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O ISA publica, a partir de hoje, um conjunto de reportagens
a respeito dos problemas no atendimento médico-sanitário dos povos indígenas.
O especial apresenta uma cronologia das denúncias veiculadas pela imprensa desde
o começo de 2005 até o mês passado, em todo o Brasil, e inclui entrevistas com
especialistas e as explicações da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), órgão
federal responsável pela gestão do sistema.
A saúde indígena no Brasil enfrenta
um período difícil. Se em 2005 houve uma explosão nos protestos de diferentes
etnias em todo o Brasil, revelando situações de abandono e descaso no atendimento
das populações indígenas, em 2006 o panorama não se alterou. Greves se sucedem
nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, os chamados Dseis, interrompendo
o atendimento das populações e permitindo que doenças antes controladas retornem
com força de epidemia. A desnutrição infantil vitima um número crescente de
crianças – de 48 mortes em 2004 para 50,9 em 2005 (para cada grupo de
mil indivíduos).
A dificuldade da Fundação Nacional
de Saúde (Funasa), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, em gerir o sistema
chamou a atenção do Ministério Público Federal. No começo do ano, o MPF criou
um grupo de trabalho para investigar problemas com os convênios firmados com
as organizações que realizam o atendimento local e averiguar também a excessiva
burocracia da Funasa, que estaria por trás dos recorrentes atrasos nos repasses
de recursos - e que deixaria as
aldeias sem médicos ou medicamentos.
Boa parte dos problemas enfrentados
nesses dois últimos anos pode ser atribuída a mudanças promovidas em meados
de 2004 no modelo de gestão da Funasa. Essas modificações se deram em direção
oposta à reestruturação do sistema, promovida em 1999, quando a fundação substituiu
a Fundação Nacional do Índio (Funai) no atendimento à saúde indígena. Naquela
época, estabeleceu-se um modelo de descentralização do atendimento às comunidades
indígenas por meio de parcerias firmadas preferencialmente com a sociedade civil.
Entretanto, em 2004, a
Funasa retomou o controle de itens fundamentais da gestão da saúde, como a aquisição
de medicamentos e a contratação de horas de vôo, deixando às conveniadas basicamente
a administração de pessoal. Saiba
mais sobre as mudanças no sistema da saúde indígena.
Entre os mais de 235 povos indígenas
com direito ao serviço de saúde, alguns casos se tornaram emblemáticos e marcaram
regularmente o noticiário em 2005 e 2006: as mortes por desnutrição das crianças
Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, a volta da epidemia de malária entre os
Yanomami de Roraima e Amazonas, o
alto índice de vítimas fatais causados por acidentes ofídicos no Alto Rio Negro,
o falecimento de dezenas de crianças Apinajé no Tocantins e Marubo do Vale do
Javari, no Amazonas. Nem o Parque Indígena do Xingu, espécie de cartão-postal
da política indigenista oficial e que conta há 40 anos com a presença de médicos
da Universidade Federal de São Paulo, se vê livre de sério problemas: atualmente
uma epidemia de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) avança
sobre a população xinguana, causando como mais grave consequência a morte
de mulheres por câncer de colo de útero.
A incidência de doenças como a
malária, a tuberculose e DSTs tem avançado sobre povos indígenas de diferentes
regiões do país, o que revela a decadência do atendimento e o sucateamento da
infra-estrutura de saúde. As lideranças indígenas reclamam da faltam microscópios
e lâminas, medicamentos, meios de transporte e combustível nos postos de atendimento
no interior das Terras Indígenas. Também afirmam que a formação de agentes indígenas
de saúde caminha em ritmo lento, e que a capacitação dos servidores não-índios
permanece insatisfatória. Neste cenário, as iniciativas promissoras de educação
para a saúde foram canceladas e a instabilidade no repasse de verbas tornou-se
constante e as ações das equipes de saúde, insustentáveis.
Defrontado com esse cenário de
calamidade, o governo federal acena com um retrocesso ainda maior: devolver
a gestão da saúde indígena à Funai. Se esse plano for levado a cabo, o governo
terá ignorado a catastrófica experiência vivida no período entre 1994 e 1999,
quando, à frente da coordenação do atendimento aos índios, a instituição teve
um desempenho mediano, obrigando o então governo Fernando Henrique Cardoso a
devolver a responsabilidade sobre a saúde indígena ao Ministério da Saúde, na
tentativa de minimizar os prejuízos causados às populações indígenas e aos cofres
públicos.
Novas regras
em 2004 causaram surpresa
Por meio das portarias 69 e 70
(de janeiro de 2004) o Ministério da Saúde definiu as novas regras para o atendimento
aos índios e, durante a Primeira Oficina Integrada de Saúde Indígena (ocorrida
em Brasília entre os dias 2 e 6 de fevereiro de 2004), anunciou as mudanças,
pegando de surpresa as entidades conveniadas e os povos indígenas. Saiba mais. A abrupta alteração no rumo da política de
saúde fez com que organizações da sociedade civil, como a Urihi, que cuidava
da saúde Yanomami, rompesse com a Funasa - saiba
mais. Assistiu-se também a uma campanha de difamação contra algumas organizações
da sociedade civil conveniadas e prefeituras, responsáveis pelo atendimento.
Assim, a Funasa retomou o controle
sobre a maior parte das verbas destinadas à saúde indígena, deixando às instituições
conveniadas um papel “complementar” (contratação de pessoal, atenção
nas aldeias com insumos, deslocamentos de índios e combustível).
Os problemas relacionados à gestão
desses recursos e às atribuições das conveniadas estão no centro da situação
calamitosa denunciada pelos índios. Mesmo com a destinação de cerca de R$ 290 milhões repassados aos 34 Distritos Sanitários
Especiais Indígenas em 2005,
a morosidade e a burocratização no repasse dos recursos
federais às entidades conveniadas causam constantes atrasos no pagamento de
salários e na quitação de dívidas com os fornecedores. A centralização da compra
de medicamentos e a contratação de horas de vôo pela Funasa revelaram-se ineficientes,
consumindo os recursos públicos enquanto a situação sanitária nas áreas indígenas
piora.
Por tudo isso, o ano de 2005 foi
marcado por protestos. Dos Assurini do Trocará no Pará aos Guajajara no Maranhão;
das etnias da região do Rio Negro, no Amazonas, aos povos do Parque Indígena
do Xingu, no Mato Grosso; dos Yanomami em Roraima aos povos do Amapá e os Guarani
do Mato Grosso do Sul, todos denunciaram graves problemas na gestão da Funasa,
com resultados diretos na saúde das aldeias. Além da gestão dos recursos, a
falta de preparo e compromisso de algumas equipes de saúde têm causado sofrimento
e morte às populações indígenas, como denunciado pelos Xavante (MT), Wajãpi
(AP), Guajajara (MA), Assurini (PA), Pataxó (BA), Munduruku (PA, AM e MT) e
Yanomami (RR), entre outros. Veja
aqui os principais fatos que marcaram a crise na saúde indígena do começo de
2005 até agora.
Apesar das denúncias – que
incluem também o loteamento político dos cargos de coordenação regional da Funasa
nos estados e irregularidades no trato com a verba pública destinada ao atendimento
à população indígena - a Funasa avalia como sendo positiva a atual gestão da
saúde indígena. Leia aqui entrevista com o presidente da Funasa, Paulo Lustosa.
O cenário enfrentado pelos Yanomami
(RR/AM) é um bom exemplo do retrocesso que a política de atendimento à saúde
indígena do atual governo representou para as populações indígenas e para os
cofres públicos. Segundo dados publicados pela revista Época, na edição de 6
de setembro de 2005, desde que a Funasa retomou o atendimento direto a eles
— antes sob a responsabilidade da ONG Urihi-Saúde Yanomami — os
gastos passaram de R$ 8,4 milhões anuais (para todas as despesas), a R$ 15 milhões,
sem contar o custo de remédios e transporte. Com a mudança, a hora de vôo, que
custava R$ 690 reais, passou a custar R$ 1.300. As conseqüências no plano sanitário,
no entanto, não produziram a melhora dos indicadores. Muito pelo contrário.
A malária, controlada no período anterior, vem
se alastrando e aumentando. Em 2003, foram 418 casos, enquanto em 2005 foram
registrados 1.645 casos, quase quatro vezes mais. Veja aqui
o avanço da malária entre os Yanomami.