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Reforma
e contra-reforma
Do
fim dos anos 80 até o fim dos anos 90 os índios Yanomami foram
assolados por uma terrível epidemia de malária introduzida pela
invasão de suas terras por milhares de garimpeiros oriundos dos quatros
cantos da Amazônia. A dramática situação dos Yanomami,
dizimados por esta epidemia - 1.600 índios morreram da doença
no período -, ocupou regularmente as manchetes da imprensa nacional e
internacional durante uma década. Consideráveis somas de dinheiro
público foram investidas para controlar o desastre. Entretanto, os órgãos
públicos (a FUNAI e, depois, a Fundação Nacional de Saúde
– então FNS) se mostraram incapazes de solucionar o problema.
Durante
uma década, a malária passou a ser a principal causa de morte
entre os Yanomami, contribuindo também para a elevação
das mortes por outras doenças, por seu poder de enfraquecer os indivíduos
infectados e de reduzir a capacidade das comunidades de realizar suas atividades
de subsistência.
A
partir do fim de 1999 foi implementada no país uma reforma visando à
gestão descentralizada da saúde indígena com a efetiva
participação das organizações indígenas e
das instituições não-governamentais de notória competência
no assunto. Foi então realizado na terra Yanomami um mapeamento sistemático
das áreas mais vulneráveis à infestação malárica,
organizado um rigoroso e permanente sistema de vigilância epidemiológica
no campo e estabelecida uma rede bem estruturada de assistência com amplo
envolvimento dos Yanomami e de suas lideranças. Estas medidas, que vigoraram
até julho de 2004, permitiram praticamente debelar a incidência
de malária na maioria das regiões da área yanomami.
Em
2004, o Governo atual achou por bem cancelar autoritariamente a reforma anterior
e, assim, novamente concentrar nas Coordenações Regionais da FUNASA
a gestão de insumos essenciais às atividades de assistência
em saúde nas áreas indígenas e reduzir a participação
do setor não-governamental competente à mera contratação
de recursos humanos (Portaria 70 de 20 de Janeiro de 2004).
De
volta ao caos
Esta
volta do centralismo burocrático e do acesso das forças políticas
locais ao orçamento da saúde indígena foi o ponta-pé
inicial para um rápido retrocesso da saúde Yanomami à calamitosa
situação dos anos 90. Sem preparo mínimo para assumir a
gestão direta da saúde Yanomami, a FUNASA desmontou a fórmula
bem sucedida do Distrito Sanitário Yanomami (DSY) de janeiro de 2000
a julho de 2004, implementando no seu lugar uma estrutura altamente burocrática,
perdulária e ineficiente, rapidamente loteada por indicações
de políticos locais e alvo de suspeitas de graves irregularidades - a
ponto de ter sua gestão atualmente analisada pelo TCU a pedido do Ministério
Público (Folha de Boa Vista, 20/02/06; Agência Estado Belém,
20/02/06).
Ao
longo do segundo semestre de 2004 e do ano 2005 os gastos do DSY cresceram vertiginosamente
atingindo um gasto mensal que atualmente é mais do que o dobro do que
era antes da contra-reforma na gestão do DSY. A extrema burocratização
das atividades assistenciais, as intervenções políticas
e a incompetência técnica do quadro dirigente do DSY provocaram
recorrentes crises no fornecimento dos serviços de saúde na área
Yanomami e a desorganização do trabalho de campo (falta crônica
de remédios e equipamentos, interrupção do pagamento dos
funcionários e dos vôos para entrada de equipes de saúde
na área); falhas periodicamente noticiadas na imprensa local (Folha de
Boa Vista, 18/02/06 para o último exemplo) e nacional (Folha de São
Paulo, 05/02/06).
Desde
meados de 2004, lideranças, agentes de saúde e professores Yanomami
passaram a denunciar regularmente a degradação da assistência
à saúde e o aumento das doenças na Terra Indígena
Yanomami. Porém, a palavra dos índios, outrora imprescindível
no controle de qualidade do atendimento em saúde no campo, passou a ser
sistematicamente desprezada, negada ou abafada pelos dirigentes locais da FUNASA
e do DSY. Entretanto, no final de 2005 os registros epidemiológicos oficiais
acabaram revelando um aumento de 164% na incidência de malária
(de 622 casos de malária em 2004 para 1645 casos em 2005 - Fonte: DSY/FUNASA).
Sofismas
e malárias
Surpreendentemente,
a FUNASA contentou-se em comentar este número revelador de uma nova epidemia
de malária entre os Yanomami com a seguinte observação:
“A malária decorre mais de fatores externos ao setor de saúde
do que o próprio setor de saúde em si, que é o responsável
pelos procedimentos curativos” (Folha de Boa Vista, 19/01/2006).
O
cinismo de tal comentário só pode levar à inquietante conclusão
de que a administração atual da FUNASA perdeu totalmente o sentido
de sua responsabilidade ética e constitucional com a saúde indígena,
faltando agora atribuir a sua incompetência no atendimento aos Yanomami
à má vontade dos microorganismos causadores da malária.
Certos
fatores fogem, é verdade, ao controle do sistema de saúde (mas
não do Governo que sustenta este sistema), como é o caso dos focos
de garimpo ilegal ainda em atividade na terra Yanomami ou dos contatos indiscriminados
com populações ribeirinhas não-indígenas. Porém,
deve-se lembrar aqui que o impacto destes fatores é constante desde os
anos 90 e, assim, de nenhuma maneira pode justificar, em 2005, uma repentina
volta da malária entre os Yanomami em níveis epidêmicos.
Finalmente,
em reação à noticia desta nova epidemia, o mais preocupante
foram as declarações do coordenador-geral de Planejamento e Avaliação
de Saúde Indígena da FUNASA, o Sr. Frederico Monteiro, gestor
a quem caberia ter a dimensão exata da gravidade deste quadro epidemiológico
a fim de tomar medidas adequadas para reverter o caos do DSY.
Muito pelo contrário, o Sr. Monteiro, em entrevista à Folha de
São Paulo de 5/02/06, reconheceu o aumento de 164% dos casos de malária
na terra Yanomami, porém na tentativa de minimizá-lo, declarou,
sem medo do paradoxo, “que a situação na área melhorou
em razão da diminuição do número de mortos pela
doença.”
Provavelmente
mal informado pela Coordenação Técnica do DSY, o Sr. Monteiro
desconsiderou o fato de que o início de uma epidemia de malária
se caracteriza, justamente, pelo predomínio dos casos de malária
Vivax sobre os casos de Falciparum, o tipo mais letal da doença. Assim,
no ano de 2005, os casos de malária do tipo Falciparum representaram
apenas 15% do total dos casos registrados. Diante deste quadro, se não
forem implementadas medidas drásticas para restaurar a eficiência
das operações de combate à doença, é de se
temer, a partir de 2006, um aumento progressivo de casos de Falciparum e, portanto,
um risco de mortalidade bem maior na área Yanomami.
Além
disso, deve-se levar em conta que a desorganização de um sistema
de saúde, como a que acomete o DSY (onde, novamente, dos 147 funcionários
sem pagamento, 37 recusaram-se, recentemente, a entrar na área indígena:
Folha de Boa Vista, 18/02/06), implica, também, na perda da sua capacidade
de vigilância e, portanto, invalida a qualidade de sua notificação
de óbitos. Assim, após a reforma de 1999, um recenseamento realizado
em janeiro de 2000 na área Yanomami, evidenciou 15% de óbitos
ocorridos no ano anterior e que não haviam sido notificados pelas equipes
da FUNASA (então FNS) no DSY já em plena desorganização.
Enfim,
para reduzir a letalidade da malária é fundamental tratar os casos
diagnosticados logo no início da doença (tratamento precoce) a
fim de impedir a sua rápida disseminação. Isto, obviamente,
não está mais ocorrendo no DSY, uma vez que se constata um rápido
aumento mensal de casos desde o segundo semestre de 2004.
Marketing
pseudo-científico:
Se
não bastassem os penosos esforços sofísticos da FUNASA
para tentar escamotear o início de uma nova epidemia de malária
na terra Yanomami, a Fundação Universidade de Brasília
(FUB), principal conveniada da FUNASA e principal beneficiária da sua
generosidade, publicou recentemente um documento gloriosamente intitulado "Melhorias
na Saúde Yanomami e Yekuana - dados e avanços no DSEI Yanomami
no âmbito do Convênio FUB-FUNASA”.
Para
a perplexidade geral - e o provável constrangimento dos ilustres docentes
e pesquisadores da Universidade de Brasília - o relatório refere-se
ao ano 2004 no qual as lideranças Yanomami ocuparam por duas vezes (em
setembro e dezembro) a sede da Coordenação Regional da FUNASA
em Boa Vista a fim de protestar contra o descalabro do DSY. Além disso,
este relatório foi redigido em 2005, justamente no ano em que se verificou
um aumento de 164% nos casos de malária na área yanomami em relação
ao ano anterior.
Finalmente,
o único avanço que merece ser registrado neste contexto é,
inegavelmente, o obstinado crescimento da porcentagem do orçamento do
DSY atribuído de ano em ano para a FUB. Assim, esta instituição
- e seu anexo não-governamental na empreitada, a FUBRA- Fundação
Universitária de Brasília - gastam hoje (2006), apenas em ações
complementares (excluindo pagamento de transporte aéreo, aquisição
de medicamentos, alimentos, combustíveis e equipamentos) mais que o dobro
das despesas totais para as mesmas áreas nos anos anteriores a esse convênio.
Apelo
Diante
deste quadro de crescente dilapidação de dinheiro público
e de notória ineficiência dos serviços prestados no DSY
só nos resta aqui apelar à opinião pública –
em solidariedade aos repetidos protestos e reivindicações do povo
Yanomami em 2004 e 2005 - a fim de obter da FUNASA o abandono de seus indecentes
sofismas e, sobretudo, a reestruturação drástica da organização
administrativa, financeira e operacional da assistência à saúde
aos Yanomami.
Esta
reestruturação é cada dia mais urgente para que não
se repitam as cenas de mortes e de desolação causadas pela malária
na Terra Indígena Yanomami entre 1987 e 1999, cenas que envergonharam
o Brasil durante uma década na imprensa internacional.