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A
difícil convivência entre os Yanomami e os brancos
27ª
BIENAL
Margarida Nepomuceno
Nesta
edição da Bienal Internacional de São Paulo, que discute
a convivência entre culturas díspares, a fotógrafa Claudia
Andujar e o Xamã Davi falam sobre o trabalho e a cultura dos índios
Yanomami, cuja cultura conhece de um longo convívio de 30 anos.
O
Xamã Davi Kopenawa, da nação Yanomami acredita na convivência entre o índio
e o napo, homem branco, mas não quer saber de dividir o mesmo espaço. Acredita
que todos são originários da mesma terra – Omami e podem compartilhá-la, cada
qual no seu canto, “nós, na floresta , e homem branco na cidade”.
Mesmo
diante dos empecilhos de um compartilhamento respeitoso entre culturas tão
diferentes, a 27ª Bienal Internacional de São Paulo, propõe
um desafio no universo da produção artística, uma aproximação
entre culturas, na tentativa de questionar as formas e possibilidades de convivência.
Os trabalhos da fotógrafa e indigenista Claudia Andujar, sobre os índios
Yanomami (2ª piso, no Ibirapuera) e a conversa desta segunda feira (30/10)
entre a artista e o Xamã Davi Kopenawa Yanomami com monitores da Bienal,
comprovam essa intencionalidade. Estiveram presentes ao encontro a curadora
da Bienal Lisette Lagnado e a coordenadora do programa de ação
educativa desta Bienal, Denise Grinspum. Monitores mesmo, bem poucos.
Davi
explicou seu papel entre os Yanomami, falou dos costumes e hábitos de
sua gente e sobre a importância de estar podendo transmitir um pouco da
tradição indígena através dessa Bienal. Claudia
Andujar, fotógrafa suíça, radicada no Brasil desde o final
da década de 60, apresentou seu trabalho exposto nesta Bienal, uma série
de fotos dos índios Yanomami, feitas entre 1981 a 1983, em Roraima e
Amazonas. Nestes estados, Claudia desenvolveu uma intensa atividade como fotógrafa
e militante social na defesa dos direitos na nação indígena.
Atividade reconhecida internacionalmente e que lhe valeu, em 2000, o prêmio
Cultural Freedom Prize, da Fundação Lannan, entregue pelo escritor
e jornalista uruguaio Eduardo Galeano.
Memória
substituindo o papel, os livros e os documentos
Davi Kopenawa sabe o significado de seu nome, Marimbondo, mas não sabe
quando nasceu: ”meu povo não tem papel para registrar quem nasce,
não tem cartão de identidade. Papel nosso é a memória”.
E as histórias são transmitidas oralmente, de uma geração
para outra.
Xamã
significa o curandeiro da tribo. E Davi , além de liderança de
seu povo, o que tem funções mais políticas, também
quis ser Xamã. Preparou-se para exercer essa função: passou
por todos os rituais de preparação, isolando-se na floresta, ficando
sem comer dias seguidos e ingerindo, ao final das preparações,
a Yacoana, um pó alucinógeno feito do chá da casca da árvore
sagrada Yacoana que possibilita, segundo seu depoimento, a interação
com o universo, com Omami. Os conceitos de doenças são diferentes
da civilização branca. Doença para Davi não é
a gripe nem a dor de cabeça: “vem com o espírito da noite
trazendo a tristeza, o desânimo” e são conhecidas pelos nomes
de Omoari, Noanri, Koimari ou Tutiri (espírito da noite). Doença
mesmo, a bronquite, o câncer e a pneumonia, foram adquiridas através
do contato com os brancos, segundo Claudia Andujar e Davi, durante a devastadora
investida econômica naquela região, nos anos 70.
Queremos
que nossa escola e língua sejam reconhecidas
O indígena Yanomami sente-se orgulhoso de ajudar seu povo, como Xamã,
para depurar as doenças, e também exercendo a função
política, como liderança, principalmente na relação
com o homem branco. Foi porta-voz de seu povo durante a campanha de demarcação
das terras indígenas, nos Estados de Roraima e Amazonas, somente reconhecidas
pelo Brasil como patrimônio da nação Yanomami em 1993. Tem
ainda uma atuação vigorosa junto ao governo de Roraima “batemos
sempre na porta de governo e ele não está atendendo“. Davi
refere-se, especialmente, à luta por escolas para o seu povo: “Queremos
que nossa escola seja reconhecida, que a nossa língua seja reconhecida.
Não queremos uma escola de branco, queremos aprender a contar , a entender
o que o branco fala, mas nós, índios, é que queremos ensinar
nossos filhos”.
Davi
mostra-se reticente quanto às questões que discutem o convívio
com a civilização dos brancos, visão que resulta das trágicas
experiências da década de 70, quando o garimpo e a construção
de estradas devastaram a floresta, provocando danos irreversíveis na
vida dos Yanomami. Entretanto, Davi Kopenawa fala fluentemente o português,
o que comprova a sua atuação estreita junto aos territórios
culturais dos brancos. Utiliza palavras ausentes do vocabulário de muitos
brasileiros, tais como: convivência, projetos, tradição
e cultura. Já esteve em muitos países e seu nome está à
frente de centenas de sites espalhados pelo mundo virtual da informação.
Cerca de 100 páginas e 1000 sites, entre específicos e gerais,
citam-no como uma das lideranças mais atuantes da nação
Yanomami. Já conquistou, sem sombra de dúvida, o mundo virtual
dos brancos. O Yanomami sabe que a prática do convívio entre as
culturas não é nada fácil, mas reconhece que é umas
das vias possíveis para garantir a sobrevivência de sua gente.
Uma
convivência de 30 anos
Claudia Andujar, suíça de nascimento, está no Brasil desde
os anos 50, para onde a família mudou-se para fugir das dificuldades
do pós-guerra.
Foi umas das principais fotógrafas da revista Realidade e responsável
por capas memoráveis que ficaram na história do fotojornalismo
brasileiro. Atuou no Brasil e fora daqui, mas o seu interesse sempre foi pelas
culturas minoritárias, marginalizadas. Amiga de Darci Ribeiro, foi levada
por ele a conhecer o mundo dos Yanomami, em 1971, primeiro por curiosidade depois
como escolha de vida.
Decidida
a voltar às aldeias Yanomami, para entender a cultura dos indígenas,
a fotógrafa conseguiu, por duas vezes, bolsas de pesquisa fotográfica
da Fundação John Simon Guggenheim de Nova York, em 1972 e 1974,
e embrenhou-se na floresta, numa aventura, já registrada em vários
livros de sua autoria, que duraria 30 longos anos.
Transformou-se.
Seu trabalho fotográfico não tinha nada mais a ver com o realizado
no passado: “comecei a conviver com eles e a ajudá-los a resolver
seus problemas e só passei a fotografá-los depois de conhecê-los
bem e de ser aceita por eles”, afirmou a artista. Ainda na década
de 70, Claudia foi expulsa da região dos Yanomami, pelo governo e pela
Funai, por considerarem-na espiã estrangeira, mas voltou algum tempo
depois, através de organizações brasileiras – as
ONGS - que começavam a se dedicar à causa indígena.
A
causa dos Yanomami tornou-se a sua causa , e seu trabalho como fotógrafa
somou-se às atividades de companheirismo e solidariedade dedicados ao
povo Yanomami. Sua pesquisa como artista fotográfica, entretanto, não
parou. A cultura indígena foi incorporada ao seu trabalho e a luz, elemento
fundamental da fotografia, foi assimilada em se estado natural ao processo de
criação da artista da mesma forma com que os índios lidavam
com os fenômenos da natureza. Aos poucos a natureza e a cultura foram
fornecendo-lhe elementos para sua atividade artística. Uma atividade
consciente e respeitosa à dignidade do povo indígena e à
diferenciação daquela cultura.
Numeração
que significa resgate
A série de fotografias apresentadas na Bienal, no 2º piso, foi realizada
entre 1981 e 1983, e representa uma documentação feita pela fotógrafa,
de um projeto de vacinação realizado em sete regiões do
povo Yanomami, junto com dois estudantes de medicina da Universidade de São
Paulo. São fotos de adultos e crianças Yanomami, numeradas para
efeito de controle sanitário. Como não possuíssem documentos,
achou-se conveniente o uso da numeração nas imagens. Numeração
que para Claudia, tem significado bem diferente do registro policial ou do registro
corporal, como o realizado pelo nazismo na guerra: “Lá, a numeração
significava a morte, aqui... a vida... o resgate”, explica.
Com
o seu trabalho, Claudia sugere que se discuta a importância do viver junto
para populações tão diferenciadas como a dos Yanomami.
Na
teia:
27ª
Bienal: aprendendo a viver junto (leia
aqui).
Texto
publicado no site Cores Primárias, parceiro de Carta Maior na coluna
Em Estado de Arte (visite
aqui).