A
despeito da retórica oficial e da multiplicação
de reuniões e conferencias de saúde organizadas
pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa)
em nível local e regional, a malária continua a
se grassar de maneira inquietante nas aldeias da Terra Indígena
Yanomami, confirmando às previsões mais pessimistas
baseadas nas constantes denúncias sobre a falta de medicamentos
e a precariedade dos serviços durante o ano de 2005 (ver
Boletins Pró-Yanomami 60,
67,
68
71,
72
e 73).
A estratificação epidemiológica da malária
no Distrito Sanitário Yanomami em 2005 indica, assim, um
aumento de cerca de 164% no número de casos em relação
ao ano anterior.
Foram registrados 1.645 ocorrências de malária numa
população de um total de 15.686 pessoas na terra
yanomami, contrastando com as 622 notificações de
2004, ano em que a Funasa retomou o atendimento de saúde
na área indígena (Julho). Deste total, 242 casos
foram de malária Falciparum, forma letal da doença,
e 1.398 de malária Vivax; sendo as demais mistas. Até
2003, quando foram notificados 418 casos em toda a área,
a malária vinha apresentado queda progressiva durante três
anos consecutivos.
As comunidades do rio Marauiá, afluente do rio Negro, no
estado do Amazonas, foram as mais atingidas pela malária
em 2005: entre os 1.393 Yanomami da região, registraram-se
471 casos, sendo 39 de malária Falciparum e 432 de Vivax.
Tanto esta região como as do Padauiri (população
de 761 pessoas com 216 casos de malária), do Ajuricaba
(população de 119 pessoas com 18 casos), e do Marari
( 677 pessoas , 42 casos), são atendidas pela organização
não-governamental Serviço de Cooperação
com o Povo Yanomami (Secoya), conveniada com a Funasa. Avaliações
de representantes da ONG apontam como principais fatores para
o agravamento deste quadro os atrasos do repasse de verbas e a
política centralizadora da Funasa quanto à aquisição
de remédios (ver Boletim 68).
Nas áreas atendidas por outra conveniada da Funasa, a Fundação
Universidade de Brasília (FUB), em Roraima, foram relacionados
508 casos de malária, destacando os ocorridos na região
do Parafuri (114 casos) cujas comunidades, que somam 355 pessoas,
mantêm contatos freqüentes com garimpeiros instalados
há anos no local. A FUB também atende três
regiões no estado do Amazonas: Demini, Balawaú e
Toototobi, também fortemente atingida pela malária
(338 pessoas com 42 casos de Falciparum e 296 de Vivax). Somente
na região do Toototobi foram registrados 214 casos de malária
no período, com surtos agudos, como o ocorrido entre os
dias 23 de outubro e 3 de dezembro, com 93 casos registrados (ver
Boletim 73).
Essas três regiões, situadas no alto rio Demini,
afluente do rio Negro, podem ter sido contaminadas também
pela malária oriunda de povoamentos próximos aos
limites da Terra Indígena Yanomami ocupados por moradores
do município de Barcelos, Amazonas (ver
Boletim 71).
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Yanomami
avaliam que exigência por mais recursos não garante
qualidade no atendimento em saúde na Terra Indígena
Dinheiro
não é a solução para os problemas
que corroem o atendimento à saúde indígena
e afetam os trabalhos da Funasa na Terra Indígena Yanomami.
Esta foi a conclusão de Davi Kopenawa Yanomami, Presidente
da Hutukara Associação Yanomami, após o término
da última Conferência Distrital de Saúde em
Roraima, realizada entre os dias 10 e 12 de janeiro na Casa Paulo
VI, em Boa Vista (Roraima). Davi Kopenawa, um dos 12 representantes
escolhidos entre os cerca de 80 conselheiros yanomami presentes
para participar da Conferência Nacional de Saúde
em Brasília no mês de março, declarou: “Eu
não quero pedir dinheiro para ninguém. Nós
havíamos pedido anteriormente porque o dinheiro estava
demorando (ver Boletim 68).
Isso melhorou apenas para eles, os funcionários [da Funasa].
Nós não pretendemos pedir novamente dinheiro. Nós
achamos que, apesar do dinheiro, não ocorreram melhorias
nas aldeias. A malária voltou com força . Nas nossas
comunidades não vimos a Funasa enviar equipamentos, medicamentos,
apesar de nós já os termos pedido (...) Nós
não queremos pedir dinheiro em Brasília, porque
eu penso que é mais dinheiro que podem roubar”.
Neutralização
da representação yanomami
Seguindo o modelo das Conferências Locais, foram propostos
na Conferência Distrital cinco temas de avaliação:
direito à saúde; controle social; desafios indígenas
atuais; trabalhadores indígenas e não-indígenas
em saúde; bem como segurança alimentar, nutricional
e desenvolvimento sustentável. Estes temas deviam ser debatidos
e transformados em propostas, posteriormente encaminhadas para
a Conferência Nacional. Os temas foram precedidos por mesas
redondas nas quais três ou quatro participantes não-indígena
discutiam sobre os assuntos em pauta e um representante yanomami
fazia a apresentação final. Concluindo as discussões,
uma reunião plenária foi dividida em cinco grupos,
sendo que cada um reapresentou o assunto contemplado anteriormente
e elaborou uma lista com cerca de 90 propostas que foram apresentadas
e votadas. Segundo Ednelson Pereira, coordenador do programa agroflorestal
da CCPY, que também participou da conferência, tal
estrutura de trabalho altamente burocratizada e etnocêntrica
é improdutiva por não contemplar espaços
culturalmente apropriados para permitir manifestações
efetiva dos Yanomami, assim: “Nas conferências locais
nunca se passou da discussão do primeiro tema, em geral
porque a situação caótica no atendimento
e o pouco tempo destinado às conferências deixavam
os Yanomami mais preocupados em avaliar o atendimento do que outra
coisa”.
Municipalização
da saúde indígena
Uma das preocupações principais dos Conselheiros
yanomami, além da degradação do atendimento,
foi voltada em direção à rumores insistentes
sobre projetos de municipalização do atendimento
da saúde indígena, como o evidencia a fala de Davi
Kopenawa durante a Conferência:“Nós estamos
preocupados com outras palavras. O governo federal pode querer
acabar com o Distrito Sanitário Especial Yanomami (DSEY).
Se acabar, vai dividir os recursos entre os municípios,
talvez para o governo estadual também. Estou muito preocupado
com essas notícias, porque o atendimento assim dividido
só vai piorar ainda. Foi assim que alguns da Funasa nos
disseram: ‘Vocês devem ficar atentos. Assim que o
governo acabar com o DSEY vai dividir os recursos para os municípios.
A Funasa não está melhorando, está tendo
muita confusão, por isso o governo quer passar para os
municípios’. É isso que pretendo também
dizer em Brasília. Vocês não podem passar
o atendimento para os municípios, tem que melhorar a Funasa.
Se vocês fizerem isso, as coisas não vão melhorar,
o dinheiro vai se perder mais, ninguém ficará atento”.
Escolha
dos delegados
O momento mais relevante do evento, segundo Davi Kopenawa, foi
o da escolha dos 12 representantes yanomami, já que nenhuma
das reivindicações feitas em reuniões e manifestações
recentes (ver Boletins Pró-Yanomami
71,
72
e 73
e Comunicados de 15/09
e 24/11/2005)
teve uma resposta concreta: “Acho que foi importante a discussão
para escolhermos os delegados que irão para Brasília.
Agora, sobre melhorar os trabalhos da Funasa, nenhuma palavra
‘forte’ foi falada. Eu não acredito mais em
palavras assim, porque nós, Yanomami, estamos vigilantes.
Há poucos que querem melhorar as coisas mas, políticos
de Roraima e políticos de Brasília não deixam,
há aqueles que proíbem melhorar. ‘Não
façam coisas boas na floresta yanomami’, é
o que alguns dizem quando discutem”. Além de Davi,
seguirão para Brasília os representantes indígenas
Mateus (Auaris), Castro (Ye´kuana), Paraná (Surucucu),
Eliseu (Alto Mucajaí), Alexandre (Missão Catrimani),
Abraão (Novo Demini) e Francisco Xavier (Maturacá),
entre outros, e 12 delegados representando organizações
e instituições que trabalham com a saúde
yanomami, como a Diocese de Roraima, o Instituto Brasileiro de
Direito à Saúde (IBDS), a Fundação
Universidade de Brasília (FUB), o Serviço de Cooperação
do Povo Yanomami (Secoya), as Missões Evangélicas
da Amazônia (MEVA) e as Missões Novas Tribos do Brasil
(MNTB).
Ausência
e desinteresse da Direção da Funasa
Davi Kopenawa expressou também insatisfação
com a ausência e a falta de interesse da direção
da Funasa com a questão yanomami: “Nós havíamos
chamado pelo pessoal de Brasília, pelo presidente da Funasa,
mas ele não compareceu. O coordenador regional da Funasa
também não se sentou nesta reunião, não
falaram conosco, não discutiram. Nós, Yanomami,
sozinhos é que discutimos entre nós, alguns da Funasa
daqui nos ajudaram, mas não eram chefes grandes, apenas
funcionários que não podem decidir nada. ‘O
que faremos? Vamos tentar melhorar as palavras sobre a Conferência
Nacional de Saúde, não há lideranças
aqui, mas vamos nos esforçar em tentar melhorar’,
foi assim que discutimos. Só nós, os ‘pequenos’,
fizemos a reunião, já que os ‘grandes’
de Brasília não participaram”.
Após grande expectativa dos Yanomami, que aguardavam a
presença de autoridades da Funasa de Brasília, o
último dia de conferência contou apenas com a presença
do Coordenador do Projeto VIGISUS, que foi longamente sabatinado
pelos conselheiros, especialmente por Davi Kopenawa, que relata:
“Nós queremos apenas um atendimento de saúde
muito bom, mas ele não melhora, ainda é fraco. O
chefe do VIGISUS, que enviou aviões para nos buscar em
nossas comunidades, falou que vai trabalhar muito, que vai melhorar,
vai comprar motores, barcos, materiais, equipamento de saúde,
geladeiras e laboratórios e arrumar os postos. Ele disso
isso, mas eu não penso que essas palavras possam ser totalmente
verdadeiras. Eu já estou acostumado com promessas, os Brancos
costumam fazer muitas promessas. É bom e correto que ele
fale isso, mas ao mesmo tempo não é bom dizer coisas
à toa, por isso estou triste”.
Rejeição
do Coordenador atual da Funasa de Roraima
Os Conselheiros indígenas também reforçaram
sua rejeição ao nome do Coordenador regional da
Funasa em Boa Vista. “Nós falamos ao chefe do VIGISUS,
quando ele estava com os ouvidos atentos, sobre o coordenador
regional: ‘Esta pessoa quando já foi coordenadora
da Funasa de Roraima trabalhou somente no início mas não
bem e nem suficiente. Começou a reforma na Casa do Índio
mas acabou rapidamente com os recursos e não melhorou o
atendimento. Pedimos por remédios e equipamentos, mas nunca
apareceram. Ele deixou que vacinas estragassem, pois não
havia geladeiras’. Outros também falaram que não
queriam ele, assim o pessoal do Conselho Indígena de Roraima
(CIR) falou também que não o queria mais”,
declarou Davi Kopenawa.
Ednelson Pereira, representante da CCPY, ressaltou que apesar
deste momento dos debates no qual os conselheiros yanomami expuseram
com maior veemência as suas insatisfações
em relação ao atendimento de saúde, suas
manifestações foram interrompidas pelos organizadores:
“Os Yanomami pediram a palavra e daí foi uma seqüência
de falas questionando o mal atendimento prestado e o aumento assustador
da malária na terra yanomami, a falência da política
de saúde indígena do governo Lula e, sobretudo,
a permanência do atual coordenador regional da Funasa (...)porém
houve manobra do intérprete da Funasa para desmotivar os
Yanomami a continuarem a sabatina do responsável do VIGISUS”.
Desarticulação
da participação das ONGs
Segundo Ednelson Pereira houve ainda na Conferência Distrital
um nítido esforço em desarticular a participação
de representantes de organizações não-governamentais,
como a CCPY. Após se ver mobilizado constantemente durante
toda a conferência como palestrante, coordenador de mesa,
relator e coordenador de grupo, Ednelson Pereira foi informado
no final do evento que sua participação na Conferência
Nacional e, por extensão, da instituição
que representava, não era da responsabilidade da Funasa.
“O último ato dos debates veio acompanhada de uma
manobra para excluir os aliados dos Yanomami fora da Conferência
Nacional: na hora da escolha dos delegados, isso já tarde
na noite, foi anunciado por uma enviada de Brasília que
os delegados das ONGs que eventualmente fossem escolhidos na Conferência
Distrital deveriam, ao contrario dos outros participantes, arcar
com suas despesas se queriam participar da Conferência nacional
pois a Funasa somente se responsabilizaria com as despesas de
delegados das instituições governamentais, o que
criou um clima de surpresa e indignação entre os
representantes institucionais não-governamentais”.
Promessas
vazias e questões não respondidas
Ainda
de acordo com Davi Kopenawa, o fechamento da Conferência
Distrital não se realizou a contento e foi principalmente
marcado por promessas vazias e uma certa confusão que não
permitiu o esclarecimento de muitas dúvidas: “Nós
não queríamos assustar ninguém, nós
falamos forte e corretamente por isso acho que o chefe do VIGISUS
ficou com um pouco de medo. ‘Você, chefe da Funasa,
deve nos escutar, também deve explicar e nos ajudar.
Vocês devem agir de maneira firme, vocês devem pensar
em realmente melhorar as coisas. Se vocês mantiverem firme
em suas mãos a Conferência Nacional de Saúde
então nós nos alegraremos. Não falem mais
mentiras. Se falarem a verdade, ficaremos contentes’, foi
assim que falamos. Ele respondeu: ‘Vamos melhorar o atendimento,
a forma como nós curamos os Yanomami e como trabalhamos.
Eu não penso em enganá-los, se eu já conhecesse
vocês, vocês poderiam pensar que eu queria enganá-los,
mas não é o caso’.
Nós conversávamos assim, mas todos falaram ao mesmo
tempo e ele acabou não respondendo. Outros queriam falar
firme também e, mas ele fugiu e não respondeu às
perguntas pelas quais nós o chamamos”.
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