Os Yanomami
realizaram uma reunião histórica no dia 28 de julho passado,
na região do Alto Mucajaí. Na ocasião o Ministério
Público Federal de Roraima (MPF-RR) devolveu-lhes oficialmente
DNA extraído de amostras de sangue de pacientes yanomami coletadas
há 16 anos por pesquisadores da Universidade Federal do Pará
(UFPA) sem devido processo de obtenção do seu consentimento
informado (ver
Boletim CCPY 76). Outros lotes de amostras semelhantes já foram
entregues aos Yanomami do Paapiú e à Fundação
Nacional de Saúde (Funasa) para serem levados às comunidades
do Baixo Mucajaí.
Participando
ativamente dos esforços de negociação para a devolução
de amostras de DNA Yanomami coletadas em condições similares
por instituições brasileiras e, sobretudo, norte-americanas
(ver Boletins Pró-Yanomami 11,
23,
25,
26,
32,
41,
59
e 76),
está o antropólogo Jankiel de Campos, Analista Pericial
do MPF-RR, função que exerce desde janeiro de 2005. Jankiel
de Campos, que também tem acompanhado a situação
do sistema de atendimento de saúde aos Yanomami (ver
Boletim 77), concedeu entrevista ao Boletim Pró-Yanomami.
Qual
a importância da devolução dessas amostras?
A devolução das amostras de DNA yanomami que estava na UFPA
foi mais um episódio em que o Ministério Público
Federal em Roraima demonstrou competência e empenho na defesa dos
interesses das comunidades indígenas. Nunca havia ocorrido algo
semelhante no Brasil, apesar de não serem raras as coletas ilegais
de material genético de indígenas. Essa devolução
também é um marco na história do direito indígena
brasileiro, pois mostra que os povos indígenas estão se
fortalecendo politicamente, fazendo valer seus direitos mesmo quando são
explorados por pessoas ou instituições de grande prestígio
na sociedade.
Como as comunidades
reagiram à devolução das amostras de sangue?
Eu estive somente na região do Alto Mucajaí, de onde foram
retiradas 86 das 90 amostras que estavam na UFPA. A comunidade havia sido
avisada, no dia anterior, da minha ida para entrega do material e quando
chegamos já havia muitos Yanomami nos esperando na pista de pouso.
Após as saudações, nos dirigimos à pequena
escola que fica junto ao posto, que rapidamente ficou lotada pelos anciãos.
Na porta, jovens e crianças se aglomeravam. Dei uma breve explicação
dos motivos que me traziam até ali e do estado em que se encontrava
o material genético. Em seguida, um dos líderes agradeceu
pela minha presença e disse que há muito tempo eles se preocupavam
com o destino das amostras, coletadas 16 anos atrás. Logo perguntaram
se eu estava fazendo o mesmo em outras regiões da Terra Yanomami,
onde eles sabem ter ocorrido coletas semelhantes. Contei a eles que já
tinha enviado o material dos Yanomami do Paapiú e que ainda não
conseguimos a devolução das amostras que estão nos
Estados Unidos. Então, entreguei a caixa com o material genético
e a lista com os nomes dos Yanomami donos das amostras ao anciãos,
que a receberam sob aplausos da comunidade. As lideranças também
gravaram mensagens destinadas às comunidades que têm material
genético nos Estados Unidos.
Qual foi o
destino dado às amostras pelos Yanomami?
Os líderes presentes comentaram que os donos das amostras vivem
em várias aldeias e que todos serão convidados para juntos
realizar uma cerimônia apropriada com o material.
No Brasil,
você acha que o caso teve repercussão necessária para
motivar discussões sobre novos procedimentos de pesquisas? Ocorrerão
mudanças reais nos procedimentos de consentimento informado?
Me parece que o caso teve uma repercussão razoável na comunidade
acadêmica, que há anos vem promovendo debates sobre o tema.
Hoje, a maioria das universidades e instituições que financiam
pesquisas no Brasil possui Conselhos de ética que analisam previamente
os projetos de pesquisa.
Além
do campo da discussão da ética científica, você
acha que situações como essa que envolvam os povos indígenas
podem contribuir com novas perspectivas para nossa própria sociedade?
Ao longo do último século a Antropologia, criada inicialmente
pela sociedade ocidental para estudar povos como os Yanomami, tem se desconstruído
e se reconstruído através da análise crítica
de situações como essa, levantando questões importantíssimas
a respeito da nossa relação com culturas diferentes e com
o meio ambiente. Todas essas questões tem cada vez mais relevância
para a sociedade brasileira, que está percebendo que não
existe Brasil sem os povos indígenas e que esses povos tem uma
contribuição imprescindível para o futuro do país.
Nos depoimentos
coletados junto aos Yanomami, quais foram os comentários e opiniões
sobre as práticas dos pesquisadores que através de argumentos
nebulosos e enganosos obtiveram amostras de sangue?
Como as coletas foram feitas por pessoas que estavam prestando serviços
médicos, os doadores yanomami acreditaram que a coleta de sangue
fazia parte dos procedimentos de tratamento de doenças. Também
não tinham a menor idéia de que o material podia ser conservado
por tantos anos.
Acompanhando
o quadro atual no qual os Yanomami se apropriam de conhecimentos dos brancos
com desenvoltura, você acha válidos os argumentos utilizados
sobre alguns pesquisadores, que falam que os povos indígenas são
incapazes de entenderem explicações científicas?
Esse argumento é uma falácia tanto hoje como na época.
As pessoas responsáveis pelas coletas entre os Yanomami sequer
tentaram dar uma explicação, assim não podem usar
essa desculpa. No mais, esse modo de pensar nega a racionalidade dos indígenas.
Quanto às
instituições que contêm amostras nos Estados Unidos,
como estão os diálogos?
Até agora cinco responderam. A Pennsylvania State University, a
Binghamton University, National Cancer Institute e a University of California
confirmaram possuir amostras, e a University of Michigan informou que
não possui nada.
A campanha
realizada nos Estados Unidos organizada pelo professor Rob Borofsky da
entidade www.publicanthropology.org está dando resultados?
Eu tenho poucas informações sobre essa campanha, mas acho
que tem tido algum efeito, pois em julho recebemos a resposta da University
of Michigan depois de quatro anos de espera.
Como você
avalia essa atuação hoje tão próxima do Ministério
Público com populações indígenas e o lugar
dos antropólogos neste processo?
De modo geral, o MPF tem agido de forma exemplar na busca de diálogo
com a sociedade civil organizada para melhor defender os direitos coletivos
dos brasileiros. Porém, isso não altera o fato de ele fazer
parte do Estado brasileiro, que é um Estado de matriz colonialista.
Por isso ele também é influenciado pelo pensamento etnocêntrico.
No nosso caso, por ter sido uma instituição completamente
reformulado pela Constituição de 1988 e ter um quadro de
membros relativamente jovens, o MPF foi capaz de perceber a importância
de ter antropólogos entre seus servidores, o que eu considero fundamental,
já que foi a Antropologia que construiu a crítica ao etnocentrismo
dentro da sociedade ocidental. Isso fica claro quando fazemos uma comparação
com a Fundação Nacional do Índio (Funai), um órgão
criado pela ditadura militar para tutelar e assimilar os povos indígenas.
A Funai só
foi criar a cargo de antropólogo em 2004, dessa forma era de se
esperar que ela não respeitasse o protagonismo dos índios
frente a um Estado que sempre foi voltado para a homogeneização
cultural. Eu percebo que a cada dia nossos procuradores da República
valorizam mais o trabalho dos antropólogos como um meio de superar
o senso comum etnocêntrico, abrindo espaço dentro do Direito
e das políticas públicas para atores sociais que eram invisíveis
dentro da perspectiva do Estado monocultural.