Saúde,
educação, relação com instituições
públicas e não-governamentais e proteção da
terra foram apenas algumas das temáticas que compuseram uma abrangente
análise da situação dos Yanomami durante a II Assembléia
Geral da Hutukara Associação Yanomami (HAY), na cidade de
Boa Vista, Roraima. Entre os dias 15 e 20 de outubro, cerca de 50 representantes
yanomami de mais de 33 regiões dos estados de Roraima (RR) e Amazonas
(AM) levantaram e discutiram informações sobre a diversidade
de situações, problemas e demandas enfrentadas atualmente,
tanto os considerados de ordem mais interna quanto os relativos à
interação com a sociedade nacional.
A ampliação
do número de participantes foi um dos principais diferenciais desta
assembléia em relação à primeira, ocorrida
em 2004, na comunidade dos Watoriki theri, Demini, quando a associação
foi oficialmente criada (Ver
Boletim 55). Além das 13 sub-regiões representadas no
encontro anterior, participaram delegados do Ajarani, Ajuricaba, Alto
Mucajaí, Aracá, Arathau, Baixo Catrimani, Ericó,
Hakoma, Haxiu, Jundiá, Palimiú, Parafuri, Saúba,
Surucucu, Uraricoera, Waputha e Xitei (Ver
Mapa Abaixo).
Com a quase
totalidade da população yanomami no Brasil representada
no encontro, pôde-se compor um quadro rico e único, do qual
resultou uma série de documentos, encaminhados ao público
e às agências governamentais (Ver Documentos
1,
2,
3,
4,
5
e 6).
Persistência das invasões de garimpeiros, fazendeiros e pescadores,
perspectivas para o atendimento de saúde, devolução
de amostras de sangue em posse de laboratórios, reconhecimento
das escolas yanomami e falta de agilidade dos órgãos públicos
para a emissão de documentos foram os temas centrais dos debates.
Além
dos assessores da CCPY vários funcionários de instituições
públicas e organizações não-governamentais
foram convidados para compor momentos de diálogo e discutir assuntos
pertinentes, elencados em pauta previamente organizada pelos Yanomami.
Participaram representantes da Fundação Nacional do Índio
(Funai-RR), Casa do Índio (Casai-RR), Diocese de Roraima, Secretaria
do Índio/RR, Organização das Mulheres Indígenas
de Roraima (OMIR), Pastoral Indígena, Núcleo de Educação
Escolar Indígena do Estado de Roraima (NEI-RR), Conselho do Povo
Indígena Ingarikó (Coping), Núcleo Inskiran da Universidade
Federal de Roraima (UFRR), Ministério Público Federal (MPF-RR),
Fundação Nacional de Saúde (Funasa-RR), Instituto
do Meio-Ambiente (Ibama-RR) e Conselho Indígena de Roraima (CIR).
Na pauta
também foram discutidos os atuais e os futuros projetos da Hutukara.
Além dos projetos em curso de valorização de cantos,
capacitação e treinamento de gestores e implantação
de sistema próprio de radiofonia para agilizar a comunicação
entre as regiões, os Yanomami delinearam o quadro futuro de atividades,
que inclui a realização de um curso para a manutenção
do sistema de rádio com capacitação de operadores,
busca de apoio do governo às escolas da floresta, conclusão
e certificação da formação dos professores,
elaboração de livros didáticos nas línguas
yanomami, fortalecimento da atuação da associação
em área e formação de agentes agroflorestais.
Durante
a assembléia os Yanomami puderam também visitar os locais
de funcionamento de instituições consideradas como importantes
para o diálogo com os brancos, como as sedes da Funai, da Funasa
e do Ibama, o Palácio do Governo, a Secretaria Estadual de Educação
e o campus da UFRR.
Proteção
da terra
Apesar da
quase infindável série de denúncias e documentos
dos Yanomami sobre atividades ilegais em área indígena (Ver
Boletins 34,
43,
45,
47,
63,
65,
72,
73,
78
e 80),
os esforços para resolver e até minimizar os problemas decorrentes
são infrutíferos. Essa foi a conclusão à qual
chegaram os participantes da Assembléia após relacionarem
e discutirem a situação de cada região. A atuação
dos garimpeiros constitui a ameaça mais imediata e séria
à integridade dos Yanomami, principalmente nas áreas do
Ajarani, Ericó, Waikas, Catrimani, Catrimani I e Papiu: “No
Catrimani tem garimpeiros mas eles não são expulsos. Por
isso as doenças não acabam. Por causa da presença
de garimpeiros, tem malária, a água está suja, por
isso os Yanomami estão preocupados. No Catrimani I ainda há
outros, fazem casas de lona.
Subindo
o Rio Catrimani, muitos garimpeiros estão trabalhando e os nossos
peixes estão morrendo”. Além da poluição
da água e proliferamento de doenças, os Yanomami denunciam
no documento enviado à Funai, à Polícia Federal,
ao Ibama, ao MPF, ao Ministério do Meio Ambiente e ao Ministério
da Justiça o impacto social decorrente da presença dos garimpeiros:
“No Pothomatha os garimpeiros também estão lá
mas não são expulsos. Eles pegaram as mulheres dos Sanöma
com as quais já têm filhos, essa é a situação.
Na floresta onde moram os Hokomawö há garimpeiros. Eles descem
na pista do Quincas (Bonfim) e pelo caminho, chegam na casa dos Sanuma.
Lá,
em troca de espingardas, os garimpeiros levam as mulheres e o ouro de
nossa terra. É só um garimpeiro mas que possui duas mulheres
sanuma. Quando eles chegaram, as mulheres querem trocar comida, e os homens
querem trocar espingardas”. (Ver
Documento 1)
Atendimento
em saúde
Objeto recorrente
das preocupações e debates dos Yanomami desde as mudanças
ocorridas em 2004 (Ver Boletins 45,
46,
47
e 49),
o atual modelo de atendimento de saúde mantido pela Fundação
Nacional de Saúde (Funasa) em parceria com várias instituições
conveniadas, como a Fundação Universidade de Brasília
(Fubra), em Roraima, foi considerado como repleto de falhas. Reafirmando
o que já fora expresso anteriormente em diversas ocasiões
(Ver Boletins 77
e 81),
houve consenso ao apontar o CIR como a organização ideal
para a manutenção do atendimento em terra yanomami, dados
o antigo histórico de parcerias políticas e a larga experiência
que seus profissionais têm, lidando há anos com a saúde
no Distrito Sanitário Leste de Roraima, entre as populações
Makuxi e Wapixana, entre outras: “Nós lideranças yanomami
pretendemos transferir ao CIR o nosso atendimento em saúde. E por
que queremos fazer isso? Os motivos são óbvios, a qualidade
do atendimento em saúde hoje não é igual à
qualidade que a Urihi – Saúde Yanomami prestava, por isso
queremos que o CIR assuma o atendimento. O CIR sabe fazer um bom atendimento
em Saúde. Além disso, o pessoal do CIR é indígena
como nós, e por isso acreditamos que cuidarão bem de nossa
saúde”. (Ver
Documento 2)
Educação
Os Yanomami
também reafirmaram o desejo de um sistema escolar fundamentado
nas suas línguas, sem no entanto dispensarem a apreensão,
pelos mais de 1200 alunos, de novos conteúdos dos brancos, como
História, Matemática, Geografia, Ciências e Língua
Portuguesa. Consideram que, mais do que representar um risco à
sua cultura, apenas dessa forma é possível manterem estruturas
tradicionais de organização social, base de sua identidade
e força frente aos problemas decorrentes do contato: “Vocês
não devem pensar que os Yanomami vão perder sua cultura
com escola, não é isso, nós não queremos apenas
que nossas crianças cresçam sem educação escolar.
Por isso, escutem o que estamos dizendo e nos apóiem realmente,
porque todos yanomami que ainda não têm escola também
querem estudar”.
O principal
problema apontado para a continuidade das aulas em vários locais
é a falta de material escolar básico que interrompeu as
atividades em diversas escolas e prejudicou o andamento dos trabalhos
nas 72 restantes. Além disso, os Yanomami reivindicam apoio à
formação dos 143 professores e à atuação
de organizações que agem em parceria nesse processo. (Ver
Documento 3)
Devolução
do Sangue
Outro grave
problema que persiste à revelia dos Yanomami e que foi rediscutido
na Assembléia é o da polêmica das amostras de sangue,
recolhidas por pesquisadores de instituições nacionais e
estrangeiras sem serem seguidos os processos apropriados de esclarecimento
e de consentimento dos pacientes (ver Boletins Pró-Yanomami
11,
23,
25,
26,
32,
41,
59,
76
e 82).
Apesar de
procedimentos ilegais de coleta de material genético entre populações
indígenas não serem raridade no Brasil, um passo decisivo
foi dado com a recente devolução das amostras de DNA em
posse da Universidade Federal do Pará (UFPA), o que constitui um
marco na história do direito brasileiro (Ver
Boletim 82). Entretanto, outras amostras permanecem em laboratórios
norte-americanos da Pennsylvania State University, da Binghamton University,
do National Cancer Institute e da University of California, apesar dos
pedidos constantes do MPF-RR e dos Yanomami, que anseiam pela devolução
para darem fim aos vestígios de parentes falecidos, seguindo os
ritos funerários apropriados: “De acordo com nossa cultura
Yanomami, nenhuma parte dos nossos corpos pode permanecer”.
No documento
elaborado para reiterar o pedido, os Yanomami ressaltam como a coleta
se deu sem a preocupação de explicações sobre
o uso do sangue e permeada de mal-entendidos: “Os anciões
Yanomami não sabiam falar a língua deles (pesquisadores)
e por isso não se recusaram. ‘Por que eles estão pegando
nosso sangue?’, os Yanomami pensaram nisso mas não entendiam
a língua dos brancos”. (Ver
Documento 4)
Yanomami
e os “silvícolas”
Para os
Yanomami os argumentos contidos no livro “Curso de Direito Constitucional”
(Editora Forense), do jurista Paulo Napoleão Nogueira da Silva,
constituem mais um capítulo de um longo drama no qual são
alvos de idéias preconceituosas e desqualificadoras (Ver
Boletim 41).
No capítulo
XLII da referida obra, intitulado “Os silvícolas”,
há a reprodução de uma série de estereótipos
utilizada há tempos por setores xenófobos, contrários
às reivindicações das populações indígenas
no estado de Roraima. Para tanto, é recorrente o uso de argumentos
falaciosos, como o da manipulação dos índios por
potências estrangeiras, através de ONGs e com financiamento
do capital internacional, no intuito de se criar um Estado independente
do Brasil e resguardando as potenciais riquezas da terra yanomami, como
apontado no documento: “O nome verdadeiro da nossa terra é
Terra Indígena Yanomami e não República Socialista
Ianomami. Na Constituição Federal do Brasil, no artigo 231,
garante o nosso direito a terra”.
Depois de
uma apurada análise do conteúdo e demonstrando pleno conhecimento
da Constituição Federal brasileira, os Yanomami respondem
aos argumentos com precisão, lembrando que são tão
brasileiros quanto o autor: “Hoje, em 2006, somos 27.000 Yanomami,
vivendo na Venezuela e no Brasil. Nós não pretendemos nos
separar do Brasil. Nós não pretendemos dar a nossa terra
para outros “brancos”, porque ela é muito importante
para nós. Nós nascemos no Brasil, por isso somos brasileiros.
Nós não temos alianças com os Estados Unidos e a
União Européia”. (Ver
Documento 5)
Documentação
Os Yanomami
ainda encontram dificuldades em obter documentos, apesar de atuarem em
profissões reconhecidas pelo Estado, como as de microscopistas
e de professores, e de há anos reivindicarem empenho dos órgãos
responsáveis (Ver Boletins 22
e 35).
Com exceção de um pequeno grupo que conta com carteira de
identidade e CPF, os Yanomami se sentem tolhidos de seus direitos e impossibilitados
de transitarem de forma igualitária pelos espaços garantidos
ao “cidadão” brasileiro: “Ainda neste ano, em
dezembro a Secretaria Estadual de Educação fará processo
seletivo, os professores que não tiverem Carteira de Identidade
e CPF não poderão participar. Nas nossas comunidades temos
Agentes Indígenas de Saúde que recebem salário, por
isso querem documentos para abrir conta no Banco, sem documentos isso
não é possível.
Nas nossas
escolas os alunos também não têm documentos e a Secretaria
Estadual de Educação exige, por isso queremos tirar documentação
dos nossos alunos (...)Quando andamos pelas ruas da Cidade a Polícia
nos para e pede documentos, nós ficamos com medo”. Nos documentos
enviados à Funai e ao Ministério Público Estadual,
pedem agilidade na emissão dos documentos, ítem indispensável
para sua livre locomoção e agir, sem a necessidade de autorizações,
como se fossem “crianças”: “Nós, Yanomami,
somos brasileiros, temos direitos garantidos na Constituição
Federal, por isso pedimos providências mais breve possível”.
(Ver
Documento 6)