúde
indígena e o contexto no qual se integra o “novo modelo”
imposto pela FUNASA a partir do dia 1 de abril de 2004, é preciso
aqui relembrar a cronologia dos modelos de gestão da saúde
indígena no pais até a chamada “Reestruturação
da Saúde Indígena” de 1999 e a caótica história
institucional do Distrito Sanitário Yanomami (DSY), primeiro
distrito sanitário implementado no pais em 1991.
1967 – Criação da Fundação
Nacional do Índio (FUNAI). Ações de saúde
esporádicas através das equipes volantes criadas em cada
Delegacia regional da FUNAI. O Ministério da Saúde colaborava
com o controle das principais endemias e a FUNAI assinou, ao longo dos
anos, convênios com entidades governamentais e não governamentais
de modo a remediar a falta de estrutura adequada. No entanto, em escala
e capacidades operacional e administrativa insuficientes, esta atividade
foi se atrofiando até a sua paralisação.
1986 – I Conferência Nacional
de Proteção à Saúde do Índio. Afirmou:
a) a necessidade urgente de implantação de um modelo de
atenção que garanta aos índios o direito universal
e integral à saúde; b) a importância de respeitar
as especificidades étnicas e sócio-culturais e as práticas
terapêuticas de cada grupo; c) a necessidade de garantir a participação
indígena nas políticas de saúde; d) e a criação
de uma agência de saúde específica para assuntos
indígenas. Primeira proposição do modelo dos Distritos
Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) sob a gerência
do Ministério da Saúde.
1988 - Promulgação da Constituição
Federal que estabeleceu em seu artigo 198 as regras gerais do Sistema
Único de Saúde/SUS (regulamentado pelas leis n° 8.142/90
e 8.080/90): No âmbito da União, a gestão será
exercida pelo Ministério da Saúde. Os direitos indígenas
são de competência federal.
1991 – Criação da Coordenação
da Saúde do Índio (COSAI), subordinada ao Departamento
de Operações da Fundação Nacional de Saúde
(DEOPE/FNS) para atender ao Decreto nº 23/91 que transfere da FUNAI
para o Ministério da Saúde (MS) a responsabilidade pela
coordenação das ações de saúde para
as populações indígenas. Criação
do Distrito Sanitário Yanomami pela FNS.
1992 – Criação da Comissão
Intersetorial de Saúde do Índio (CISI) pela Resolução
n° 11 de 13/10/1992. A CISI, formada por representantes do Governo
Federal (Ministérios da Saúde e da Justiça), de
Universidades e de organizações não-governamentais
(ONGs) e por representantes indígenas, tem por atribuição
assessorar o Conselho Nacional de Saúde/CNS na elaboração
de princípios e diretrizes de políticas governamentais
no campo da saúde indígena.
1993
– II Conferência Nacional de Saúde
para os Povos Indígenas: reitera a defesa do modelo dos DSEIs
como base operacional, no nível do SUS, para o modelo de atenção
à saúde das populações indígenas,
os quais deveriam ser ligados diretamente ao MS e administrados por
Conselhos de Saúde com participação indígena.
Definiu o Governo Federal como instância responsável pela
saúde indígena do país, não sendo excluídas
as contribuições complementares dos estados, dos municípios
ou de outras instituições governamentais ou não
governamentais. Defende a criação de uma secretaria especial
do MS para a gestão da política de atenção
à saúde para os povos indígenas.
1994
– Decreto nº 1.141/94. Revoga o Decreto n° 23/1991. Constitui
a Comissão Intersetorial de Saúde e devolve, na prática,
a coordenação da saúde indígena para a FUNAI,
que fica responsável pela recuperação dos índios
doentes enquanto o MS se encarrega das ações de prevenção.
1999 – Decreto nº 3156/99 e “Lei Arouca”
(n° 9.836). A saúde volta a ficar a cargo do MS: “O
Ministério da Saúde estabelecerá as políticas
e diretrizes para a promoção, prevenção
e recuperação da saúde do índio, cujas ações
serão executadas pela FUNASA.”
Lições
esquecidas: a história do Distrito Sanitário Yanomami
(1990-2003)
A partir de 1999 a saúde indígena ascende ao nível
de departamento na FUNASA que inicia uma nova política sob o
rótulo de “Reestruturação da Saúde
Indígena”. São, nesse contexto, definidos e implantados
34 DSEIs em todo Brasil, cujos serviços de atenção
básica à saúde e prevenção são
executados através da estratégia de descentralização
via convênios firmados com organizações da sociedade
civil - associações indígenas e indigenistas -
e alguns municípios.
As justificativas da reforma de 1999 foram em grande parte fundamentadas
na experiência pioneira do Distrito Sanitário Yanomami
(DSY), criado pela FUNASA (então FNS) em 1991, e, particularmente,
na questão crucial da gestão de recursos humanos para
atuarem no campo nas condições operacionais extremamente
difíceis que caracterizam a Terra Indígena Yanomami.
Assim,
a fim de enfrentar a grave situação dos Yanomami, ameaçados
de extinção pela situação epidemiológica
desastrosa deixada nas suas terras pela invasão garimpeira do
fim dos anos oitenta, a FUNASA experimentou no DSY, de 1991 a 1998,
todas as formas possíveis de contratação de pessoal
de saúde, sem resultados satisfatórios.
O
fracasso da execução direta
Em 1990 e 1991 a FUNASA começou a sua intervenção
direta na Terra Indígena Yanomami contratando profissionais de
saúde pagos como “colaboradores eventuais” em campanhas
emergenciais.
Em 1992, em caráter de urgência, foi realizado o primeiro
processo seletivo simplificado para a contratação temporária
por um período de 6 meses. Ao final dos contratos o expediente
foi utilizado por mais duas vezes até o final de 1993. O curto
período das contratações gerava previsíveis
problemas operacionais e administrativos, além da interrupção
da assistência entre o fim dos contratos e o começo dos
novos.
Por este motivo, a FUNASA optou por um novo processo seletivo simplificado
em fins de 1994, desta vez para contratos de 4 anos.
A precariedade da situação trabalhista, a insuficiência
do quadro de pessoal e suas conseqüências negativas sobre
a qualidade da assistência sanitária aos Yanomami levaram
a FUNASA a recorrer à modalidade de concurso público para
a contratação de servidores efetivos, que acabou sendo
realizado no ano de 1996.
Por
força das leis que regem o concurso público, os candidatos
foram aprovados mediante prova escrita sem que fosse possível
avaliar aspectos como a experiência profissional e as condições
pessoais e a vocação necessárias para as peculiares
e complexas características do trabalho na área Yanomami.
As vagas foram parcialmente preenchidas e, por esta razão, os
contratos temporários de 4 anos, que seriam encerrados em 1998,
foram prorrogados por mais um ano.
A coexistência de funcionários da mesma categoria com regimes
de contrato e salários diferentes causaram esperados conflitos
e brechas na legislação foram encontradas para a evasão
da maioria dos profissionais do trabalho na área Yanomami, principalmente
dos servidores concursados.
Finalmente, em 1999, após quase uma década de DSY, dos
120 servidores concursados e dos 90 funcionários temporários
recrutados, havia apenas cerca de 30 profissionais de saúde trabalhando
efetivamente no campo, onde o descalabro da situação sanitária
Yanomami tinha chegado a proporções catastróficas.
Durante toda a década de 1990 os Yanomami sofreram, assim, com
uma incidência anual média de um caso de malária
para cada dois habitantes, índice considerado gravíssimo
pela Organização Mundial de Saúde, sendo esta doença
a principal causa de morte durante o período. A tuberculose progredia
de forma epidêmica e os diagnósticos só ocorriam
nas formas já avançadas da doença.
A assistência - precária ou ausente - das comunidades mais
isoladas permitia que muitos óbitos não fossem notificados.
Ainda assim, o Coeficiente de Mortalidade Infantil (CMI) registrado
nesse período atingiu uma média de 160 mortes de crianças
menores de um ano para cada mil nascidos vivos, índice superior
às piores regiões do Terceiro Mundo , e a média
do Coeficiente de Mortalidade Geral (22/mil) era quase 4 vezes maior
que a registrada na população brasileira em geral.
Aproximação
com as organizações da sociedade civil
Ainda em 1994, a FUNASA convidou a organização indigenista
Comissão Pró-Yanomami (CCPY, fundada em 1978), que mantinha
um programa de assistência à saúde para cerca de
700 Yanomami, para desenvolver suas as atividades em parceria com o
órgão governamental, através do uso de recursos
financeiros ociosos do Programa de Controle da Malária na Amazônia
(PCMAM).
Foi
então assinado, no mesmo ano, o primeiro convênio da FUNASA
com uma organização não-governamental para a assistência
à saúde indígena. Todas as metas pactuadas no quadro
desta parceria foram atingidas, proporcionado uma expressiva melhora
da saúde da parcela da população Yanomami atingida
pelo programa e um exemplo feliz das potencialidades de parceria entre
o terceiro setor e a administração sanitária governamental.
A experiência bem sucedida do convênio com a CCPY contrastava,
na área Yanomami, com a ineficiência da execução
direta da FUNASA, incapaz de resolver a situação de calamidade
epidemiológica nas áreas Yanomami sob sua responsabilidade.
O quadro sanitário lastimável nas áreas sob execução
direta da FUNASA, ampla e regularmente divulgado pela imprensa nacional
e internacional, chegou a despertar uma preocupação mundial
quanto à sobrevivência do Povo Yanomami. O Estado brasileiro,
constrangido por esta péssima publicidade, respondia às
denúncias constantes sobre o “genocídio Yanomami”
com a liberação de importantes recursos financeiros que
foram desperdiçados pela FUNASA local (Roraima) num modelo de
execução direta de atendimento à saúde totalmente
ineficiente e altamente prejudicado por irregularidades e desvios financeiros,
comprovados em sucessivas auditorias da própria FUNASA.
Em 1998, com o DSY contando com 210 funcionários (efetivos e
temporários), dos quais apenas 30 em média estavam trabalhando
no campo, e frente a uma situação sanitária catastrófica
na Terra Indígena Yanomami, a direção da FUNASA
acabou propondo à Comissão Pró-Yanomami (CCPY)
que incluísse em seu próximo convênio a contratação
extra de profissionais de saúde para atuarem efetivamente nas
regiões sob execução direta do órgão
governamental.
No entanto, antes mesmo que a CCPY tomasse uma decisão sobre
o assunto, a FUNASA informou que a proposta estava sendo retirada em
função de um parecer do seu departamento jurídico
que, categoricamente, declarou o procedimento ilegal. Segundo o parecer,
o repasse de recursos públicos para entidades privadas sem fins
lucrativos com o objetivo de contratação de pessoal, a
serviço de uma política pública executada diretamente
pelo Estado, caracterizaria o que foi chamado de “triangulação”,
violando a legislação que rege a gestão de recursos
humanos pelo governo federal.
Baseando-se nesta experiência acumulada no DSY entre 1990 e 1998
e com a determinação de criar em todo o Brasil os Distritos
Sanitários Especiais Indígenas, o governo federal adotou,
no final de 1999, um modelo de descentralização através
de parcerias, preferencialmente com a sociedade civil organizada e,
quando isto não fosse possível, com os municípios.
A CCPY, assim como outras organizações da sociedade civil
trabalhando na Terra Indígena Yanomami, foi então convidada
insistentemente a ampliar o seu programa de saúde para as áreas
do DSY antes atendidas diretamente pela FUNASA e este desafio foi aceito
pela entidade para tentar acabar com a dizimação dos Yanomami.
Membros da CCPY fundaram então a URIHI-Saúde Yanomami,
uma organização criada especificamente com um perfil mais
voltado para a assistência e a educação em saúde.
A URIHI iniciou suas atividades de campo em janeiro de 2000 para cerca
de 50 % da população Yanomami residente no Brasil.
Ao longo dos seus 4 anos de atividades, a URIHI alcançou importantes
resultados que comprovaram a possível eficiência de uma
parceria efetiva entre a FUNASA e as organizações não-governamentais.
A incidência de malária nas áreas assistidas pela
URIHI foi reduzida em mais de 99% durante o período e desde 2001
não ocorreu nenhum óbito por malária. A mortalidade
infantil foi reduzida em 65 % e a tuberculose começou a ser diagnosticada
precocemente e sempre que possível tratada na área indígena.
A
cobertura vacinal em crianças menores de um ano atingiu as metas
preconizadas pelo Ministério da Saúde e a oncocercose,
doença restrita no país à área yanomami
e em relação à qual o Brasil tem um compromisso
internacional pela sua erradicação, está sendo
tratada com uma das mais altas coberturas das Américas. O estado
nutricional das crianças menores de 5 anos é acompanhado
mensalmente, identificando a necessidade de intervenção
nos casos de desnutrição. Estas medidas estão permitindo
um crescimento demográfico de cerca de 4% ao ano e as lideranças
Yanomami têm reiteradamente manifestado a sua grande satisfação
com a melhora da saúde em suas comunidades em todas as reuniões
dos Conselhos Locais e Distrital de Saúde.
FUNASA
e organizações conveniadas: a surdez do Estado
A partir da reestruturação ocorrida em 1999, a FUNASA
garantiu que as organizações da sociedade civil convidadas
para assinar convênios teriam todo o apoio técnico, político
e administrativo necessários ao desenvolvimento de suas atividades.
Entretanto, apesar desta promessa e dos grandes avanços alcançados
no quadro das parcerias, predominou no cotidiano das relações
com as conveniadas uma atitude de hostilidade, e mesmo de franca oposição,
de certos setores da FUNASA, por motivações coorporativas
ou ideológicas e, eventualmente, por interesses econômicos
infiltrados na instituição.
Após as eleições presidenciais de 2002, o movimento
indígena e as organizações indigenistas, esperançosos
com os engajamentos progressistas da campanha eleitoral, se empenharam
em criar um espaço de diálogo ainda com o governo de transição,
realizando uma reunião com o Dr. Humberto Costa, futuro Ministro
da Saúde, levando as preocupações em relação
à continuidade da assistência nos DSEIs.
Em abril de 2003, as organizações conveniadas promoveram
um encontro em Manaus que contou com a presença do Dr. Ricardo
Chagas, então assessor (e futuro Diretor) do Departamento de
Saúde Indígena (DESAI) da FUNASA, a fim de buscar soluções
para os problemas relativos à condução das parcerias,
destacando a falta de apoio político, técnico e administrativo
na execução dos convênios por parte da FUNASA até
o momento e a omissão do Ministério da Saúde como
órgão gestor.
Em maio de 2003, as entidades da sociedade civil foram convocadas para
um seminário expositivo em Brasília, cujo tema era a necessária
qualificação das conveniadas sob forma de “Organizações
da Sociedade Civil de Interesse Público” (OSCIPs), como
única forma a ser aceita pelo governo para a continuidade das
parcerias.
Em junho de 2003, uma comissão das organizações
da sociedade civil conveniadas, em audiência requerida junto ao
Ministério da Saúde, expôs novamente as preocupações
levantadas na reunião de abril em Manaus para o Secretário
Executivo, Dr. Gastão Wagner. Nesse encontro a comissão
tomou conhecimento de que o governo havia abandonado a proposta das
OSCIPs.
Finalmente, em novembro de 2003, diante das indefinições
e da supreendente interrupção do diálogo por parte
do novo governo, as organizações conveniadas tomaram a
iniciativa de solicitar uma nova audiência com o Ministério
da Saúde.
Na ocasião, a comissão representante das associações
indígenas e indigenistas entregou ao Secretário Executivo
do Ministério da Saúde o documento “Os Povos Indígenas
do Brasil, através de suas organizações e lideranças,
reivindicam que o Ministério da Saúde assuma de forma
direta, integral e definitiva a sua responsabilidade pela gestão
da saúde indígena”.
Esse documento faz uma análise das sérias deficiências
da gestão da FUNASA e de seu impacto negativo sobre a execução
das ações de saúde pelas conveniadas nos diferentes
DSEIs. Neste diagnóstico as organizações não-governamentais
foram, aliás, menos severas que a própria Procuradoria
Jurídica da FUNASA que em parecer de 2003 (501/PGF/FUNASA/GAB/2003)
não hesita em falar de “sucateamento do órgão”.
Em vista deste fato, o documento das organizações indígenas
e indigenistas solicitava ao Ministério da Saúde que assuma,
de fato e diretamente, a gestão da saúde indígena.
A comissão manifestou a sua insatisfação e perplexidade
com a falta de interlocução com o novo governo que, entretanto,
inspirou a proposta de criação de um Comitê Consultivo
da Política de Atenção à Saúde dos
Povos Indígenas.
Obteve-se finalmente no encontro a promessa de que haveria uma Oficina
de Trabalho ainda em 2003, com a presença de todas as organizações
e lideranças indígenas que teriam então a oportunidade
de debater os problemas do seu relacionamento com a FUNASA e influir
nas futuras decisões sobre as mudanças que todos achavam
necessárias.
A partir deste encontro, iniciou-se por parte da atual direção
do Departamento de Saúde Indígena (DESAI) da FUNASA uma
sistemática campanha de difamação contra as organizações
não-governamentais, imputando indevidamente para estas todas
as responsabilidades das falhas de gestão dos DSEIs em grande
parte devidas à ineficiência do próprio órgão
governamental. Esta campanha culminou com as declarações
do Dr. Ricardo Chagas (Diretor do DESAI) à Folha de São
Paulo (20/10/2003) de que as entidades conveniadas constituem “um
poder paralelo que transgride a lei” e o adiamento intempestivo
da Oficina de Trabalho para fevereiro de 2004.
Neste meio tempo foram divulgadas as Portarias Nº 69 e 70 determinando
as novas diretrizes da atenção à saúde indígena
e, só então, realizou-se a I Oficina Integrada da Saúde
Indígena, nas condições antidemocráticas
descritas no início deste documento.
O “novo modelo”: uma amnésica “reforma
da reforma”?
A política de descentralização, através
de parcerias com entidades da sociedade civil organizada, que deu origem
à implantação dos DSEIs em todo o Brasil a partir
de 1999, não foi concebida, na época, em bases ideológicas.
Esta política, ao contrário, foi fundamentada em experiências
concretas de gestão de saúde pública específicas
conduzidas durante toda a década de 1990 no Distrito Sanitário
Yanomami, que, assim, constitui-se em experiência pioneira, às
custas de muito sofrimento humano e de pesados investimentos de recursos
públicos.
Os obstáculos para uma gestão eficiente de recursos humanos
pelo Estado, nas peculiares e, muitas vezes, penosas condições
de trabalho nas áreas indígenas, pesaram na opção
pelas parcerias não-governamentais na reforma de 1999. Porém,
isto não foi o único fator. A experiência social,
política e cultural das organizações indígenas
e indigenistas no trato da especificidade das questões de saúde
indígena foram igualmente decisivas para a criação,
em cada distrito, de um sistema diferenciado de atenção
básica à saúde.
Ao contrário do que vem sendo divulgado por razões corporativistas
e ideológicas pelo Departamento de Saúde Indígena
(DESAI) da FUNASA nos últimos meses, ainda que pesem as dificuldades
na condução de alguns distritos, o grande avanço
em geral na assistência e na qualidade da saúde dos índios
nos últimos quatro anos é absolutamente inegável.
A responsabilidade por falhas ocorridas em certos distritos e com algumas
organizações conveniadas dotadas de estruturas administrativas
ainda frágeis deve ser imputada antes de tudo à própria
incompetência da FUNASA, pelo não cumprimento de sua obrigação
e compromisso em oferecer o apoio técnico e administrativo prometido
no início às conveniadas, acompanhando o dia a dia dos
convênios. Ao contrário, a omissão, e mesmo a oposição
deliberada ao modelo da reforma de 1999, foram o fio de condução
de certos setores da FUNASA.
Assim, é motivo de perplexidade que, sob o pretexto de se ajustar
à legalidade, a FUNASA queira assumir, daqui a menos de 2 meses
(01/04/04), a execução direta das ações
de saúde nos DSEIs, sem ter tido a responsabilidade de resolver,
de fato, o principal problema que é encontrar uma forma viável
de contratação de pessoal. Esta perplexidade torna-se
extrema preocupação quando se lê o diagnóstico
sobre o estado do órgão de acordo com sua própria
Procuradoria Jurídica (parecer citado acima):
“... a FUNASA, em face do sucateamento do órgão,
não dispõe de quadros suficientes para exercer a mínima
ação de controle das atividades” (...) “caso
a entidade privada paralise as atividades, a FUNASA não tem como
contratar diretamente o pessoal e nem dispõe de estrutura logística
para atender à população.”
Em vez de prover-se com novos meios concretos e eficientes de conduzir
sua reforma, tirando lições das experiências passadas
da instituição no que tange à execução
direta da saúde indígena, a direção atual
da FUNASA – atingida de aparente amnésia social - propõe
hoje às organizações conveniadas um suposto “novo
modelo” que, à luz da história do DSY, não
passa de uma mera regressão.
De fato, a proposta de que as ONGs façam contratações
de recursos humanos não é mais do que a reedição
de uma antiga proposta da FUNASA de um procedimento administrativo de
gestão de recursos humanos já denunciado pela sua ilegalidade
pelo Departamento Jurídico do próprio órgão
em 1998. Tal dispositivo de “triangulação”,
reduzindo as entidades da sociedade civil a meros departamentos “laranja”
de recursos humanos da FUNASA, para contornar a legislação
relativa à contratação no setor público,
é tão inaceitável pelo Estado quanto pelas organizações
não-governamentais.
Por último, é preciso frisar a condução
antidemocrática e desleal da política de saúde
indígena pela atual direção da FUNASA, tão
pouco condizente com as esperanças levantadas pela eleição
do Governo Lula. As organizações não-governamentais
foram insistentemente convidadas em 1999 pela FUNASA a colaborar na
criação de um sistema de saúde inovador, descentralizado
e participativo para os povos indígenas. As organizações
aceitaram este desafio e, sem o prometido apoio administrativo e submetidas
a constantes resistências políticas locais, enfrentaram
o caos sanitário que há anos imperava na maioria das terras
indígenas. Hoje, a FUNASA finge esquecer este contexto, opta
pelo congelamento do diálogo democrático com a sociedade
civil organizada e deslancha uma campanha de difamação
de suas organizações, procurando enfraquecer a sua legitimidade.
Finalmente, num exercício de centralismo burocrático arcaico,
tenta impor mudanças desprovidas de perspectiva histórica,
de competência técnico-gerencial e do devido respaldo da
legislação em vigor.
Para concluir, o que está na verdade em questão hoje na
crise da saúde indígena que a atual direção
da FUNASA e do DESAI assumiram a pesada responsabilidade de abrir, não
é a questão teórico-burocrática de discutir
se o Estado deve voltar a uma execução direta da assistência
à saúde indígena em maior ou menor grau. A questão
crucial que permanece é se o poder público será
efetivamente capaz, qualquer que seja o modelo da sua intervenção,
de assumir efetivamente sua obrigação de providenciar
com responsabilidade os meios necessários para oferecer aos povos
indígenas uma assistência de boa qualidade.
Como deixa claro a situação exposta neste documento, as
organizações não-governamentais vêem-se impossibilitadas
de participar do sistema público de atendimento à saúde
indígena pela impropriedade administrativa, jurídica e
política dos termos da “reforma da reforma” proposta
pela atual direção da FUNASA e do seu Departamento de
Saúde Indígena (DESAI).
Face a este lamentável e inesperado retrocesso no indigenismo
brasileiro, a URIHI informa à opinião pública que,
após quatro anos de corajoso e dedicado trabalho dos seus funcionários
e depois de ter alcançado uma expressiva melhora na situação
de saúde dos Yanomami, se vê na obrigação
de em breve interromper a parceria com a FUNASA e, portanto, o seu trabalho
de assistência à saúde na Terra Indígena
Yanomami.
Entretanto, preocupada em primeiro lugar com a saúde dos Yanomami,
a URIHI se esforçará, na medida do possível, em
negociar com a FUNASA uma forma de transição que mantenha
a qualidade da assistência no Distrito Sanitário Yanomami
até que o órgão público retome efetivamente
a responsabilidade pela execução direta da assistência
sanitária nesse distrito, conforme as suas novas diretrizes.
Hoje o futuro do atendimento à saúde dos povos indígenas
do Brasil é, no mínimo, incerto. A Urihi permanecerá
atenta frente às ações e resultados do “novo
modelo” e crítica ante uma eventual degradação
da saúde dos Yanomami, coerente com a sua missão de apoiar
os Yanomami na defesa de seus direitos.